os destrocos da pobre Libelula. Quando conseguiu por suas ideias em ordem, Jimmy rolou sobre si mesmo vagarosamente, em silencio, afastando-se do monstro, e esperando ser apresado a qualquer momento pelas garras deste, quando descobrisse que havia alguma coisa mais apetitosa ao seu alcance. No entanto, a criatura nao lhe prestou a menor atencao, e depois de aumentar para dez metros a distancia que os separava sentou o corpo cautelosamente, apoiando-se nas maos.

Vista dessa distancia maior, a coisa nao parecia tao temivel. Tinha um corpo baixo e chato, com cerca de tres metros de comprimento e um de largura, suportado por seis patas triarticuladas. Jimmy viu que se enganara ao supor que tivesse estado a comer, pois nem sequer parecia ter boca. O que realmente fazia era um belo trabalho de demolicao, utilizando as garras semelhantes a tesouras para cortar em pedacinhos a bicicleta celeste. Toda uma fila de manipuladores, que se pareciam extraordinariamente com maos humanas, transferia entao os fragmentos para uma pilha que crescia cada vez mais no lombo do animal.

Mas seria mesmo um animal? Se bem que essa tivesse sido a primeira reacao de Jimmy, agora tinha outras ideias. No comportamento da criatura havia uma especie de designio que sugeria uma inteligencia bastante elevada; Jimmy nao via por que um animal guiado pelo puro instinto havia de juntar cuidadosamente os pedacos esparsos da sua bicicleta celeste — a menos, talvez, que estivesse colhendo material para um ninho.

Sempre trazendo de olho o caranguejo, que ainda parecia nao fazer o menor caso dele, Jimmy pos-se laboriosamente em pe. Alguns passos vacilantes demonstraram que ele ainda podia caminhar, embora nao tivesse certeza de que poderia deixar para tras aquelas seis patas na corrida. Ligou entao o seu radio, seguro de que estaria ainda funcionando. Um choque a que ele sobrevivera nem teria sido notado pelo solido aparelho eletronico.

— Controle Central — disse baixinho. Estao me recebendo?

— Gracas a Deus! Voce esta bem?

— So um pouco abalado. Olhem isto aqui.

Voltou a objetiva da camara para o caranguejo, a tempo de apanhar a demolicao final da asa da Libelula.

— Que diabo de coisa e essa, e por que esta mastigando a sua bicicleta?

— Isso e o que eu gostaria de saber. Ja acabou com a Libelula e vou me por a fresca, para o caso de que queira fazer o mesmo comigo.

Jimmy retirou-se devagar, sem tirar os olhos de cima do caranguejo. Este, agora, dava_ voltas e mais voltas, numa espiral crescente — pelo visto, em busca de fragmentos que tivessem escapado a sua atencao; e assim, Jimmy pode observa-lo pela primeira vez em sua totalidade.

Agora que o choque inicial havia passado, podia reconhecer que nao faltava beleza ao animal. O nome de «caranguejo», que lhe dera automaticamente, era talvez um.tanto inadequado; porque, se nao fosse tao grande, poderia ter dito escaravelho. A carapaca tinha um magnifico brilho metalico; e Jimmy teria quase jurado que se tratava efetivamente de metal.

Era uma ideia interessante. Poderia ser um robo, e nao um animal? Olhou atentamente o caranguejo, com esse pensamento no cerebro, analisando todos os detalhes da sua anatomia. No lugar onde devia estar a boca via-se uma colecao de manipuladores, lembrando fortemente os canivetes multilaminados, que sao o deleite de todo garoto bulicoso; havia tenazes, sondas, grosas, e ate uma coisa que se parecia com uma broca. Nada disso, porem, era decisivo. Na Terra, o mundo dos insetos podia exibir replicas de todas essas ferramentas e de muitas outras. O problema animal-ou-robo permanecia em perfeito equilibrio na sua mente.

Os olhos, que poderiam ter resolvido a questao, deixavam-na ainda mais ambigua. Estavam tao profundamente engastados nos seus capuchos protetores que nao se podia saber se os cristalinos eram feitos de cristal ou de gelatina. Totalmente destituidos de expressao, tinham uma cor azul surpreendentemente viva. Embora se tivessem dirigido varias vezes para Jimmy, nao mostraram o menor sinal, de interesse. Na opiniao dele, talvez preconceituosa, isso decidia o nivel de inteligencia da criatura. Uma entidade — robo ou animal — capaz de desdenhar um ser humano nao podia ser muito perspicaz.

Havia parado de dar voltas e ficou imovel durante alguns momentos, como se escutasse alguma mensagem inaudivel. Depois partiu, com uma curiosa andadura bamboleante, na direcao do Mar. Andava em linha perfeitamente reta, a cinco ou seis quilometros por hora, e ja tinha percorrido uns duzentos metros quanto a mente de Jimmy, ainda nao de todo refeita do choque, registrou o fato de que as reliquias da sua bem-amada Libelula lhe estavam sendo arrebatadas. Lancou-se, indignado, em perseguicao do raptor.

