— Nunca ninguem passa nesta parte da avenida — disse, enquanto caminhavamos ao lado um do outro. — Mas no Verao e o passeio preferido das pessoas do bairro… Eu tambem aqui vinha. Mas ha tanto tempo! So tu serias capaz de fazer com que eu aqui voltasse…

Ele tinha enfiado o seu braco no meu, para me ajudar a caminhar na rua encharcada.

— Com quem passeavas? — perguntou.

— Com minha mae.

Comecou a rir, com um riso depreciativo que me espantou.

— Com minha mae! — repetiu marcando as silabas. — Ha sempre uma mae! Que ira dizer minha mae? Que ira fazer minha mae? A mama!

Imaginei que, por qualquer motivo pessoal, ele sentisse rancor pela sua propria mae e perguntei-lhe:

— A tua mae fez-te alguma coisa?

— Nada me fez! — respondeu-me. — As maes nunca fazem nada. Quem nao tem uma mama? E tu gostas da tua mae?

— Com certeza. Porque?

— Por nada — disse depressa. — Nao te preocupes comigo… Continua… Entao tu passeavas com tua mae…

O seu tom nao era muito tranquilizador. E, no entanto, um pouco por calculo, um pouco por simpatia, sentia-me levada a continuar as minhas confidencias:

— Sim — disse-lhe. — Nos passeavamos juntas, sobretudo no Verao, porque em nossa casa de Verao sufoca-se… Justamente… olha… vez aquela vivendazinha?

Parou e olhou. Mas as janelas da casa nao estavam abertas; parecia mesmo desabitada. Metida entre duas longas construcoes baixas do caminho de ferro, pareceu-me ainda mais pequena do que a recordava e ate feia e tosca.

— E depois? — perguntou-me. — O que acontecia nessa casa?

Eu agora corava do que ia dizer. Continuei com esforco:

— Todas as tardes passava por esta casinha; como era Verao, as janelas estavam abertas… a esta hora via sempre uma familia sentar-se a mesa… — Calei-me, envergonhada.

— E entao?

— Estas coisas nao te podem interessar — disse. E tive a impressao de que o meu pudor era, ao mesmo tempo falso e sincero.

— Porque? Tudo me interessa.

— Bem… — acabei a pressa. — Tinha-se-me metido na cabeca que um dia tambem eu teria uma casinha como esta e que faria todas as coisas que via esta familia fazer.

— Ah! Compreendo — disse. — Uma casinha como esta… Contentavas-te com pouco!

— Comparada com a casa onde moramos — disse eu — que e tao feia. E depois, sabes, naquela idade pensa-se tanta coisa!

Puxou-me pelo braco para junto da vivendazinha. dizendo-me:

— Vamos ver se essa familia ainda la esta!

— Mas que fazes? — protestei, resistindo. — Esta la com certeza.

— Bem, vamos ver!

Estavamos diante da porta. O jardim estava as escuras, assim como as janelas e o miradouro. Ele aproximou-se do portao e disse:

— Ate tem uma caixa de correio! Vamos tocar para ver se esta ca alguem. Mas a tua casa parece desabitada.

— Nao! — disse-lhe rindo. — Esta quieto! Mas que fazes?

— Experimentemos — respondeu. Levantou o braco e tocou a campainha. Tive vontade de fugir, tal era o medo que alguem viesse atender.

— Vamos! Vamos! — suspirava eu. — Se alguem aparece, que figura fazemos nos?

— Que dira a mama? Que dira a mama? — repetia cantarolando, deixando-se arrastar.

— Tu detestas as mamas! — observei afastando-me rapidamente.

Chegamos ao Luna Parque. Lembrava-me, da ultima vez em que la tinha estado, da multidao que se comprimia, dos festoes de lampadas electricas coloridas, dos balcoes com lampadas de acetileno, da decoracao das barracas, da musica, do burburinho das vozes. Fiquei um pouco decepcionada por nada disso encontrar. A palicada nao parecia cercar um parque de diversoes, mas um deposito de material, escuro e abandonado. Os oito baloucos suspensos do carrossel pareciam insectos ventrudos parados em pleno voo por uma brusca paralisia. Sem iluminacao, os tectos pontiagudos dos pavilhoes pareciam dormir. Tudo era negro, o que era normal porque estavamos no Inverno. A esplanada estava deserta e semeada de charcos: iluminava-a fracamente um unico bico de gas.

— Aqui, no Verao, e o Luna Parque, tem sempre muita gente… mas de Inverno nao funciona… Aonde queres ir?

— Ao tal cafe.

— Nao e bem um cafe, e uma tasca.

— Vamos, vamos a tasca.

Passamos sob a abobada da porta; mesmo em frente havia uma fila de casas, e num res-do-chao via-se a luz por detras de uma porta envidracada. Assim que entrei vi logo que era a mesma casa de pasto onde ha muito tempo tinha ido jantar com Gino e com minha mae e onde Gino tinha dado o correctivo ao bebado insolente. Nao tinha mais de tres ou quatro pessoas, que comiam coisas que haviam trazido embrulhadas em papel de jornal, bebendo vinho da casa. Estava la mais frio do que na rua, o ar parecia impregnado de um cheiro a vinho, a chuva e a serradura; pensava-se logo que os fogoes estavam apagados. Sentamo-nos a um canto e ele pediu um litro de vinho.

— Quem vai beber esse vinho todo? — perguntei.

— Porque, tu nao bebes?

— Muito pouco.

Encheu o copo e bebeu-o de um trago, mas com esforco e sem prazer. Este gesto confirmou o que eu ja notara: ele fazia as coisas sem participacao, so para o exterior, como se representasse um papel. Ficamos algum tempo em silencio. Olhava-me com os seus olhos intensos e brilhantes e eu examinava o que estava a minha volta. A recordacao daquela longinqua noite em que eu ali fora com Gino e minha mae assaltou-me outra vez; nao sei se sentia pena ou contrariedade ao recorda-la. Eu era entao muito feliz; e verdade, mas tinha ainda tantas ilusoes! Sentia no meu intimo que era exactamente como se se abrisse uma gaveta fechada ha muito tempo e que em vez das belas coisas que se esperava la estivessem apenas se vissem alguns farrapos poeirentos e tracados. Tudo tinha acabado. Nao so o meu amor por Gino, mas a minha adolescencia e os meus sonhos desfeitos. O facto de me ter podido servir por calculo e por manha das minhas recordacoes com o fim de comover o meu companheiro bastava para o demonstrar. Disse por acaso:

— O teu amigo ao principio pareceu-me antipatico… Mas agora quase que simpatizo com ele… e tao alegre!

Ele respondeu-me com modo brusco:

— Primeiro, aquele nao e meu amigo. E depois e o menos simpatico do mundo!

A violencia da resposta deixou-me estupefacta.

— Achas? — disse-lhe.

Ele bebeu e continuou:

— Das pessoas que fazem espirito devia fugir-se como da peste! Vulgarmente, debaixo daquele espirito todo nada existe… Se tu o visses no escritorio… Asseguro-te que ai nao diz gracas!

— Em que escritorio esta?

— Nao sei ao certo, um negocio de patentes.

— Ganha muito dinheiro?

— Muitissimo.

— Tem sorte!

Serviu-me vinho e eu perguntei:

— Mas se o achas tao antipatico, porque sais com ele?

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