Mas isto foi dito num tom de voz de quem ja esta arrependido da sua brutalidade e que no fundo ficasse bastante satisfeito com a intervencao do amigo.
— Que maneiras sao essas? — tornou o outro. — Que diabo! Convidamo-las, elas confiam em nos, e em paga dizemos-lhes insolencias e insultamo-las. Achas bem? Dirigindo-se agora a Gisela, disse-lhe, ao mesmo tempo com gentileza e com autoridade:
— Nao faca caso, menina. Ele bebeu talvez um pouco mais do que devia. Garanto-lhe que nao tinha a intencao de a ofender.
O louro fez um gesto de protesto, mas o meu companheiro forcou-o a calar-se pondo-lhe a mao num braco e dizendo-lhe em tom peremptorio:
— Ja te disse que bebeste demais e que nao tinhas intencao de a ofender. E agora, vamos embora!
— Eu nao aceitei a vossa companhia para ser insultada — comecou Gisela, numa voz pouco firme.
O moreno deu-lhe imediatamente razao.
— Com certeza! Ninguem gosta de ser insultado. E tudo quanto ha de mais natural…
O louro olhava-nos com ar aparvalhado. Tinha o rosto encarnado, coberto de marcas irregulares, como pisaduras, uns olhos azuis perfeitamente redondos e uma grande boca sensual e glutona. Olhou primeiro para o amigo, depois para Gisela, e finalmente desatou a rir:
— Palavra de honra que nao percebo nada! — exclamou. — Porque estamos nos a discutir? Nao ha maneira de me lembrar como isto comecou. Em lugar de nos divertirmos, zangamo-nos! Somos completamente idiotas, nao ha duvida!
Ria com evidente satisfacao. E, sem deixar de rir, voltou-se para Gisela e disse-lhe:
— Va! Facamos as pazes! Sinto que fomos feitos um para o outro!
Gisela tentou sorrir e declarou:
— Realmente, eu tambem tinha essa impressao…
O louro continuou, sempre a rir a bandeiras despregadas:
— Eu tenho um rico feitio, nao e verdade, Jaime? E questao de saber lidar comigo, e mais nada… Vamos! Venha de la uma beijoca…
Debrucou-se para Gisela e passou-lhe um braco pela cintura. Ela desviou levemente a cabeca e disse- lhe:
— Espera!
Tirou um lenco de dentro da bolsa, limpou a boca com ele e depois beijou-o secamente, com um ar muito digno. Enquanto esse beijo durou, o louro agitava as maos como se estivesse a afogar-se e tentasse nadar. Separaram-se e entao ele pos o motor a trabalhar com gestos pretensiosos e solenes.
— Ora pois! Juro que daqui para o futuro nao lhes darei uma unica razao de queixa. Vou ser muito serio, muito bem educado, muito distinto… Autorizo a esbofetearem-me, se nao me portar bem…
O carro pos-se de novo em movimento.
Durante o resto do trajecto ele nao cessou de falar e de rir animadamente; por vezes mesmo chegou a tirar as duas maos do volante para gesticular. O meu companheiro, pelo contrario, depois da sua breve intervencao, tinha voltado a sombra e ao silencio. Eu comecava a simpatizar fortemente com ele, sentindo-me, ao mesmo tempo, curiosa e atraida; agora, que volto a pensar nisso, passado tanto tempo, compreendo ter sido nesse momento que me apaixonei por ele, ou, pelo menos, que comecei a consubstanciar na sua pessoa todas as coisas que amava e de que ate entao estivera privada. Afinal de contas, o amor tem de ser um sentimento completo e nao apenas uma pura satisfacao dos sentidos; e eu continuava, teimosamente, em busca dessa perfeicao que pensara existir em Gino. Talvez esta fosse a primeira vez em toda a minha vida, e nao apenas desde que exercia este oficio, que se me deparava uma pessoa como este homem, com tais maneiras e uma tal voz. O primeiro pintor de quem eu tinha sido modelo assemelhava-se a ele ate certo ponto, mas era mais frio e mais seguro de si; alias, mesmo que ele o nao tivesse querido, eu ter-me-ia apaixonado por ele do mesmo modo, se bem que, por motivos diferentes, a voz e as atitudes deste rapaz suscitassem na minha alma os sentimentos que se tinham apossado de mim a primeira vez que tinha estado na casa dos patroes de Gino. Assim como, ao ver a ordem, o luxo e a limpeza dessa casa, eu tinha pensado que, sem um ambiente como esse, a vida nao valia a pena ser vivida, assim agora a voz e os gestos deste rapaz, tao gentis e tao calmos, inspiravam-me nao sei que atraccao profunda e comovida. Ao mesmo tempo ele acordou em mim um violento desejo fisico; sentia-me ansiosa por ser acariciada pelas suas maos, beijada pela sua boca; compreendi que acabava de se produzir em mim essa mistura imponderavel, mas veemente das aspiracoes antigas e do prazer actual que e a propria essencia do amor e marca infalivelmente o seu nascimento. Ao mesmo tempo temia que ele se apercebesse dos meus sentimentos e me desprezasse. Dominada por este medo, estendi a mao e apertei a dele. Mas ele nao teve qualquer reaccao. Entao uma grande perplexidade tomou conta de mim; sentia que a sua imobilidade me impunha uma atitude de desinteresse, mas essa atitude era superior as minhas forcas. O carro, dobrando bruscamente uma esquina, atirou-nos um contra o outro; fingi ter perdido o equilibrio e deixei cair a cabeca nos seus joelhos. Ele estremeceu, mas nao disse uma palavra nem fez um gesto. Sentindo com alegria que o carro corria velozmente, fiz como fazem os caes: meti a minha cara no meio das suas maos, beijei-as e passei-as no meu rosto numa caricia que eu quisera ardentemente fosse afectuosa e espontanea. Compreendendo que estava de cabeca perdida, admirei-me de como meia duzia de palavras amaveis haviam bastado para isso. Mas ele nao me concedeu a caricia desejada e tao humildemente pedida, e retirou as maos da minha cara. Precisamente neste momento o carro parou.
