estendia a caridade. Ao encontrar-me nesta rua, no meio de todas as coisas que me eram familiares, experimentava uma funebre impressao de imobilidade, que me arrepiou da cabeca aos pes, e durante um momento tive a sensacao de estar nua, como se um sopro de terror se tivesse infiltrado por entre a minha roupa e a minha pele. O aparelho de T. S. F. de um cafe transmitia a voz ruidosa e apaixonada de uma mulher que cantava. Era no ano da guerra da Etiopia e ela cantava Linda Caranha Preta.
Como era natural, minha mae nao se apercebia dos meus sentimentos; de resto eu nao os deixava transparecer. Como ja disse, tenho um aspecto tao doce e tao fleumatico que e raro as pessoas adivinharem o que passa pela minha cabeca. Num certo momento, no entanto, senti-me comovida (a mulher acabava de cantar uma canconeta sentimental), os labios comecaram-me a tremer e disse a minha mae:
— Lembras-te de quando me fazias subir e descer esta rua para ver as montras?
— Lembro-me — respondeu ela —, mas nesse tempo estava tudo mais barato… Esta mala, por exemplo, comprei-a por metade do preco de agora!
Passamos da montra de uma loja de malas para a de uma joalharia. Minha mae parou a contemplar as joias e disse com ar extasiado:
— Olha aquele anel… Sabe Deus o que custa!… E esta pulseira… toda de ouro macico! Eu nunca tive a paixao das pulseiras ou dos aneis… mas colares, sim! Tinha um colar do coral… mas tive de o vender.
— Quando?
— Oh! Ha muitos anos!
Nao sei porque, lembrei-me de que com o dinheiro ganho com a minha profissao nao tinha ainda podido comprar o mais miseravel anelzito. E declarei a minha mae:
— Sabes… Decidi que daqui em diante mais ninguem traria para casa. Acabou.
Era a primeira vez que eu aludia ao meu oficio de uma forma tao explicita. A cara dela teve uma expressao que eu de momento nao consegui interpretar, e respondeu:
— Ja to disse muitas vezes… Faras aquilo que entenderes. Se estiveres contente, eu tambem estou.
No entanto, nao parecia satisfeita.
— Recomecaremos a vida que levavamos dantes — continuei—, seras obrigada a voltar a cortar e a coser as tuas camisas.
— Ja o diz durante tantos anos! — disse.
— Nao teremos tanto dinheiro como agora — insisti um pouco cruelmente. — Temos levado uma rica vida. Por mim ainda nao sei o que farei.
— Que vais fazer? — perguntou-me minha mae com uma expressao de esperanca.
— Nao sei — respondi. — Recomecarei a ser modelo… ou talvez te ajude as camisas…
— Oh! Mas como me poderas ajudar?… — disse ela, desencorajada.
— Ou entao arranjo um lugar de criada — continuei. — Que queres que faca?
Agora minha mae tinha uma cara amarga e triste como se sentisse bruscamente toda a gordura dos ultimos anos abandona-la, como as folhas mortas que se desprendem das arvores aos primeiros frios do Outono. Disse com a mesma conviccao:
— Faras o que quiseres — repito. — Contanto que estejas contente!
Compreendia que dois sentimentos opostos se debatiam dentro dela: o seu amor por mim e o seu desejo de uma vida confortavel. Fez-me pena. Teria preferido que tivesse tido a coragem de sacrificar deliberadamente um dos dois sentimentos e fosse toda amor ou toda interesse. Mas e raro que isso aconteca: passamos toda a vida a anular com a accao dos nossos vicios o efeito das nossas virtudes.
— Eu dantes nao estava satisfeita e agora tambem nao irei estar. Somente nao tenho coragem para continuar esta vida.
