Chegou o momento do meu encontro com Gino. Aconteceram tantas coisas no decurso destes dez dias que eu tinha a impressao de que se tinham passado cem anos depois do tempo em que o via antes de ir para o atelier a fim de ganhar dinheiro e montar a minha casa e me considerava como uma noiva prestes a casar-se. Ele foi pontual e chegou a hora que lhe tinha marcado; quando subi para o carro, tive a impressao de que ele estava extremamente palido e parecia atrapalhado. Ninguem gosta de sentir que se lhe atira a cara uma traicao, mesmo o traidor mais corajoso; ao longo destes dez dias de interrupcao das relacoes habituais ele deve ter reflectido muito e feito muitas suposicoes. Todavia, eu nao mostrava qualquer ressentimento, e verdadeiramente nao necessitava de fingir, porque o meu espirito estava tranquilo; passada a primeira dor da desilusao, a minha alma inclinava-se para uma especie de indulgente e ceptica afeicao. Em resumo, ainda gostava de Gino e foi o que percebi logo que lhe deitei o primeiro olhar. Ja era muito.

Enquanto o carro se dirigia para a moradia, perguntou-me, passados uns instantes:

— Entao, o teu confessor mudou de ideias?

Tinha um tom brincalhao, mas ao mesmo tempo pouco seguro. Respondi-lhe simplesmente:

— Nao… eu e que mudei de ideias…

— E esse trabalho para a tua mae acabou?

— Por agora.

— E estranho.

Nao sabia o que dizia; mas era claro que procurava picar-me para ver se as suas suposicoes eram verdadeiras.

— E estranho porque?

— Falei por falar.

— Nao acreditas que o tenha feito?

— Nao acredito nem deixo de acreditar.

Decidi atrapalha-lo, mas a minha maneira, fazendo o jogo do gato e do rato, sem as violencias aconselhadas por Gisela e que nao eram para o meu feitio. Perguntei-lhe com coquetterie:

— Estaras com ciumes?

— Eu, com ciumes? Pelo amor de Deus!

— Estas com ciumes, estas! Se fores sincero, tens de o confessar!

Mordeu o anzol que lhe preparara e declarou:

— No meu lugar qualquer pessoa estaria com ciumes!

— Porque?

— Ora! Como queres que te acredite! Um trabalho tao importante que nao te permite dispensar cinco minutos para me falar… Vamos!

— E no entanto e a verdade: trabalhei muitissimo — disse-lhe tranquilamente.

Era verdade. Que outra coisa era senao trabalho o que eu tinha com Jacinto todas as noites?

— E ganhei com que pagar as nossas prestacoes e o meu enxoval — acrescentei, trocando de mim propria. — Assim, pelo menos, podemo-nos casar sem dividas!

Ele nada disse. Estava quase convencido a acreditar na verdade das minhas afirmacoes e a abandonar as suas primeiras desconfiancas. Tive entao um gesto que me era habitual dantes: passei-lhe um braco em torno do pescoco enquanto conduzia e beijei-o por baixo da orelha, murmurando-lhe:

— Porque tens ciumes? Sabes bem que so tu existes na minha vida!

Chegamos a moradia. Gino entrou com o carro no jardim e, fechando o portao, dirigiu-se comigo para a porta de servico. Era ao entardecer; brilhavam ja as primeiras luzes nas janelas das casas vizinhas; pareciam vermelhas na bruma azulada desta tarde de Inverno. O corredor da cave estava muito escuro e sentia-se um cheiro a bafio. Parei e disse-lhe:

— Esta tarde nao quero ir para o teu quarto!

— Porque?

— Quero que vamos para o quarto da tua patroa.

— Tu estas doida! — gritou, escandalizado.

Tinhamos ido muita vez aos quartos la de cima, mas as nossas relacoes tinhamo-las tido sempre na cave.

— E um capricho… Que mal ha nisso? — disse-lhe.

— Ha muito… pode partir-se alguma coisa… que sei eu? Se eles descobrem, que vou eu fazer?

