estava terminado entre nos, nao queria que este fim fosse brusco e desagradavel. Nunca gostei dos cortes decisivos nem de interrupcoes bruscas. Acho que as coisas da vida devem morrer por si, assim como nascem, por indiferenca ou por habito, uma vez que o habito e uma variedade de fiel aborrecimento; gosto de as sentir morrer assim, naturalmente, sem que seja por minha culpa nem por culpa de outrem, e ve-las pouco a pouco ceder o lugar a outras. Alem de tudo, estas mudancas claras e precisas nao existem; quando se quer mudar precipitadamente, corre-se o risco de ver desabrochar com viva tenacidade, quando menos se espera, os velhos habitos que se tinha a ilusao de ter arrancado de um so golpe e de uma maneira definitiva. Queria que as caricias de Gino acabassem por me ser tao indiferentes como as suas palavras; temia, se nao deixasse o tempo agir, ve-lo ressuscitar a cada instante na minha vida, obrigando-me contra vontade a retomar as nossas antigas relacoes.
Uma outra pessoa que tornou a entrar na minha vida naquele momento foi Astarito. Com ele foi tudo ainda mais simples do que com Gino. Gisela via-o as escondidas e eu supus que ele tinha relacoes com ela so para ter ocasiao de saber noticias minhas. Fosse como fosse, Gisela espiava o momento favoravel para me falar dele; quando lhe pareceu que ja tinha passado bastante tempo e que eu ja estaria mais calma, chamou-me de parte para me dizer que ele lhe pedira noticias minhas.
— Nada me disse de preciso — acrescentou —, mas senti que ainda estava apaixonado por ti… Ate me fez pena… parecia muito infeliz… Nada me disse, repito-te, mas percebi que tinha grande desejo de te tornar a ver… Agora, depois de tudo…
Interrompi-a para lhe dizer:
— Ouve, e inutil continuar a falar dessa maneira.
— De que maneira?
— Com tantas precaucoes! Diz antes francamente que te mandou, que me quer ver e que te comprometeste a levar-lhe a minha resposta.
— Admitindo que seja assim — concordou, desconcertada. — Entao?
— Entao? — respondi, tranquila. — Diz-lhe que nada me impede de o ver… mas como tambem tenho outros, bem entendido que e de tempos a tempos, sem compromisso.
Ela ficou estupefacta com a minha calma; estava convencida de que eu odiava Astarito e nunca consentiria em tornar a ve-lo. Nao compreendia que o odio e o amor tinham morrido para mim. Como sempre, pensou que escondia qualquer intencao.
— Tens razao — disse, passados uns instantes, com ar reflectido —, eu no teu lugar faria o mesmo… Ha casos nos quais tem que se passar por cima das antipatias. Astarito ama-te de verdade. Era capaz de anular o seu casamento para casar contigo… Nao es parva, tu! E eu que te julgava uma ingenua!
Gisela nunca me tinha compreendido; sabia por experiencia que seria tempo perdido tentar abrir-lhe os olhos; por isso fitei-a com ar desenvolto e respondi-lhe:
— E assim mesmo — deixando-a num estado de alma onde a inveja se misturava com a mais injuriosa admiracao.
Comunicou a minha resposta a Astarito e tornei a ve-lo na mesma pastelaria onde encontrei pela primeira vez Jacinto. Gisela tinha razao; ele continuava a amar-me freneticamente; logo que me viu ficou palido como um morto, perdeu toda a seguranca e nao abriu a boca. Esta paixao era mais forte do que ele. Penso que certas mulheres do povo, simples, como minha mae, por exemplo, tem razao quando, contando historias de amor, declaram que certos homens foram enfeiticados pela amante. Sem querer e sem dar por isso, eu exercia sobre Astarito uma especie de sortilegio; ele tinha consciencia disso, e se bem que tentasse livrar-se com todas as forcas nao o conseguia. Tinha, de uma vez para sempre, feito dele um subordinado; de uma vez para sempre tinha-o desarmado, paralisado e reduzido a nada. Explicou-me mais tarde que por vezes, quando estava sozinho, tentava estudar o papel da personagem fria e desdenhosa que queria representar comigo, indo ate ao ponto de decorar frases, mas que quando me via o sangue fugia-lhe do rosto e uma especie de angustia oprimia-lhe o peito, o espirito turvava-se-lhe, a lingua recusava-se a falar. Tinha a impressao de nao poder suportar o meu olhar, perdia a cabeca, experimentava o desejo irresistivel de se lancar de joelhos diante de mim e de me beijar os pes.
