interior de Rama. A do norte so tem cinquenta metros de altura; a do sul, por outro lado, se eleva a quase meio quilometro de altitude. Por que essa diferenca? Ninguem, ate agora, pode encontrar uma razao plausivel.
«Mas suponhamos que Rama seja realmente capaz de propelir a si mesmo, — acelerando de modo que a extremidade norte fique virada para a frente. A agua do Mar tenderia a mover-se para tras; seu nivel subiria no sul, talvez centenas de metros. Dai a escarpa. Vejamos…
Perera comecou a rabiscar com frenetica rapidez no seu bloco. Ao cabo de um tempo espantosamente curto — nao podia ter durado mais de vinte segundos — alcou a cabeca com um ar triunfante.
— Dada a altura dessas escarpas, pode-se calcular o maximo de aceleracao que Rama e capaz de receber. Se fosse superior a dois por cento de gravidade, o mar transbordaria sobre o continente meridional.
— Um cinquenta avos de g? Nao e muito.
— E, sim — para uma massa de dez milhoes de megatons. Nao se faz necessario mais para manobras astronomicas.
— Muito obrigado, Dr. Perera. — disse o Embaixador de Mercurio. — O senhor nos deu bastante assunto para reflexao. Sr. Presidente… podemos encarecer ao Comandante Norton a importancia de inspecionar a regiao polar sul?
— Ele esta fazendo o possivel. O Mar e o obstaculo, naturalmente. Estao tentando construir uma especie de jangada — para ver se ao menos conseguem chegar ate Nova Iorque.
— Talvez a regiao do Polo Sul seja ainda mais importante. Enquanto isso, tenciono levar estes assuntos a atencao da Assembleia Geral. Posso contar com a aprovacao dos senhores?
Nao houve objecoes, nem mesmo por parte do Dr. Taylor. Mas, justamente quando os membros do comite se preparavam para desligar o circuito, Sir Lewis alcou & mao.
O velho historiador falava muito raramente; quando o fazia, todos escutavam.
— Talvez venhamos a descobrir que Rama e… ativo, e tem essas potencialidades. Em questoes militares ha um velho rifao, segundo o qual potencialidade nao implica intencao.
— Quanto tempo devemos esperar para descobrir que intencoes ele traz consigo? — perguntou o mercuriano. — Quando as descobrirmos, talvez seja tarde demais.
— Ja e tarde demais. Nada podemos fazer para influenciar Rama. Duvido, mesmo, que isso nos tenha sido possivel em algum momento.
— Nao reconheco isso, Sir Lewis. Podemos fazer muita coisa ainda… se for necessario. Mas o tempo e muito curto. Rama e um ovo cosmico que esta sendo chocado pelas chamas do Sol. Pode descascar a qualquer momento.
O Presidente do Comite olhou para o Embaixador de Mercurio com indisfarcado pasmo. Poucas vezes havia sentido tamanha surpresa em toda a sua carreira diplomatica.
Jamais teria sonhado que um mercuriano fosse capaz de exprimir-se em linguagem tao poetica.
20 APOCALIPSE
SEMPRE que alguem da sua tripulacao o chamava de «Comandante» ou — o que era ainda pior — de Sr. Norton, tratava-se de algum assunto grave. Nao se lembrava de ter jamais ouvido Boris Rodrigo dirigir-se a ele nesses termos, de modo que a coisa devia ser duplamente grave. O Capitao-de-corveta Rodrigo era uma pessoa muito seria e ponderada.
— Qual e o problema, Boris? — perguntou depois que a porta da cabina se fechou atras deles.
— Desejava a sua permissao, Comandante, para usar a prioridade da Nave, pois quero enviar uma mensagem a Terra.
Isto era realmente incomum, embora nao sem precedentes. Os sinais de rotina eram encaminhados ao mais proximo posto planetario de retransmissao — de momento, estavam se comunicando atraves de Mercurio — e, embora o tempo de transito fosse uma questao de minutos, muitas vezes uma mensagem levava cinco ou seis horas para chegar a escrivaninha do destinatario. Em noventa e nove por cento dos casos isso era suficiente; mas, numa emergencia, podia-se empregar canais mais diretos e muito mais dispendiosos, ao alvitre do comandante.
