Naturalmente eu nao deixava transparecer os meus sentimentos para nao a magoar, sem contar que havia certas coisas que deveria dizer primeiro a mim antes de as dizer a ela. Mas de tempos a tempos escapavam-me gestos de contrariedade. Tinha a impressao de gostar menos dela, agora que estava grande e gorda e caminhava rolando as ancas, do que quando berrava, corria e se chorava todo o dia, desgrenhada e avida. Chegava por vezes a perguntar a mim propria: “Se tivesse conseguido o bem-estar por meio de um bom casamento, a minha mae teria engordado desta maneira?” Hoje penso que sim; nao sei que sintoma ignobil eu julgava notar na sua gordura; atribuo-o agora ao olhar que lhe lancava, carregado, mesmo sem querer, de clarividencia e remorso.

Nao escondi durante muito tempo a Gino a minha nova condicao. Tive mesmo a ocasiao de lha revelar bem depressa, a primeira vez em que o vi, quinze dias depois de nos termos encontrado em casa dos seus patroes. Uma manha minha mae veio acordar-me e, com voz embargada e cumplice, disse-me:

— Sabes quem esta ali a porta e te quer falar? O Gino!

— Diz-lhe que entre — respondi simplesmente.

Um pouco decepcionada com a resposta, abriu a janela e saiu. Passado um momento, Gino entrou e percebi logo que estava perturbado e furioso. Nem me deu os bons-dias. Girou em torno da cama e olhou-me, estendida e ensonada como estava. Depois perguntou:

— Ouve la… No outro dia nao trouxeste por engano um objecto que estava em cima do toucador da senhora?

“Ele aqui esta”, pensei eu. Nao experimentava qualquer sentimento de culpa, enquanto que, mais uma vez, a assustada servidao de Gino me fazia pena.

— Porque? — disse-lhe.

— Desapareceu uma caixa de grande valor… de ouro… com um rubi… A senhora fez uma fita dos diabos, e como de qualquer maneira foi a mim que a casa ficou confiada, nao me dizem, mas compreendo muito bem que me supoem… Felizmente que so deu por isso ontem, uma semana depois de ter voltado: assim e possivel que tenha sido uma das criadas de quarto que a tenha roubado… Se nao fosse isso, ja me teriam acusado, despedido, preso… sei la?

Tive medo de culpar algum inocente e perguntei:

— Mas ja fizeram alguma coisa as criadas de quarto?

— Nao — respondeu, muito nervoso. — Mas pediram ao comissario para nos interrogar; ha dois dias que nao se respira naquela casa.

Hesitei um momento, depois declarei:

— Fui eu quem a tirou.

Semicerrou os olhos, com uma careta maldosa de todo o rosto.

— Foste tu quem a tirou… e e assim que o dizes?

— Como deveria dizer?

— Mas isso chama-se roubar!

— Pois chama.

Olhou-me e de repente encolerizou-se; talvez tivesse medo das consequencias do meu acto, ou pressentia, de uma maneira confusa, que a primeira responsabilidade deste roubo era dele.

— Diz-me la — gritou. — Que te passou pela cabeca? Ah! Foi para isso que quiseste ir para o quarto da senhora… agora percebo! Mas eu, minha querida, nao quero estar misturado nisto. Se tu queres roubar, rouba onde muito bem te parecer, mas nao na casa onde trabalho. Uma ladra! Estava fresco se tivesse casado contigo… teria casado com uma ladra!

Deixei-o dar livre curso a sua raiva, observando-o atentamente. Admirava-me de o ter achado durante tanto tempo perfeito. Nao havia duvida, bem perfeito! Quando me pareceu que acabara as reprimendas, disse-lhe por fim:

— Mas porque te zangaste tanto, Gino? Nao te acusam de teres roubado… Vao falar ainda nisso durante algum tempo e depois passara a historia. Meu Deus, com tantas caixas que tem a tua patroa, vale bem a pena!

— Mas porque a roubaste? — perguntou-me.

Era claro que queria ouvir dizer aquilo que vagamente adivinhava.

— Porque sim! — disse-lhe.

— Porque sim nao e resposta.

— Entao, se tu queres realmente saber — disse-lhe tranquilamente —, roubei-a, nao por inveja nem porque precisasse, mas porque de futuro ate ja posso roubar.

— Que queres dizer? — disse-me. Mas eu nao o deixei continuar.

— A noite — expliquei-lhe — vou pelas ruas, procuro um homem, trago-o para aqui e ele paga-me. Se faco isto, posso tambem roubar, nao e verdade?

Compreendeu e teve uma reaccao caracteristica.

— Tambem fazes isso?… Mas e perfeito!… Estava fresco se tivesse casado contigo!

— Nao o faria — respondi-lhe. — Comecei a faze-lo no momento em que soube que tinhas mulher e filha.

Ele esperava ja esta frase.

— Nao, minha rica — respondeu-me. — Nao deites agora as responsabilidades para cima das minhas costas. So se torna prostituta ou ladra quem o quer ser.

— Entao e porque eu ja o era sem o saber — disse-lhe. — E tu nao fizeste outra coisa senao oferecer-me a ocasiao de o chegar a ser de facto.

A minha calma mostrou-lhe que era inutil discutir. Mudou entao de tactica.

— Bem… O que es ou o que fazes nao e da minha conta… Mas essa caixa, e preciso que ma devolvas… Senao, mais tarde ou mais cedo, perderei o meu lugar… Preciso que ma des e fingirei que a encontrei… no jardim, por exemplo.

— Porque me dizes tudo isso? — respondi-lhe. — Se e para nao perderes o lugar… podes leva-la… esta ai na primeira gaveta do armario.

Com ar aliviado, precipitou-se para o armario, abriu a gaveta, agarrou na caixa e meteu-a no bolso. Depois olhou-me de uma maneira onde havia desejo de reconciliacao. Mas nao tive coragem de enfrentar a cena embaracosa que este olhar me fazia prever.

— Tens la em baixo o carro? — perguntei-lhe.

— Tenho.

— Esta bem! E tarde, e melhor que nao demores; tornaremos a falar nisto na proxima vez que nos virmos.

— Estas zangada comigo?

— Nao.

— Sim, estas!

— Ja te disse que nao.

Suspirou, curvou-se sobre a cama e deixei que me beijasse.

— Mas telefonas-me? — insistiu, da porta.

— Esta descansado.

Foi desta maneira que Gino aceitou o meu novo genero de vida. Mas no dia em que nos tornamos a ver nao falamos nem da caixa, nem do meu trabalho, como se de futuro essas coisas nao tivessem importancia e cujo unico interesse tivesse sido apenas a novidade. Portou-se um pouco como minha mae, salvo que nao pareceu experimentar, nem por um instante, o pavor manifestado por ela a primeira vez em que eu trouxe Jacinto para casa, e que me parecia por vezes sentir ainda perpassar por entre a sua satisfacao, ver por debaixo da sua gordura balofa. O importante do caracter de Gino era, pelo contrario, uma especie de finura tola e desentendida. Imagino que logo que conheceu a mudanca que a sua traicao operara na minha vida encolheu os ombros dizendo: “Matei dois coelhos de uma cajadada. Assim nao me pode acusar de coisa alguma e continuarei a ser seu amante.” Ha homens que consideram uma sorte conservar o que possuem, seja o dinheiro, a mulher e ate a propria vida, nem que seja pelo preco da dignidade. Gino era desses.

Continuei a encontrar-me com ele, porque, como ja disse, me agradava ainda, apesar de tudo, e porque nao tinha alguem que me agradasse mais do que ele, e tambem porque, se bem que pensasse que de futuro tudo

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