de representar um papel; estava no palco. Mas ja nao me parecia agora tao amargo. Esta personagem, tao fria e exterior, que nao suscitava da minha parte a menor participacao, tinha sido eu propria dez dias antes. Entretanto, enquanto eu falava, Gino despia-me impaciente e apercebi-me uma vez mais, como no momento em que subi para o carro, de que continuava a gostar dele, o que me fez pensar com tristeza e despeito que era talvez mais o meu corpo, sempre pronto a aceitar o prazer, do que o meu espirito, agora distante, que me tornava tao indulgente e disposta a perdoar. Ele acariciava-me e beijava-me e as suas caricias e os seus beijos faziam-me arder o cerebro: o prazer dos sentidos era mais forte do que a revolta do coracao.

— Matas-me — murmurei cheia de desejo, caindo sobre a cama.

Mais tarde enfiei as pernas debaixo dos lencois; ele fez o mesmo e ficamos deitados com a colcha bordada deste leito luxuoso puxada ate ao queixo. Uma especie de dossel, suspenso sobre as nossas cabecas, deixava cair em torno do travesseiro varias camadas de tule branco e vaporoso. Todo o quarto era branco, com cortinados leves nas janelas, lindos moveis baixos encostados as paredes e objectos brilhantes de vidro, de marmore e de metal. Os lencois finos e sedosos pareciam acariciar-me o corpo, o colchao cedia docemente a cada movimento, acordando nos membros um profundo desejo de dormir e de repousar. Da casa de banho, pela porta aberta, o ruido da agua caindo na tina chegava-me aos ouvidos como um gorjeio tranquilo. Sentia o maior bem-estar e nenhum rancor contra Gino. O momento pareceu-me propicio para lhe dizer que sabia tudo, porque estava certa de lho dizer gentilmente, sem sombra de ressentimento.

— Entao, Gino — disse-lhe com voz acariciadora, depois de um longo silencio —, a tua mulher chama-se Antonieta Partini?

Com certeza que dormitava, porque teve um violento sobressalto, como se o sacudissem bruscamente pelos ombros.

— Mas, que estas a dizer? — perguntou.

— E a tua filha chama-se Maria, nao e?

Quis protestar de novo, mas olhou-me nos olhos e compreendeu que seria inutil. Tinhamos a cabeca na mesma almofada, os rostos lado a lado e eu falava-lhe quase sobre a sua boca.

— Pobre Gino! — continuei. — Porque me disseste tantas mentiras?

— Porque te amava! — respondeu-me com violencia.

— Se me amasses realmente, devias ter pensado que logo que descobrisse a verdade iria sofrer muito… Mas nao pensaste nisso, nao foi, Gino?

— Amava-te, perdi a cabeca…

— Isso basta — interrompi —, de momento magoou-me muito… Nao pensava que fosses capaz… Mas agora acabou-se… nao falemos mais nisso… Para ja, vou tomar banho.

Desembaracei-me das roupas, levantei-me e fui para a casa de banho. Gino deixou-se ficar onde estava.

A tina estava cheia de agua quente e azulada, que contrastava de forma agradavel com as ceramicas brancas e as torneiras cintilantes. Entrei na tina e pouco a pouco mergulhei no liquido escaldante.

Uma vez estendida no fundo da tina, fechei os olhos. Nao vinha qualquer ruido do quarto ao lado. Gino ruminava com certeza a minha declaracao e procurava elaborar um plano para nao me perder. Sorri ao pensar nele, perdido na grande cama de casal com a noticia dada em pleno rosto, como uma bofetada. Mas sorria sem maldade, como se ri de uma coisa comica e que em nada nos afecta, porque nao sentia o menor rancor contra ele. Conhecendo-o agora como ele era na realidade, tinha quase a impressao de nutrir por ele uma especie de afeicao. Em seguida, ouvi-o andar no quarto; devia estar a vestir-se. Passado um momento, apareceu a porta da casa de banho e olhou-me com olhos de cao batido, como se nao ousasse entrar.

— Entao nao nos tornamos a ver?… — disse-me em voz baixa depois de um longo silencio.

Compreendi que realmente gostava de mim, embora a sua maneira, sem que lhe repugnasse mentir-me e atrair-me a uma armadilha.

Lembrei-me de Astarito e pensei que Astarito tambem me amava — mas tambem a sua maneira. Respondi-lhe, enquanto ensaboava um braco.

— Porque nao nos havemos de ver mais? Se nao te quisesse tornar a ver, nao teria vindo hoje. Continuaremos a ver-nos… mas menos vezes.

Estas palavras pareceram dar-lhe coragem.

— Queres que te ensaboe? — perguntou-me entrando na casa de banho.

