vezes durante uma hora. Nao tinha mais que passar-lhe a mao de vez em quando sobre a cabeca, levemente, como as maes fazem aos filhos. De vez em quando gemia, talvez mesmo chorasse. Nunca amei Astarito, mas nesses momentos inspirava-me uma grande compaixao, porque compreendia que sofria e que nao havia qualquer meio de lhe aliviar o sofrimento.
Era com a maior amargura que falava da familia; da mulher, que odiava, dos filhos, que nao amava, dos parentes, que lhe tinham dado uma infancia dificil, e depois, quando ele era ainda inexperiente, o tinham obrigado a fazer um casamento desastroso. Ao seu trabalho nem aludia. Chegou ate a dizer-me uma vez com uma estranha expressao:
— Nas casas ha muitos objectos que nao sao limpos, mas que sao uteis… Eu sou um desses objectos: o caixote do lixo…
Mas, de uma maneira geral, tenho a impressao de que considerava a sua profissao perfeitamente honrosa. Tinha um grande sentimento do dever, e compreendi, na visita que lhe fiz no Ministerio, que era um funcionario modelo: zeloso, perspicaz, incorruptivel, rigido. Se bem que pertencesse a policia politica, fazia questao de dar a entender que nada percebia de politica.
— Sou uma roda de uma engrenagem que gira com as outras rodas do rodado — disse-me um dia. — Nao sou eu quem manda: eu executo!
Astarito queria ver-me todas as noites, mas, alem do facto de nao querer, como ja disse, ligar-me a qualquer homem, aborrecia-me e deixava-me mal disposta com a sua gravidade convulsa e as suas bizarrias, tanto que, apesar da piedade que me inspirava, nao podia reprimir um suspiro de alivio quando ele se retirava. Tentei portanto ve-lo so raramente, nao mais que uma vez por semana. Esta reducao dos nossos encontros ao minimo contribuiu certamente para manter o ardor e a avidez da sua paixao por mim; talvez que, se eu tivesse aceitado as propostas, que constantemente me fazia para ir viver com ele o fosse habituando a minha presenca e acabasse por me ver como eu realmente era: uma pobre rapariga como havia tantas. Deu-me o numero do telefone que tinha na mesa de trabalho, no Ministerio. Era um numero secreto. As unicas pessoas que o conheciam eram o prefeito da policia, o chefe do Governo, o ministro e mais um grupo de pessoas importantes. Quando lhe telefonava respondia logo, mas, assim que compreendia que era eu, a sua voz, que antes era tranquila e limpida, tremia e comecava a balbuciar. Estava verdadeiramente submisso, subjugado como um escravo. Lembro-me de que uma vez, distraida, acariciei-lhe a cara sem que mo tivesse pedido. Agarrou-me logo a mao para a beijar com fervor. Chegou a pedir depois que lhe tornasse a fazer espontaneamente esta caricia, mas as caricias nao se fazem de encomenda.
10
Muitas vezes, ja o disse, nao tinha vontade de ir procurar os homens na rua e nao saia de casa. Ja nao me apetecia ficar junto de minha mae, porque, embora houvesse entre nos um entendimento tacito para se nao falar do meu “oficio”, a conversa acabava sempre por girar a volta disso, aborrecida e cheia de alusoes; quase preferia que as coisas se dissessem claramente. Fechava-me pois no meu quarto, recomendando a minha mae que nao me incomodasse, e estendia-me em cima da cama. O meu quarto dava para o patio atraves de uma janela sempre fechada; nenhum barulho chegava do exterior. Dormitava durante algum tempo, depois levantava-me e girava no quarto, absorvida em qualquer trabalho, como arrumar alguns objectos ou limpar o po aos moveis. Estas ocupacoes serviam-me de estimulante para por em marcha o maquinismo do meu cerebro e para criar a minha volta uma atmosfera de intimidade concentrada e bem entrincheirada. Comecava por pensar com profunda crueza e depois acabava por em nada pensar.
