desinteresse e de nobreza bem longe da accao que praticam — ou ainda, para voltar ao caso da minha mae —, daquilo que deixam os outros praticar. Somente, a maior parte actua com inteira consciencia; minha mae, pelo contrario, coitada, fa-lo sem dar por isso, como o seu coracao e as circunstancias a inspiram.

Portanto, a sua frase sobre a vontade de nao viver parecia-me justa. Pensava que tambem eu, logo que descobri a traicao de Gino, desejei deixar de viver. Mas o meu corpo continuava a viver por sua conta, indiferente a minha vontade. Este peito, estas pernas, estas ancas, que tanto agradavam aos homens, continuavam vivas; a minha natureza continuava a desejar o amor, mesmo sem que eu o quisesse. Estendida na minha cama, tinha decidido deixar de viver, nao acordar no dia seguinte de manha; enquanto dormia. o meu corpo continuava vivo, o sangue corria-me nas veias. o estomago e os intestinos digeriam, os pelos despontavam-me nas axilas, onde os tinha rapado, as unhas cresciam, a pele molhava-se de suor e as forcas restauravam-se. E de manha cedo, sem que o quisesse, as palpebras abriam-se e os meus olhos viam, por mal deles, esta realidade que detestavam. Em suma, percebia que, a despeito do meu desejo de morrer, estava ainda viva e devia continuar a viver. E portanto — concluia eu —, e preciso sujeitarmo-nos a viver e nao pensar mais nisso. Nada disto disse a minha mae, porque sabia que estas ideias nao eram menos tristes que as suas e nao a consolariam. Mas quando me pareceu que deixara de chorar aproximei-me dela e disse-lhe:

— Tenho fome!

Era verdade; no restaurante, com o nervosismo, quase nao tinha comido.

— O teu jantar esta pronto — respondeu-me, contente por eu lhe oferecer um meio de se tornar util e de fazer uma coisa que fazia todas as noites. — Vou preparar-to.

Saiu e fiquei so.

Sentei-me em frente da mesa, no meu lugar habitual, e esperei que ela voltasse. Sentia a cabeca oca; de tudo o que se passara ficara-me apenas o cheiro acre e doce do amor entre os dedos e o traco seco e salgado das lagrimas no rosto. Olhei, imovel, as sombras que o candeeiro suspenso projectava nas grandes paredes nuas da sala. Minha mae voltou. Trazia um prato com carne e legumes.

— A sopa nao ta aqueci — disse-me —, porque nao ficava boa. E depois, ja nao ha muita.

— Nao faz mal. Isto chega!

Deitou-me vinho tinto no copo e ficou de pe na minha frente, como sempre que eu comia… imovel, atenta as minhas ordens.

— O bife esta bom? — perguntou-me ansiosamente.

— Esta bom, esta.

— Pedi tanto ao homem do talho para me dar um bocado tenro!

Parecia ter acalmado; tudo parecia igual as outras noites. Acabei lentamente de comer, bocejei, abri os bracos e espreguicei-me. De repente senti-me bem; este gesto bastava para dar ao meu corpo uma sensacao de juventude, forca e contentamento.

— Tenho sono! — declarei.

— Espera… vou fazer-te a cama! — disse minha mae, atenciosa, fazendo mencao de sair.

— Nao, nao; eu faco!

Levantei-me; minha mae levou o prato vazio.

— Amanha de manha deixa-me dormir! — recomendei-lhe. — Nao me acordes.

Respondeu-me que me deixaria dormir, e, depois de lhe dar as boas-noites e de a beijar, retirei-me para o meu quarto. A cama estava na desordem em que eu e Jacinto a tinhamos deixado. Limitei-me a ajeitar a almofada e a colcha, despi-me e enfiei-me nos lencois. Fiquei durante uns instantes com os olhos abertos no escuro, sem pensar em nada.

— Sou uma prostituta! — disse por fim em voz alta, para ver o efeito que isso me produzia.

Tive a impressao de que nao me fazia qualquer efeito: fechei os olhos e adormeci logo a seguir.

8

No decurso dessa semana tornei a ver Jacinto todas as noites. Ele tinha telefonado a Gisela no dia seguinte de manha e Gisela tinha-me dado o recado. Jacinto devia voltar a Milao na vespera da noite do dia que eu tinha marcado para me encontrar com Gino; fora esta a razao pela qual consentira em encontrar-me com ele todas as noites. Doutra maneira, teria recusado, porque jurara a mim mesma que nao teria encontros seguidos com qualquer homem. Pensava que era preferivel, ja que tinha que ter esta vida, faze-lo francamente, mudando de amante de cada vez, em lugar de me enganar a mim propria e de me dar a ilusao de nao o fazer deixando-me sustentar por um homem so, com o risco de me afeicoar a ele ou de o deixar afeicoar-se a mim, e perder assim nao so a liberdade fisica mas tambem a dos sentimentos. De resto, guardara intactas as minhas ideias sobre a vida conjugal e regular; pensava entao que se tivesse de me casar nao seria com um amante que me sustentasse e que por fim decidisse tornar legais, mas nao morais, relacoes de interesse; isso aconteceria com um rapaz que eu amasse e por quem fosse amada, que fosse da minha condicao, com os mesmos gostos e as mesmas ideias que eu. Queria, em resumo, que a vida que escolhera ficasse bem distinta das minhas velhas aspiracoes, sem contagios nem compromissos. Porque me sentia, num certo sentido, levada a ser uma boa esposa e uma boa cortesa, mas incapaz de escolher, como entendia que devia fazer Gisela, o meio termo hipocrita e prudente entre as duas solucoes. Sem contar que, feitas as contas, se podia obter mais do escrupulo de muitos que da generosidade de um so.

Durante todas aquelas noites, Jacinto levou-me a jantar ao seu restaurante habitual e acompanhou-me a minha casa onde se demorava. Minha mae renunciou a falar destas noites; limitava-se a perguntar-me se dormira bem quando de manha entrava no meu quarto, a uma hora avancada, para me levar o cafe num tabuleiro. Este cafe, ja o disse, costumava engoli-lo na cozinha, muito cedo, de pe, junto da chamine, ainda com o frio da agua nas maos e na cara. Mas agora minha mae trazia-mo ao quarto e eu bebia-o na cama, enquanto ela abria as persianas e tratava de dar alguma arrumacao ao quarto. Nao lhe dizia nunca mais do que ja lhe dissera, mas ela percebera por si propria que tudo tinha mudado na nossa vida e mostrava pelo seu comportamento que compreendia que especie de mudanca se operara. Agia como se entre nos houvesse um acordo tacito e parecia, pelas suas atencoes, pedir-me humildemente que lhe permitisse, na nossa vida nova, servir-me e tornar-se util como outrora. Devo dizer que este habito de me trazer o cafe a cama devia tranquiliza-la num certo sentido, por que muita gente — e minha mae era dessas — atribui aos habitos um valor positivo, mesmo que nao tenham, como este, essa caracteristica. Manifestou o mesmo zelo introduzindo todos os dias pequenas mudancas da mesma ordem na nossa vida quotidiana: tanto assim que me preparou uma grande panela de agua quente para me lavar ao levantar, pos flores numa jarra no quarto e assim por diante.

Jacinto dava-me sempre a mesmo soma de dinheiro e eu, sem dizer nada a minha mae, ia-a depositando no fundo de uma gaveta, numa caixa onde ate agora ela guardara as suas economias. Ficava com pouco dinheiro para mim. Imaginava que ela ja se tinha apercebido destas adicoes diarias ao nosso patrimonio, mas nunca trocamos uma unica palavra a tal respeito. Durante a minha vida pude observar que mesmo aqueles cujo dinheiro tem uma origem licita nao gostam de falar nisso, nao so com estranhos, mas ate mesmo com os intimos. Sem duvida liga-se ao dinheiro um sentimento de vergonha ou talvez de pudor que o risca das conversas normais e se relega para o plano das coisas secretas inconfessaveis, nas quais nao se deve falar. Como se, qualquer que seja a sua origem, ele fosse sempre mal adquirido. Talvez tambem ninguem goste de mostrar o sentimento que o dinheiro suscita na sua alma: um sentimento muito forte, quase sempre inseparavel de uma sombra de culpa.

Numa dessas noites, Jacinto exprimiu o desejo de dormir comigo no meu quarto, mas eu, com o pretexto de que os vizinhos notariam a sua presenca de manha, quando ele saisse, nao consenti. Na realidade, depois da primeira noite, a nossa intimidade nao avancara; mas nao por minha culpa. Ate ao dia da nossa separacao continuou a portar-se exactamente como na primeira noite. Era na verdade um homem de valor nulo ou quase nulo na intimidade, e tudo o que eu podia sentir por ele ja o sentira na primeira noite, enquanto dormia. A ideia de dormir com um homem assim repugnava-me; depois receava que me aborrecesse, porque tinha a certeza de que me obrigaria a estar acordada uma parte da noite para me fazer confidencias e falar-me dele. No entanto, ele nao se apercebeu nem do meu aborrecimento nem da minha antipatia e partiu convencido de ter sido, durante aqueles dias, extraordinariamente simpatico.

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