Depois, do canto da comoda, num salto inesperado, veio cair na cama, em cima de Gisela, que soltou um grito de susto e se deixou cair de costas para fugir ao choque. Mas, de repente, numa atitude irresistivelmente comica, ele pareceu tomado por uma ideia subita, deixou-se ficar de gatas por cima de Gisela, voltou para nos o seu rosto vermelho e libidinoso e perguntou:
— E voces, porque esperam?
Olhei para o meu companheiro e perguntei-lhe:
— Queres que me dispa?
Ele nem sequer baixara ainda a gola do sobretudo. Estremeceu e respondeu-me:
— Nao. Depois deles.
— Queres ir para outra sala?
— Quero.
— Deem uma volta de carro! — gritou o louro, sempre de gatas em cima de Gisela. — As chaves estao no tablier!
Mas o meu companheiro saiu do quarto sem dar mostras de ter ouvido estas palavras.
Passamos para o vestibulo: fiz-lhe sinal para me esperar e entrei na sala. Minha mae estava sentada a mesa do meio, entretida a fazer uma paciencia. Quando me viu, sem esperar qualquer palavra minha, levantou-se e foi para a cozinha. Eu vim entao a porta do vestibulo e disse ao rapaz que podia entrar.
Voltei a fechar a porta e fui sentar-me no canape, junto da janela. Desejava ardentemente que ele viesse sentar-se ao meu lado e que me acariciasse, como sempre acontecia com os outros homens. Mas ele nem sequer reparou na existencia do canape e pos-se a passear para tras e para diante pela sala, andando a roda da mesa, com as maos nos bolsos. Pensei que estava contrariado por ter de esperar e disse-lhe:
— Desculpa, mas nao disponho senao de um quarto…
Ele parou, olhou para mim com uma expressao levemente ofendida mas gentil:
— Eu ja te disse, porventura, que precisava de um quarto?
— Nao. Mas pensei…
Voltou ao seu passeio, ate que eu, nao podendo conter por mais tempo a minha impaciencia, indiquei-lhe um lugar ao meu lado, no canape:
— Porque nao vens sentar-te ao pe de mim? — perguntei.
Ele obedeceu e interrogou-me:
— Como te chamas?
— Adriana.
— Eu chamo-me Jaime — disse ele, pegando-me na mao. Este modo de proceder, invulgar para uma mulher como eu, admirou-me profundamente, convencendo-me, de novo, de que a timidez o dominava. Deixei ficar a minha mao na sua e sorri-lhe para o encorajar. Jaime voltou a interrogar-me:
— Entao, daqui a pouco temos de ser um do outro?
— Claro.
— E se nao me apetecer?
— Isso e contigo — respondi, na ideia de que ele estava a brincar.
— Pois, nao me apetece — disse ele com ar solene. — Nao me apetece absolutamente nada.
— De acordo! — respondi eu.
Na realidade, a sua recusa parecia-me demasiadamente estranha para que me fosse possivel toma-lo a serio.
— E isso nao te ofende? Em geral, as mulheres detestam que a gente as recuse.
Acabei por compreender. Sem coragem para falar, limitei-me a dizer que nao com a cabeca. Ele nao me desejava! Bruscamente senti-me desesperada e os olhos encheram-se-me de lagrimas.
— Nao. Isso nao me ofende — balbuciei. — Mas visto que nao me desejas, vamos esperar que o teu amigo acabe e depois vais-te embora.
— Sera justo? — hesitou ele. — Perdeste a noite por minha causa. Podias ter ganho dinheiro com outro qualquer…
Pensando que o seu problema nao era falta de interesse, mas impossibilidade de me pagar, propus-lhe, cheia de esperanca:
— Se nao tens dinheiro nao faz mal. Pagas-me quando voltares a encontrar-me…
— Tu es boa rapariga — respondeu. — Mas o problema nao e esse. O dinheiro nao me falta. Vamos fazer um contrato. Eu pago-te como se me tivesse servido de ti. Dessa maneira, pelo menos, nao perderas a noite.