Realmente, ele nao era como os outros homens; quero dizer que dava a impressao de estar obcecado. Na noite em que nos tornamos a encontrar, depois de termos ido jantar juntos ao restaurante, sempre num silencio terno e crispado, apenas chegados a minha casa, obrigou-me a contar em pormenor, sem nada omitir, toda a minha vida depois do dia do passeio a Viterbo ate ao meu rompimento com Gino.
— Mas porque te interessa isso tanto? — perguntei, muito admirada.
— Por nada — respondeu. — Mas para ti que mal tem isso? Nao te preocupes comigo, conta!
— Pela minha parte nao me importo! — respondi, encolhendo os ombros. — Se isso te da prazer!
E minuciosamente, como me recomendara que o fizesse, contei-lhe tudo o que se passara depois do passeio: como fora a explicacao com Gino, como seguira os conselhos de Gisela, como encontrara Jacinto. So nao contei a historia da caixa de po-de-arroz, nem sei bem porque, talvez para nao o colocar numa situacao falsa, sendo ele, como era, policia. Fez-me imensas perguntas, particularmente sobre o meu encontro com Jacinto. Parecia que nunca tinha os pormenores suficientes: dir-se-ia que nao queria so saber as coisas, mas ve-las, toca- las e participar nelas, em suma. Nao sei quantas vezes me interrompeu para me dizer:
— E tu, que fizeste?
Ou ainda:
— Mas ele, que te fez?
Quando eu acabava beijava-me, gaguejando:
— Tudo isto foi por minha culpa!
— Nao — respondi, um pouco contrariada. — Nao foi culpa de ninguem.
— Sim! Foi por minha culpa! Fui eu quem te destruiu! Se nao me tivesse portado daquela maneira em Viterbo, tudo se teria passado de uma maneira diferente!
— Enganas-te! — disse-lhe vivamente. — Se alguem esta em falta e Gino: tu nada tens que ver com isto! Em Viterbo, meu caro, quiseste possuir-me a forca. As coisas que se obtem dessa maneira nao contam! Se Gino nao me tivesse enganado, eu teria casado com ele; depois contar-lhe-ia o que se havia passado e seria como se nunca te tivesse conhecido!
— Nao, foi por minha causa! Aparentemente a culpa pode ser de Gino… mas no fundo so eu fui o culpado, so eu!
Parecia ter grande empenho em considerar-se culpado: mas julguei compreender que, longe de sentir remorsos, tinha prazer em pensar que me tinha corrompido e desnudado. Sentia prazer… e dizer muito! Excitava-o. Talvez fosse esse o motivo principal da sua paixao por mim. Compreendi isso logo que me apercebi de que muitas vezes, durante os nossos encontros, insistia para que lhe contasse com pormenores o que se passava entre os meus amantes ocasionais e eu. No decorrer destas descricoes ficava com uma cara alterada, tensa, atenta, que me desagradava e me fazia corar. Logo a seguir atirava-se para cima de mim, e enquanto me possuia repetia-me com uma intensa paixao palavras injuriosas, brutais, obscenas, que eu nao posso repetir e que me pareciam ofensivas ate para a mulher mais depravada. Como esta estranha atitude podia estar ligada a sua adoracao por mim nunca o compreendi; do meu ponto de vista, e impossivel amar uma mulher sem a respeitar; mas no seu caso, o amor e a crueldade pareciam misturar-se, emprestando um ao outro a sua cor e a sua forca. Algumas vezes pensava que esta singular volupia que sentia em me julgar degradada por sua culpa era-lhe sugerida pelo seu trabalho de policia, o qual consistia precisamente, como o percebi, em procurar o ponto fraco dos acusados, corrompe-los e avilta-los de maneira que se tornassem inofensivos. Chegou mesmo a dizer-me, ja nao sei a que proposito, que todas as vezes que conseguia fazer confessar ou domar um acusado, de uma maneira ou de outra, sentia uma satisfacao particular, quase fisica, parecida com a da posse amorosa. “O acusado e como uma mulher — explicava-me. Enquanto resiste tem a cabeca alta. Mas quando cedeu, uma vez so que seja, nao e mais que um farrapo que se pode retalhar como e onde se quiser.” Portanto, parecia-me mais provavel que o seu caracter cruel e voluptuoso fosse nele uma coisa inata, e se escolhera esta profissao era porque tinha feitio para ela e nao o caso contrario.
Astarito nao era feliz; ainda mais: a sua infelicidade sempre me pareceu a mais completa e a mais irremediavel que vi, porque nao provinha de qualquer motivo exterior, mas de uma incapacidade, de uma inseguranca que nunca consegui apreender. Quando me fazia contar as minhas experiencias profissionais tinha o costume de se ajoelhar na minha frente, de pousar a cabeca nos meus joelhos e ficar imovel nesta posicao as