O louro apeou-se, e com uma galantaria trocista ajudou Gisela a descer. Descemos tambem, abri a porta da escada e entramos. Gisela e o louro tomaram a dianteira. O rapaz ficou para tras e a meio da escada deitou as maos a saia de Gisela, levantou-a e descobriu-lhe as coxas brancas e uma parte das nadegas, que ela tinha pequenas e magras.
— Subiu o pano! — exclamou com uma gargalhada. Gisela limitou-se a compor o fato com um gesto seco. Pela minha parte, pensando que essa atitude ordinaria tinha desagradado ao meu companheiro, tentei faze-lo compreender que partilhava da sua opiniao.
— E divertido, o seu amigo! — disse.
— E — respondeu este secamente.
— Ve-se que a vida lhe corre bem…
Entramos em casa em bicos de pes e eu conduzi-os directamente para o meu quarto. Quando a porta se fechou, o louro sentou-se na beira da cama e comecou tranquilamente a despir-se, sem nos ligar a minima importancia. Nao se calava nem deixava de rir, falando de quartos de hotel e de quartos particulares e tentando interessar-nos por uma aventura que tivera recentemente.
— Ela disse-me: “Sou uma mulher honesta; nao quero ir consigo para um hotel.” Entao eu respondi: “Os hoteis estao cheios de mulheres honestas!” “Mas eu — disse ela — nao quero dizer o meu verdadeiro nome!” E eu disse-lhe: “Passaras por minha mulher! Para a importancia que isso tem…” Finalmente seguimos para o hotel, mas quando chegou o momento decisivo complicou toda a nossa vida. Comecou a dizer que tinha remorsos, que nao queria, que era, na verdade, uma mulher honesta, o demonio! Acabei por perder a cabeca e tentar empregar a forca. Pois sim! Abriu a janela e berrou que se atirava para a rua se eu insistisse… “Bem — disse eu. — Compreendo. A culpa foi minha. Nunca te devia ter trazido para aqui!” Entao a criaturinha sentou-se na beira da cama e desatou a choramingar, enquanto me contava uma historia capaz de fazer chorar um morto… Nao sou capaz de a repetir, porque me esqueci. Mas lembro-me de que, no fim, estava comovidissimo e pouco faltou para me por de joelhos na sua frente e pedir-lhe perdao de ter pensado mal dela… “Esta bem — concordei —, nada se passara entre nos. Vamos so deitar-nos e dormir com muito juizo ate amanha.” E foi o que fizemos; adormeci imediatamente; mas, a meio da noite, acordo, e ela tinha desaparecido. Ela e a minha carteira. Honesta, hem?
Desatou a gargalhada, com uma alegria tao irresistivel e tao contagiosa que eu tive de me rir tambem e a propria Gisela nao conseguiu impedir-se de sorrir. Ele tinha tirado o fato, a camisa, os sapatos e as peugas. Ficara em ceroulas de malha de la, justas e compridas, de um tom rosado de peito de rola, que o cobriam desde os tornozelos ate ao pescoco, dando-lhe o aspecto de um equilibrista ou de um bailarino. Esta peca de roupa, geralmente so usada por homens muito idosos, aumentava ainda a comicidade do seu aspecto. Nesse momento esqueci-me da sua brutalidade e quase cheguei a sentir simpatia por ele. Gostei sempre das pessoas alegres, e eu propria tenho mais tendencia para a alegria do que para a tristeza. O rapaz pos-se a passear pelo quarto, brincando como um miudo, pequenino, gorducho, orgulhoso das suas belas ceroulas como de um uniforme.