Nao pude deixar de pensar em minha mae, tambem ela cheia de atencoes e cuidados comigo.

E respondi secamente:

— Se quiseres… As costas, que eu nao chego la.

Gino agarrou o sabonete e a esponja; pus-me de pe e ele ensaboou-me as costas todas. Olhava-me no espelho que estava em frente da tina, a toda a altura, e parecia-me ser a dona de todas aquelas belas coisas. Ela tambem se poria de pe como eu estava agora e uma criada de quarto, uma pobre rapariga como eu, a ensaboaria e a lavaria respeitosamente e com mil cuidados para nao a arranhar. Pensava em como devia ser agradavel, em lugar de se usar as proprias maos, ser-se servida por outra pessoa, ficar tranquila e inerte enquanto outra, cheia de respeito e solicitude, se incomodaria para nos servir.

A ideia que me assaltou quando entrara pela primeira vez nesta casa de que toda nua, desembaracada dos meus trapos, eu valia tanto como a patroa de Gino, voltou a assaltar-me. No entanto, o meu destino era diferente do dela; era uma injustica. Irritada, disse a Gino :

— Ja chega!

Ele foi buscar um roupao de banho e enquanto eu saia da tina pousou-mo nos ombros para que me pudesse enrolar nele. Tentou beijar-me, talvez para ver se eu lho permitiria. Eu, de pe, envolta no tecido branco, deixei-o beijar-me o pescoco. Em seguida comecou a friccionar-me em silencio, o corpo todo, comecando pelos tornozelos e subindo ate ao seio com um zelo e uma habilidade como se nao tivesse feito outra coisa durante toda a vida; fechei os olhos imaginando de novo que eu era a patroa e ele a criada de quarto. Gino tomou a minha atitude passiva por uma entrega e bruscamente senti que deixara de me friccionar e me acariciava. Entao repeli- o, deixei cair a toalha, e com o corpo ja bem seco tornei a entrar no quarto, nas pontas dos pes. Gino ficou na casa de banho a despejar a tina. Vesti-me a pressa e olhei em torno examinando o mobiliario. Parei em frente do toucador, semeado de objectos de madreperola e ouro. Reparei, num canto, no meio de escovas e de frascos de perfume, numa pequena caixa de po de arroz toda de ouro. Peguei nela e olhei-a. Era muito pesada e parecia macica. Era quadrada, inteiramente cinzelada e um grande rubi servia de fecho. Tive uma impressao, nao tanto de tentacao como de descoberta; de futuro podia fazer tudo, ate mesmo roubar. Abri a mala e meti nela a caixa, que caiu com todo o seu peso entre as moedas miudas e as chaves de casa. Experimentei ao tira-la uma alegria sensual muito parecida com a que me inspirava o dinheiro recebido dos amantes. Para dizer a verdade, nao sabia o que iria fazer com uma coisa tao preciosa, que nao dizia nem com as minhas toilettes nem com a vida que levava. Tinha a certeza de que nunca me serviria dela. Mas roubando obedeci a logica que determinava dai em diante as vicissitudes da minha vida. Pensava que uma vez a casa construida era preciso por-lhe um tecto.

Gino entrou no quarto. Com um cuidado servil, arranjou a cama e todos os objectos que lhe pareceram ter sido desarrumados.

— Ora! Ora! — disse-lhe com desdem, quando o vi, depois deste trabalho, olhar em volta com ansiedade, para se certificar se tudo estava no seu lugar habitual. — Ora! A tua patroa nao da por coisa alguma. Ainda nao e desta vez que vais para a rua!

Notei que ao ouvir as minhas palavras o seu rosto se crispou dolorosamente e senti remorsos por te-las dito, porque eram maldosas e nem sequer eram sinceras.

Nao abrimos a boca, nem enquanto desciamos a escada interior nem depois no jardim, quando subimos para o carro. Tinha anoitecido havia muito. Assim que o carro comecou a percorrer as ruas do bairro elegante, como se eu esperasse apenas por esse momento, comecei a chorar docemente. Nao sabia porque chorava, mas a minha amargura era enorme.

Nao sou feita para representar papeis de mulher desiludida ou desesperada, e durante toda a tarde em que me tinha esforcado por parecer serena, muitos dos meus gestos e muitas das minhas palavras traziam a marca da desilusao e da raiva. Pela primeira vez, atraves das lagrimas, experimentava um verdadeiro rancor contra Gino, cuja traicao me levava a sentimentos que nao gostava de sentir e que nao estavam de acordo com o meu caracter. Pensava que sempre fora doce e boa e que talvez doravante ja nao o fosse, e esta ideia enchia-me de desespero. Teria querido perguntar a Gino: “Porque fizeste tudo isto? Como poderei esquecer?” Mas calei-me,

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