nunca ter pronunciado esta frase infeliz, mas agora era tarde. Nada havia a fazer! Dava-me a sensacao de uma prisao da qual eu nao podia fugir de maneira alguma. Esta frase era eu propria, inalteravel, de futuro, como no que eu me tornara por vontade. Esquece-la ou ter a ilusao de nao a ter dito era o mesmo que esquecer-me de mim propria ou querer ter a ilusao de que nao existia.
Estas reflexoes intoxicavam-me como um veneno lento que lentamente seguira o seu caminho nefasto por entre o sangue das minhas veias. Habitualmente, de manha, costumava saltar da cama, obedecendo a uma especie de vontade independente. Mas nesse dia foi exactamente o contrario que aconteceu: a manha passou, chegou a hora do almoco e eu nem sequer ainda me tinha mexido. Sentia-me inerte, impotente, entorpecida e ao mesmo tempo dorida como se esta imobilidade me causasse uma fadiga desesperada. Tinha a impressao de ser um desses barcos apodrecidos que ficam amarrados em qualquer baia pantanosa, com o ventre cheio de agua fetida e negra: se alguem sobe para eles, as pranchas apodrecidas cedem logo e a barca, que talvez ali estivesse ha anos, afunda-se num instante. Nao sei quanto tempo fiquei neste estado enrolada na roupa da cama, os olhos dilatados, o lencol puxado ate ao nariz. Ouvi tocar o meio-dia nos sinos, depois a uma, as duas, as tres, as quatro horas. Tinha fechado a porta a chave e de vez em quando minha mae, inquieta, vinha bater-me a porta. Respondia-lhe que ja me levantava e que me deixasse em paz. Quando comecou a anoitecer, procurei ser corajosa, fiz um esforco, que me pareceu sobre-humano, atirei com a roupa e levantei-me da cama. Sentia os membros inchados de inercia. Lavei-me, vesti-me, arrastando-me de um lado para o outro no quarto. Em nada pensava; sabia somente, nao no meu espirito, mas em todo o meu corpo, que pelo menos nesse dia nao desejava ir a caca dos meus amantes costumados. Depois de vestida, fui ter com minha mae e disse-lhe que passariamos a noite juntas. Passeariamos pelo centro da cidade e a noite iriamos tomar um aperitivo a um cafe.
A alegria de minha mae, que nao estava habituada a este genero de convites, irritou-me nao sei porque: mais uma vez tive ocasiao de observar como as suas faces estavam flacidas e gordas e como os olhos empapucados tinham um luzir equivoco e falso. Mas refreei a tentacao de lhe dizer alguma indelicadeza que teria destruido a sua alegria e fui sentar-me a mesa da sala grande, a espera que ela se vestisse. A luz branca dos anuncios entrava pela janela sem cortinas, iluminava a maquina de costura e estendia-se pela parede. Baixei os olhos sobre a mesa e vi as figuras coloridas do jogo de paciencia com que minha mae enganava o aborrecimento das suas longas noites. Entao, bruscamente, tive uma sensacao extraordinaria: parecia-me que era eu minha mae em carne e osso, esperando que sua filha Adriana, no quarto ao lado, acabasse o encontro com o seu amante de passagem. Esta impressao provinha sem duvida de eu me ter sentado no seu lugar a mesa, em frente das suas cartas. Os lugares as vezes dao-nos destas sugestoes: mais de uma pessoa, ao visitar uma prisao, experimenta o frio, o desespero, o sentimento de isolamento do prisioneiro que ha muito tempo ali definha. Mas a sala nao era uma prisao e minha mae nao sofria de dores tao concretas e faceis de imaginar. Ela limitava-se a viver como sempre vivera. Todavia, talvez por ha pouco ter sentido contra a sua pessoa um movimento de hostilidade, esta percepcao da sua vida operara em mim uma especie de reencarnacao. As pessoas boas, para desculparem alguma ma accao, dizem por vezes: “Poe-te no seu lugar”. Pois bem! Acabava de me por no lugar de minha mae a ponto de ter a sensacao de ser ela propria.
Era-o… mas com a consciencia de o ser, coisa que nao lhe acontecia, de contrario ja se teria revoltado de uma maneira ou de outra. Sentia-se flacida, envelhecida, enrugada; compreendi o que e a velhice, que nao so muda o aspecto do corpo, mas torna-o inepto e inerte. Como era minha mae? Por vezes tinha-a visto quando se despia, e reparava, sem pensar, nos seus seios negros e murchos, no ventre amarelo e encolhido. Agora esses seios, que me tinham amamentado, esse ventre, de onde eu saira, sentia-os tanto em mim que quase julgava poder tocar-lhes, causavam-me o desgosto, a pena impotente que ela devia ter sentido ao ver a mudanca do seu corpo. A juventude e a beleza tornam a vida suportavel e por vezes alegre. Mas quando ja nao existem? Senti um calafrio acordar-me deste pesadelo e felicitei-me por ser na realidade a bela e jovem Adriana e nao a sua mae, que nao era nova nem bela, nem nunca mais o seria.