Seu ato nao foi de todo ilogico. O caranguejo ia em direcao ao Mar — e, se havia socorro possivel, so poderia vir de la. Alem disso, queria descobrir o que a criatura faria com o seu trofeu; isso devia revelar alguma coisa no tocante a sua motivacao e inteligencia.

Por estar ainda machucado e rengo, Jimmy levou varios minutos a alcancar o caranguejo, que avancava resolutamente. Quando lhe chegou perto, seguiu-o a uma distancia respeitosa, ate certificar-se de que ele nao se ressentia da sua presenca. Foi entao que notou entre os destrocos da Libelula o seu cantil de agua e a sua racao de emergencia, e imediatamente sentiu fome e sede.

Ali, fugindo dele implacavelmente a cinco quilometros por hora, iam o unico alimento e a unica bebida que havia naquela metade do mundo. Era preciso apoderar-se deles a todo custo.

Cautelosamente, foi se chegando ao caranguejo pela traseira direita. Enquanto marcava passo com ele, estudou-lhe o complicado ritmo das patas ate poder prever qual delas se adiantaria em qualquer momento. Quando se sentiu pronto, murmurou um rapido «Com licenca» e avancou lesto para deitar a mao aos seus bens. Nunca sonhara que um dia teria de exercer as habilidades de um escrunchador, e estava encantado com o seu sucesso. Em menos de um segundo tornou a por pe em terra e o caranguejo nem sequer diminuiu a sua marcha regular.

Deixou-se ficar uns doze metros para tras, molhou os labios no cantil e comecou a mastigar uma barra de concentrado de carne. A pequena vitoria o fazia sentir-se muito mais feliz. Agora podia ate aventurar-se a pensar no seu futuro sombrio.

Enquanto ha vida, ha esperanca; e contudo, ele nao podia imaginar um meio de ser salvo. Mesmo que seus colegas atravessassem o Mar, como alcanca-los meio quilometro la embaixo? «Havemos de encontrar um meio de descer», prometera o Controle Central. «Essa escarpa nao pode dar volta ao mundo inteiro sem uma interrupcao em alguma parte.» Jimmy fora tentado a perguntar «Por que?», mas preferira calar.

Uma das coisas mais estranhas, para quem caminhava no interior de Rama, era que sempre podia ver o seu ponto de destino. Aqui, a curva do mundo nao escondia, revelava. Havia ja algum tempo que Jimmy sabia qual o objetivo do caranguejo; alem, naquela terra que parecia subir diante dele, havia uma cova de meio quilometro de largo. Fazia parte de um grupo de tres, no continente meridional; fora impossivel, do Cubo, ver-lhes a profundidade. Todas haviam recebido os nomes de grandes crateras lunares, e aquela de que se aproximava agora era a de Copernico. A denominacao era pouco apropriada, pois faltavam as colinas circundantes e os picos centrais. Esta nao passava de um poco profundo, com paredes perfeitamente verticais.

Quando se aproximou o suficiente para poder olhar o fundo, Jimmy viu uma agua parada, de um ominoso verde plumbeo, pelo menos meio quilometro mais abaixo. Isto a colocava aproximadamente ao nivel do Mar, e Jimmy perguntou-se se haveria alguma comunicacao entre ambos.

Pelo interior do poco descia uma rampa em espiral, completamente escavada na parede vertical, de modo que o efeito se parecia bastante com o estriamento de uma imensa alma de canhao. Impressionava o numero de voltas; so depois de acompanha-las atraves de varias revolucoes, embaralhando-as cada vez mais, foi que Jimmy compreendeu que nao se tratava de uma rampa, mas de tres, completamente independentes e separadas umas das outras por uma distancia angular de cento e vinte graus. Em qualquer ambiente que nao fosse Rama, esse conceito teria sido um surpreendente tour de force arquitetonico. As tres rampas conduziam diretamente para a agua e mergulhavam na sua superficie opaca. Proximo a linha d'agua Jimmy pode distinguir um grupo de tuneis ou cavernas negras; tinham um ar bastante sinistro, e ele perguntou a si mesmo se seriam habitadas. Talvez os ramaianos fossem anfibios…

O caranguejo aproximou-se da beira do poco e Jimmy presumiu que ele fosse descer uma das rampas — talvez levando os destrocos da Libelula a alguma entidade que fosse capaz de avalia-la. Ao inves disso, a criatura caminhou direto ate a beira, estendeu quase metade do corpo sobre o abismo sem a menor hesitacao, se bem que um erro de alguns centimetros poderia ser desastroso — e sacudiu vigorosamente os ombros. Os fragmentos da Libelula desceram, esvoacantes, para as profundezas; foi com lagrimas nos olhos que Jimmy os viu desaparecer. Eis em que redundava, pensou amargamente, a inteligencia daquela criatura.

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