Durante estas horas de solidao havia sempre um momento em que era tomada por um imenso espanto: parecia-me de repente ver, com uma clarividencia gelada, toda a minha vida e eu propria, por todos os lados e de todas as maneiras. As coisas que eu fazia tomavam a clareza de uma sintese. Dizia-me a mim propria: “Trago aqui muitas vezes homens que encontro na rua sem me conhecerem… Lutamos enlacados na cama, como dois inimigos… Depois dao-me uma folha colorida de papel impresso. No dia seguinte troco este papel por alimentos, vestidos e outras coisas necessarias.” Mas este enunciado nao era mais que um primeiro passo no caminho de um espanto mais profundo. Servia para me desembaracar o espirito da apreciacao que nao cessava de me chocar em relacao ao meu oficio; mostravam-me este oficio como um conjunto de gestos privados de senso, equivalentes a outros gestos de oficios diferentes. Pouco depois, um ruido longinquo vindo da cidade, ou o estalar da mobilia no quarto, davam-me um sentimento obscuro e quase delirante da minha presenca ali. Dizia a mim propria: “Estou aqui e poderia estar noutro lado. Poderia estar ha mil anos ou daqui a mil anos… Poderia ser uma negra ou uma velha ou mesmo loura, pequenina…” Pensava que tinha saido de uma obscuridade sem limites, que tornaria a entrar numa outra obscuridade igualmente ilimitada e que a minha breve passagem nao seria notada senao por gestos absurdos e fortuitos. Entao compreendi que a minha angustia nao era devida as coisas que eu fazia, mas, profundamente, ao unico facto de viver; nao era nem bom, nem mau, mas simplesmente doloroso e sem razao de ser.
Durante aqueles instantes este estado de alucinacao provocou-me um arrepio que me percorreu o corpo todo e me pos os cabelos em pe, com formigueiro na raiz. Tive de repente a impressao de que as paredes da casa, a cidade, e ate o mundo, se desvaneciam, que me encontrava suspensa num espaco vazio, negro e sem limites, e, para cumulo, suspensa com os meus trapos, os meus sonhos, o meu nome, a minha profissao. Uma rapariga chamada Adriana suspensa no nada. Parecia-me que esse nada era uma coisa solene, terrivel e incompreensivel e que o aspecto mais triste de toda a questao era apresentar-me precisamente nesse nada com os modos e a aparencia que tinha a noite para me apresentar na pastelaria onde Gisela me esperava. Nao me consolava a ideia de que os outros se moviam e agitavam de uma maneira tambem frivola e inadequada dentro deste vazio. Admirava-me so de que nao tivessem disso a consciencia, e, como acontece quando muita gente descobre ao mesmo tempo o mesmo facto, nao comunicassem as suas observacoes e nao falassem nelas mais frequentemente.
Acontecia-me nesses momentos ajoelhar-me e rezar, mais talvez por habito de infancia do que por vontade clara e consciente. Mas nao rezava empregando as expressoes habituais das oracoes; pareciam-me muito longas para o meu subito estado de alma. Ajoelhava-me com tal violencia que as vezes as pernas me doiam durante muitos dias, e rezava assim, com forca, com uma voz desesperada: “Cristo, tem piedade de mim”! Nao era uma verdadeira oracao, mas uma especie de formula magica, pela qual esperava dissipar os meus terrores e reencontrar a realidade habitual. Depois de gritar desta maneira, impetuosamente, com todas as forcas do meu corpo, ficava muito tempo absorta, com a cara entre as maos. Por fim, ja em nada pensava, aborrecia-me e ficava a Adriana de sempre que se encontrava no meu quarto. Apalpava o corpo, admirando-me de o encontrar intacto e presente, levantava-me e ia deitar-me. Sentia-me cansada, dolorida, como se tivesse rolado muito tempo por um talude pedregoso. Adormecia logo em seguida.
Estes estados de alma, todavia, nao exerciam qualquer influencia na minha vida habitual. Continuava a ser a Adriana habitual, com o seu caracter de sempre, que encontrava os homens na rua e os trazia para casa por dinheiro, que se dava com a Gisela, que falava de coisas sem importancia com sua mae e com os outros. Por vezes parecia-me estranho ser assim tao diferente, na solidao e em sociedade, nas minhas relacoes comigo propria e nas que tinha com os outros. Mas nao imaginava que era so eu a experimentar sentimentos tao violentos, tao desesperados. Pensava que isso aconteceria a todas as pessoas. pelo menos uma vez por dia; sentir a vida reduzir-se a um unico estado de angustia inefavel e absurdo. E com os outros tambem, esta consciencia nao produzia efeitos visiveis. Logo que saiam de si proprios, partiam para a sua vida habitual, representando com sinceridade um papel hipocrita. Esta ideia confirmava a minha conviccao de que todos os homens, sem excepcao, sao dignos de compaixao, quanto mais nao seja so pelo facto de estarem vivos.
SEGUNDA PARTE