— Voce sabe, naturalmente, que e preciso me dar uma boa razao para isso. Toda a nossa faixa de onda disponivel ja esta atulhada com transmissoes de dados. Trata-se de uma emergencia pessoal?
— Nao, Comandante. E um assunto muito mais importante. Quero mandar uma mensagem a Madre Igreja.
«Aha», disse o Comandante la consigo. «Que faco eu agora?»
— Gostaria muito se voce explicasse.
Nao foi a simples curiosidade que inspirou este pedido de Norton, embora houvesse certamente curiosidade. Se desse a Boris a prioridade solicitada, teria de justificar a sua acao.
Os calmos olhos azuis fitavam os seus. Nunca ouvira dizer que Boris houvesse perdido o autocontrole, que deixasse, por um momento, de ser completamente senhor de si. Todos os Cosmo-Christers eram assim — um dos beneficios da sua fe, que contribuia para fazer deles excelentes astronautas. As vezes, porem, a sua certeza inabalavel era um tantinho exasperante para os infortunados a quem fora negada a Revolucao.
— E a respeito da finalidade de Rama, Comandante. Creio que a descobri.
— Continue.
— Considere a situacao. Temos ai um mundo completamente vazio e sem vida; e contudo, e apropriado aos seres humanos. Possui agua e uma atmosfera que nos podemos respirar. Vem das remotas profundezas do espaco, visando com precisao ao sistema solar — uma coisa completamente incrivel, se fosse obra do puro acaso. E nao so parece novo, mas tem o ar de nunca ter sido usado.
«Todos nos temos refletido sobre isso duzias de vezes», pensou Norton. Que poderia Boris acrescentar de novo?
— Nossa fe nos ensinou a esperar uma visitacao como esta, so que nao sabemos exatamente que forma ela assumira. A Biblia da algumas indicacoes. Se este nao e o Segundo Advento, pode ser o Segundo Juizo: a historia de Noe e a descricao do primeiro. Acredito que Rama e uma Arca cosmica, que foi mandada para ca a fim de salvar… aqueles que merecem ser salvos.
Por um tempo bastante longo reinou silencio na cabina do Comandante. Nao e que Norton nao encontrasse palavras com que se expressar. Ao contrario, podia imaginar um numero excessivo de perguntas, mas nao sabia ao certo quais delas seria prudente fazer.
Finalmente fez este comentario, no tom mais benigno e inofensivo que pode arranjar:
— Esta e uma concepcao muito interessante e, embora eu nao compartilhe a sua fe, e tantalizantemente plausivel.
Nao estava sendo hipocrita nem lisonjeiro. Despida de suas conotacoes religiosas, a teoria de Rodrigo era, pelo menos, tao convincente quanto meia duzia de outras que ele tinha ouvido expor. Suponhamos que uma catastrofe estivesse prestes a abater-se sobre a raca humana e uma inteligencia superior e benevola o soubesse: isso explicaria tudo perfeitamente. Contudo, ainda restavam alguns problemas…
— Permita-me fazer um par de perguntas, Boris. Rama estara no perielio dentro de tres semanas; ai rodeara o Sol e deixara o Sistema Solar com a mesma rapidez com que veio. Nao ha muito tempo para um Dia do Juizo, ou para embarcar aqueles que… ha… foram escolhidos — como quer que isso se faca.
— E verdade. De modo que, quando chegar ao perielio, Rama tera de desacelerar e entrar numa orbita de estacionamento — provavelmente tendo como afelio a orbita da Terra. Ai talvez faca outra mudanca de velocidade e va ao encontro da Terra.
Estas palavras eram perturbadoramente persuasivas. Se Rama queria ficar no Sistema Solar, estava fazendo exatamente o que era preciso para isso. O modo mais eficiente de desacelerar era chegar tao perto do Sol quanto possivel e executar ali a manobra de freagem. Se houvesse algo de verdadeiro na teoria de Rodrigo — ou em alguma variante da mesma — nao tardaria a ser posto a prova.
— Mais uma perguntinha, Boris. Quem esta controlando Rama agora?
— Nao ha nenhuma doutrina que esclareca este ponto. Poderia ser um puro robo. Ou poderia ser um… espirito. Ai esta por que nao foi encontrada nenhuma forma de vida biologica.