— Olha a grande coisa! — gritei com ar trocista. — Despedem-te e pronto!

— Ves como dizes isso?

— Como querias que dissesse? Se me quisesses de verdade, nao pensarias um minuto.

— Amo-te, mas nao me pecas isso; nem e bom pensar nisso; nao quero sarilhos!

— Mas nos tinhamos cuidado… eles nao dariam por isso!

— Nao! Nao!

Eu estava perfeitamente calma. Continuei a fingir uma atitude que nao sentia e gritei:

— Entao eu, que sou a tua noiva, peco-te para me fazeres um gosto, e tu, com medo que eu ponha o meu corpo onde a tua patroa poe o seu e que apoie a minha cabeca onde ela apoia a sua, recusas-mo? Mas que imaginas tu? Que ela vale mais do que eu?

— Nao, mas…

— Valho dez mulheres como ela — continuei. — Pior para ti! Nao tens mais que ir para a cama com os lencois e a almofada da tua patroa… Eu vou-me embora!

Ja o fiz notar: o respeito e a timidez que lhe inspiravam os patroes eram grandes; orgulhava-se ingenuamente deles, como se de qualquer maneira a sua riqueza fosse a dele; no entanto, quando me ouviu falar desta maneira e me viu disposta a ir-me embora com uma decisao nova a que ele nao estava habituado, perdeu a cabeca e correu atras de mim, gritando:

— Mas espera… aonde vais? Falei por falar… vamos para cima se isso te da prazer!

Fiz-me ainda um pouco rogada, tomando ares ofendidos, depois aceitei. Foi assim que, enlacados e parando de tempos a tempos sobre os degraus para nos beijarmos, exactamente como da primeira vez, mas com um estado de espirito bem diferente, pelo menos no que me dizia respeito, subimos ao andar superior. Uma vez no quarto da sua patroa, ele objectou:

— Queres mesmo meter-te na cama?

— E porque nao? — respondi tranquilamente. — Nao estou disposta a apanhar frio!

Calou-se, desnorteado. Eu, depois de ter preparado a cama, passei para a casa de banho, acendi o esquentador e abri a torneira da agua quente muito pouco, de maneira que a tina nao se enchesse muito depressa. Gino seguiu-me inquieto e descontente. Protestou de novo:

— Vais tomar banho tambem?

— Eles tambem nao tomam banho antes de irem para a cama fazer o que nos vamos fazer?

— Eu e que sei o que eles fazem? — respondeu-me encolhendo os ombros.

Eu via que la no fundo estas audacias nao o desgostavam; somente, custava-lhe a aceita-las. Era um homem pouco corajoso que nao gostava de desobedecer. Mas as infraccoes as regras atraiam-no, ate porque raramente se permitia pratica-las.

— Afinal tens razao — disse, passados uns momentos, com um sorriso ao mesmo tempo mortificado e desejoso, apalpando os colchoes. — Esta-se melhor aqui que no meu quarto!

Sentamo-nos na beira da cama.

— Gino — disse, deitando-lhe os bracos a roda do pescoco. — Como vai ser bom, quando tivermos uma casa para nos os dois… Nao sera como esta, mas sera a nossa.

Nao sei bem porque falava assim. Provavelmente porque sabia de antemao que todas estas coisas eram impossiveis e gostava de me ferir onde mais me doesse.

— Sim, sim — disse abracando-me.

— Eu sei o que quero da vida — continuei com o sentimento cruel de falar numa coisa para sempre perdida. — Nao preciso de uma bela casa como esta. Bastam-me dois quartos e uma cozinha, mas com tudo o que e necessario e asseada como um espelho. Viver tranquila la dentro, sairmos juntos ao domingo, comer juntos, dormir juntos… Pensa bem como vai ser bom, Gino!

Ele nada disse. Para dizer a verdade, falando assim, eu ja nao sentia a menor emocao. Tinha a impressao

Вы читаете A Romana
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату