nem nome, nem qualidades, nem defeitos, nada mais que um corpo humano a quem um sopro fazia levantar o peito. Talvez pareca estranho, mas, olhando-o e observando o seu sono confiante, experimentava por ele como que um impulso de afeicao e notei as precaucoes que tomava para evitar qualquer movimento que o pudesse acordar. Era o sentimento de simpatia que eu tinha baldadamente tentado experimentar ate agora; a vista da sua cabeca encanecida molemente apoiada sobre o meu peito jovem suscitara-o por fim na minha alma. Esta impressao consolou-me e pareceu-me ate sentir menos frio. Experimentei mesmo, por um instante, uma especie de terna exaltacao que humedeceu os meus olhos. Na realidade, eu tinha entao — como ainda tenho — um excesso de ternura no coracao. Uma ternura, que, por falta dos objectivos legitimos aos quais se devia consagrar, nao temia desviar-se sobre pessoas e coisas, quase sempre indignas dela, para nao ficar inactiva e vazia. Ao fim de vinte minutos, acordou e perguntou-me:

— Dormi muito tempo?

— Nao.

— Sinto-me bem! — disse saindo da cama e esfregando as maos. — Ah! Como me sinto bem!… Rejuvenesci pelo menos vinte anos!

Depois comecou a vestir-se, continuando as suas exclamacoes de bem-estar e de alegria. Vesti-me tambem em silencio. Quando estava pronto, declarou-me:

— Queria tornar a ver-te, filhinha… Como hei-de fazer?

— Telefona a Gisela — respondi. — Vejo-a todos os dias.

— Mas tu estas sempre livre?

— Sempre.

— Viva a liberdade! — e acrescentou, metendo a mao no bolso: — Quanto queres que te de?

— Paga o que te apetecer — disse-lhe. E acrescentei com sinceridade: — Se me deres bastante, faras uma boa accao porque nao sou rica.

Mas ele respondeu taco a taco:

— Se te dou muito nao sera para fazer uma boa accao… Nunca faco boas accoes… sera por seres uma bonita rapariga e por me teres feito passar uma noite agradavel.

— Como quiseres! — disse-lhe encolhendo os ombros.

— Tudo tem o seu valor, e tudo deve ser pago segundo o seu valor — continuou tirando o dinheiro da carteira. As boas accoes nao existem. Tu deste-me certas coisas, de uma qualidade superior as que me tinham dado antes… por exemplo, Gisela… As boas accoes nestes casos nao contam… Outro conselho! Nunca digas: da-me o que te apetecer! Deixa fazer isso aos vendedores ambulantes. A mim quando me dizem “faca voce o preco” sinto-me sempre tentado a dar menos do que devo pagar.

Fez uma careta significativa e estendeu-me o dinheiro. Como Gisela me dissera, era generoso; a soma ultrapassava as minhas previsoes. Senti de novo, pegando-lhe, o sentimento de cumplicidade e sensualidade que me inspirara o dinheiro de Astarito no decurso do passeio a Viterbo. E pensei que isso denotava em mim urna vocacao, que eu devia ter de facto jeito para esta especie de oficio, mesmo se o meu coracao aspirava a coisas diferentes.

— Obrigada — disse-lhe.

E, sem quase dar por isso, por gratidao, beijei-o de boa vontade.

— Obrigado eu! — respondeu dispondo-se a retirar. Dei-lhe a mao e conduzi-o, no escuro, atraves do vestibulo, na direccao da porta. Durante um momento, logo que fechei a porta do meu quarto e antes de abrir a da casa, caminhamos numa obscuridade completa. E entao, nao sei que intuicao quase fisica me revelou que minha mae se encontrava em qualquer canto do vestibulo enquanto eu vagueava com Jacinto. Ela tinha-se escondido sem duvida atras da porta, ou num canto, entre o armario e a parede e esperava que Jacinto saisse. Lembrei-me daquela vez que ela fizera a mesma coisa, na noite em que chegara atrasada depois de ter estado com Gino em casa dos patroes dele e assaltou-me um grande nervosismo a ideia de que, como daquela vez, depois de Jacinto sair ela me saltasse em cima, me agarrasse os cabelos, me atirasse para cima do canape da sala grande e me enchesse de bofetadas. Sentia-a no escuro; parecia-me quase ve-la; sentia uma impressao nas costas como se tivesse as suas garras atras da minha cabeca prontas a arrepelar-me os cabelos. Segurava Jacinto pela mao e na outra mao guardava o dinheiro. Lembrei-me de o meter entre os dedos da minha mae logo que ela me quisesse saltar em cima. Seria uma maneira silenciosa de lhe lembrar que nunca cessara de me instigar a ganhar dinheiro e tambem uma tentativa de a captar pela avidez — a sua paixao dominante — e assim fechar-lhe a boca. Entretanto tinha aberto a porta.

— Entao ate qualquer dia… Telefonarei a Gisela — disse-me Jacinto.

Vi-o descer a escada, com os seus largos ombros e os seus cabelos brancos cortados a escovinha, agitando a mao sem olhar para tras, em sinal de cumprimento — e fechei a porta. Imediatamente, como previra, minha mae surgiu do escuro junto de mim. Mas nao me agarrou pelos cabelos, como julguei: pelo contrario de uma maneira desajeitada, que de principio nao compreendi, fez uma tentativa para me beijar. Fiel ao meu plano, procurei a sua mao e introduzi-lhe o dinheiro. Mas ela recusou-o; o dinheiro caiu no chao; ai, o encontrei no dia seguinte de manha quando sai do meu quarto. Tudo isto com um pouco de angustia de parte a parte, mas sem que qualquer de nos abrisse a boca.

Entramos na sala grande e sentei-me ao cantinho da mesa. Minha mae sentou-se na minha frente e olhou-me. Parecia ansiosa e eu estava embaracada. Disse-me de repente:

— Sabes que enquanto estiveste no quarto houve um certo momento em que tive medo?

— Medo de que? — perguntei-lhe.

— Nao sei — respondeu-me. — Primeiro senti-me so… tive frio… E depois ja nao me sentia eu, tudo girava a minha volta como quando se bebe, sabes! Tudo me parecia estranho! Pensava: isto e uma mesa, isto e uma maquina de costura… Mas nao me chegava a convencer de que era realmente uma mesa, a cadeira, a maquina de costura… Tambem tive a sensacao de que ja nao era eu… dizia: sou uma velha costureira… Tenho uma filha que se chama Adriana… mas nao me convencia… Para me assegurar de que assim era pus-me a pensar no que tinha sido quando era pequenina, depois quando tinha a tua idade, quando me casei, quando tu nasceste… Entao tive medo, porque tudo passou como se tivesse sido ontem; de nova, que era, cheguei bruscamente a velha sem dar por isso… E quando eu morrer — concluiu com esforco olhando-me — sera como se nunca tivesse existido.

— Porque pensas nessas coisas? — pronunciei lentamente. — Ainda es nova… Que necessidade tens de pensar na morte?

Pareceu nao me ter ouvido e continuou com a mesma enfase, que me fazia pena e me parecia falsa:

— Digo-te que tive medo! Pus-me a pensar: se uma pessoa nao tem mais vontade de viver, deve continuar a estar neste mundo a forca? Nao digo que se mate; para se matar e preciso coragem; nao, mas apenas deixar de querer viver como se deixa de querer comer, ou de querer andar… Pois bem! Juro-te por alma do teu pai… Ja nao queria viver mais!

Tinha os olhos cheios de lagrimas e os labios tremulos. Eu estava quase a chorar tambem, sem saber porque, e levantei-me, beijei-a e fui sentar-me com ela no canape, ao fundo do quarto. Ficamos uns momentos a chorar nos bracos uma da outra. Sentia-me desnorteada, estava muito cansada, e as palavras incoerentes da minha mae, com a sua ilogica, aumentavam o meu desnorteamento. Mas fui a primeira a recompor-me, porque no fim de contas eu nao chorava senao por simpatia. Ha muito tempo que deixara de chorar por mim!

— Entao! Entao! — comecei a dizer-lhe, dando-lhe palmadas nas costas.

— Digo-te, Adriana, ja nao tenho vontade de viver! — repetia-me chorando.

Afaguei-lhe o ombro sem dizer nada, deixando-a chorar a vontade. Mas pensava, por minha vez, que as suas palavras eram a clara expressao do seu remorso. E certo que sempre me tinha mostrado o exemplo de Gisela e recomendara que me vendesse o mais caro possivel. Mas entre dizer e fazer ha uma boa diferenca. Ter trazido um homem a casa, sentir que lhe punha o dinheiro na mao, era certamente para ela um duro golpe. Agora, que tinha diante dos olhos o resultado da sua educacao, nao podia deixar de sentir-se horrorizada. Mas ao mesmo tempo havia nela uma especie de incapacidade para reconhecer que se tinha enganado; talvez tambem uma amarga satisfacao ao verificar que se enganara. Tanto assim que, em vez de me dizer francamente “Procedeste mal… nao recomeces”, preferiu falar de coisas que nada tinham a ver comigo, da sua vida, do seu desejo de deixar de existir. Tive muita vez ocasiao de observar pessoas que no mesmo momento em que se abandonam a uma accao que sabem ser repreensavel, procuram defender-se e resgatar-se discorrendo acerca de coisas mais elevadas, susceptiveis de as rodear, a seus proprios olhos e aos dos outros, de uma aura de

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