Mas ao mesmo tempo, como um mecanismo parado que comeca lentamente a mover-se, comecaram a formigar no meu espirito todas as ideias que lhe deviam passar pela cabeca enquanto esperava que eu aparecesse na sala. Nao e dificil imaginar o que pode pensar uma pessoa como minha mae em semelhantes circunstancias; somente, na maior parte das pessoas, o facto de imaginar nasce da reprovacao e do desprezo e em vez de imaginar elas constroem um fantoche sobre o qual vertem a sua hostilidade. Mas eu, que gostava de minha mae e que so me punha no seu lugar por amor, sabia que naqueles momentos os seus pensamentos nao eram nem interessantes, nem assustadores, nem vergonhosos, nem sequer relacionados de qualquer maneira com o que eu fazia e com quem o fazia. Sabia, pelo contrario, que as suas ideias eram insignificantes e ocasionais como era natural de uma pessoa como ela, pobre, velha, ignorante, e que durante toda a vida nao tinha pensado dois dias a seguir da mesma maneira sem receber da necessidade o mais peremptorio desmentido. As grandes ideias e os grandes sentimentos — sejam tristes e negativos — precisam de proteccao; sao plantas delicadas que levam tempo a criar raizes e a fortificar. Minha mae nunca tinha podido cultivar nem no seu espirito, nem no seu coracao, outra coisa que as maldosas e efemeras ervas das reflexoes e das preocupacoes e dos ressentimentos quotidianos, enquanto eu, no quarto ao lado, me dava aos homens por dinheiro. Assim, diante da sua “paciencia”, podiam continuar a rolar na sua cabeca sempre as mesmas imbecilidades (se e justo chamar assim as coisas que nela tinham vivido durante tantos anos): o preco dos alimentos, a costura que havia para fazer e outras coisas parecidas. Talvez agora, ao ouvir o som dos sinos da igreja vizinha, ela por vezes pensasse sem ligar grande importancia ao facto: “Desta vez a Adriana leva mais tempo que de costume.” Ou quando ouvia abrir a porta e falar no vestibulo: “A Adriana acabou.” Que mais? Com estas ideias na cabeca eu era a minha mae completa: corpo e alma. E justamente porque conseguira ser como ela de uma maneira tao completa tinha a impressao de a amar outra vez, e mais do que dantes.
Acordei deste sonho com o ruido da porta que se abria. Minha mae acendeu a luz e perguntou-me:
— Que fazes ai as escuras?
Deslumbrada pela luz, levantei-me e olhei-a. Tinha mudado de facto; reparei logo. Nao tinha chapeu, porque nunca o usara, mas vestira um vestido preto de feitio complicado. Sobracava uma grande mala de couro preto com fechos de metal amarelo e trazia ao pescoco uma pele de gato bravo. Molhara os seus cabelos cinzentos e penteara-os com cuidado, prendendo-os num rolo na nuca com numerosos ganchos. Ate tinha passado um pouco de po de arroz rosado sobre as faces, dantes aridas e magras e agora cheias e coradas. Sem querer, sorri por ve-la tao aperaltada e tao solene. E foi no meu tom afectuoso de sempre que lhe disse:
— Vamos!
Sabia que ela gostava de passear a hora de maior movimento pelas ruas principais, que tinham as lojas mais bonitas da cidade. Assim, tomamos um electrico e descemos a Rua Nacional. Minha mae costumava levar- me a passear nessas ruas quando eu era garota. Comecava na Praca do Hexaedro pelo passeio da direita. Lentamente, examinando as montras uma por uma com atencao, chegava a Praca de Veneza. Ali, sempre observando tudo com minucia e puxando-me pela mao, passava para o outro passeio e voltava para a Praca do Hexaedro. Entao, sem ter comprado um alfinete nem se ter atrevido a por pe num dos numerosos cafes da rua, trazia-me para casa, sonolenta e cansada. Lembrava-me de que esses passeios nao me agradavam, porque, ao contrario de minha mae, eu teria desejado entrar, comprar e trazer para casa todas as belas coisas expostas atras dos vidros brilhantemente iluminados. Mas depressa aprendera que eramos pobres e nao manifestava de forma alguma os meus sentimentos. Uma vez so, nao me lembro porque, tive, como costuma dizer-se, uma birra. E percorremos a rua do principio ao fim, minha mae puxando-me por um braco e eu resistindo com todas as forcas, chorando e gritando… Por fim, em vez do objecto desejado, minha mae deu-me um par de tabefes e a dor da bofetada fez esquecer a da renuncia.
Encontrei-me de novo pelo braco da minha mae, no mesmo passeio da mesma Praca do Hexaedro, como se os anos nao tivessem passado. Via as pedras dos passeios, onde formigavam pes calcados com botas, grossos sapatos, sandalias, saltos altos, saltos baixos; via os transeuntes que subiam e desciam a rua, a dois e dois, em grupos de homens, de mulheres e de criancas ou ainda pessoas sos, umas lentas outras apressadas, todas iguais, justamente porque queriam parecer diferentes, com os mesmos fatos, os mesmos chapeus, as mesmas caras, os mesmos olhos, as mesmas bocas. Via as sapatarias, as joalharias, as relojoarias, as livrarias, as floristas, as lojas de fazendas, os luveiros, os cafes e os cinemas, os bancos. Revia as janelas iluminadas das belas casas, com pessoas la dentro a andar de um lado para o outro ou sentadas a mesa a trabalhar, os anuncios luminosos, sempre os mesmos. Num canto da rua, o vendedor de jornais, os vendedores de castanhas, os mendigos: o cego com a cabeca encostada a parede, a bengala branca estendida e os oculos pretos; mais abaixo a mulher quase velha com uma chaga no seio, ainda mais abaixo o idiota com aquele coto amarelo luzidio como um joelho e que