Tirou do bolso do casaco um rolo de notas, que me deu a impressao de ter sido preparado previamente, e foi pousa-lo em cima da mesa, longe de mim, num gesto ao mesmo tempo desajeitado e curiosamente elegante e desdenhoso.
— Nao, nao — protestei. — Nem penses nisso!
Disse isto sem grande conviccao, porque, no fundo, agradava-me receber aquele dinheiro; era um laco como outro qualquer entre nos; e, visto que contraia uma divida para com ele, podia tentar paga-la. Interpretando a minha vaga recusa como um gesto de aceitacao, Jaime deixou ficar o dinheiro em cima da mesa, e veio outra vez sentar-se ao meu lado no canape. Eu, embora compreendesse perfeitamente a ingenuidade e o ridiculo do meu gesto, estendi a mao e peguei na dele. Olhamo-nos longamente, bem de frente. Depois, sem mais nem menos, ele pegou num dos meus dedos e torceu-o com forca.
— Ai! — gritei eu. E continuei com mau modo. — Que ideia tao estupida foi essa?
— Desculpa! — respondeu ele. E o seu ar de confusao era tao forte e tao sincero que me fez arrepender logo da secura com que lhe falara.
— Fizeste-me doer, compreendes? — expliquei.
— Desculpa — repetiu ele.
Tomado de uma subita agitacao, levantou-se e pos-se a passear na sala.
— E se saissemos? — propos. — E aborrecidissimo esperar desta maneira.
— Aonde queres ir?
— Nao sei. Apetece-te dar uma volta de carro? Lembrando-me de todos os passeios que dava com o Gino, respondi vivamente:
— Nao, de automovel nao.
— Podiamos ir tomar qualquer coisa. Ha algum cafe aqui perto?
— Parece-me que sim…
— Entao vamos.
Levantamo-nos e saimos da sala. Na escada disse-lhe, em ar de brincadeira:
— Nao te esquecas de que o dinheiro que me deste te da o direito de vires ter comigo quando quiseres. Combinado?
— Combinado.
Era uma noite de Inverno doce, humida e escura. Tinha chovido durante todo o dia e a rua estava semeada de grandes pocas de agua em que se reflectia a luz serena dos raros bicos de gas. Por cima das muralhas o ceu aparecia sereno, mas sem Lua, e uma bruma densa velava as raras estrelas que se viam. De vez em quando os electricos invisiveis passavam por detras das fortificacoes fazendo saltar dos fios claroes rapidos e violentos, que iluminavam o ceu por momentos. Quando chegamos a rua lembrei-me de que ha meses nao ia para os lados do Luna Parque. Habitualmente tomava pela esquerda, na direccao da praca em que Gino esperava por mim. Nunca mais voltara para o lado do Luna Parque desde os tempos em que, ainda pequena, passeava com minha mae, e ora subiamos a grande avenida sobranceira as muralhas, ora fomos gozar a musica e as iluminacoes sem ousar entrar no recinto para nao gastar dinheiro. Era deste lado da grande avenida que se encontrava o pequeno pavilhao em que eu vira uma vez, pela janela aberta, uma familia sentada a mesa e que me provocara o sonho de me casar, ter um lar, viver uma vida normal. Fui, entao, tomada de um desejo violento de falar ao meu companheiro desse tempo, dessa idade, dessas aspiracoes; e isto, devo confessa-lo, nao somente por impulsao sentimental, mas tambem por calculo. Queria que ele nao me avaliasse apenas pelas aparencias, mas sim de um modo diferente, melhor, e que eu considerava mais verdadeiro. Ha quem, para receber personalidades importantes, vista um fato de cerimonia e abra as melhores salas da sua casa; quanto a mim, parecia-me que a simples sinceridade dos meus pensamentos e dos meus sentimentos chegaria para me defender, para o levar a mudar de ideias e para o fazer I aproximar-se de mim.