Depois destas palavras nada mais dissemos. Minha mae estava com uma cara abatida; a sua magreza de outrora, a sua pele esticada, pareciam desenhar-se ja de novo debaixo do seu ar de prosperidade. Examinava as montras com o mesmo ar minucioso, as mesmas longas contemplacoes, mas sem alegria, sem curiosidade, maquinalmente, como se pensasse noutra coisa. Talvez nada visse do que olhava, ou, melhor, nao visse os objectos expostos, mas uma maquina de costura, com um pedal infatigavel e uma agulha que subia e descia como louca, pedacos de tecido meio confeccionados sobre a mesa da costura, bocados de papel preto nos quais embrulhava o trabalho acabado para entregar na cidade aos clientes. Pela minha parte, estes fantasmas nao se interpunham entre os meus olhos e a montra. Via tudo muito bem e pensava de uma maneira clara. Inspeccionava os objectos um por um, vendo a etiqueta com o preco, e dizia a mim propria que podia muito bem nao querer continuar o meu oficio (como de facto nao queria), mas que na realidade nao podia ter outro. Alguns objectos que via nas montras poderia vir a te-los se economizasse um pouco; no dia em que voltasse aos meus anteriores trabalhos seria preciso renunciar a estas coisas para sempre; recomecaria para mim e para minha mae a nossa vida de outrora, restrita, sem conforto, cheia de renuncias e de recalcamentos, de sacrificios inuteis e de economias sem resultado. Actualmente podia aspirar a uma joia se encontrasse alguem que ma pudesse oferecer. Mas se voltasse a minha vida miseravel, as joias tornar-se-iam para mim tao inacessiveis como as estrelas do ceu. Assaltou-me um violento desagrado por essa vida passada, que me pareceu estupidamente desesperante, e senti como eram absurdos os motivos que me tinham levado a pensar em mudar de vida. Porque um estudante por quem eu tinha ficado embeicada nao me tinha querido! Porque se me tinha metido na cabeca que ele me desprezava? Em suma, so porque eu nao tinha querido ser o que era. Compreendi que era unicamente orgulho, e nao podia por simples orgulho voltar, e sobretudo obrigar minha mae a voltar, a nossa miseravel situacao de antigamente. Vi de subito a vida de Jaime, que se aproximara da minha e nela se fundira, divergir numa direccao diferente e a minha continuar pela estrada que eu tinha escolhido. Se encontrasse alguem que gostasse de mim e me desposasse, entao sim, nem que fosse pobre! Mas por capricho extravagante nao valia a pena! A esta ideia, uma grande calma, feita de alivio e docura, invadiu-me a alma. Era uma sensacao que frequentemente experimentava de cada vez que nao so aceitava o destino que a vida me impusera, mas tambem quando ia ao meu encontro. Era o que era: devia ser isto e nao outra coisa. Podia ser uma boa esposa, por muito estranho que pareca, ou uma mulher que se da por dinheiro, mas nunca uma desgracada que se condenou a uma vida de miseria apenas para satisfacao do seu orgulho. Por fim sorri, reconciliada comigo propria.
Estavamos em frente de uma loja de novidades para senhora. Minha mae disse-me:
— Olha que lindo lenco. De um lenco assim e que eu precisava.
Tranquila e serena, levantei os olhos para ver o lenco que minha mae indicava. Era realmente bonito, preto e branco, com ramos e passaros. Da porta da loja podia ver-se sobre o balcao uma caixa com divisoes cheia de lencos iguais e desdobrados. Perguntei-lhe:
— Gostas do lenco?
— Sim. Porque?
— Vais te-lo, mas, para comecar, da-me a tua mala e toma la a minha.
Ela nada percebia e olhava-me de boca aberta. Sem falar trocamos as malas, abri o fecho, segurando-o com dois dedos, e, devagar, com o passo de quem quer comprar, entrei na loja. Minha mae seguiu-me. Continuava a nao compreender, mas nao ousava perguntar.
— Queriamos ver lencos — disse eu a empregada aproximando-me da caixa das divisoes.
— Estes sao de seda, estes de caxemira, estes de la… estes sao de algodao… — dizia a empregada estendendo-os a minha frente.
Aproximei-me o mais possivel do balcao, com a mala ao nivel da barriga, e comecei a examinar, so com uma das maos, os lencos, abrindo-os e voltando-os para a luz para ver melhor o desenho. Havia pelo menos uma duzia deles, todos parecidos. Consegui que um ficasse caido de maneira que uma grande ponta pendesse para o lado de fora do balcao. Depois disse a empregada:
— Gostaria de ver alguns de tons mais vivos.
— Temos um artigo melhor, mas mais caro! — disse ela.
— Mostre-me.
A empregada voltou-se para puxar uma caixa de riscas. Era tempo; afastei-me um pouco do balcao e abri a mala; puxar a ponta do lenco e tornar a encostar-me ao balcao foi obra de um instante.
Entretanto, a empregada trouxera a caixa. Pousou-a sobre o balcao e mostrou-me outros lencos maiores e mais bonitos. Eu examinava-os fazendo observacoes sobre as cores e os desenhos e mostrando-os a minha mae, que tinha visto tudo e me respondia com acenos de cabeca, mais morta do que viva.
— Quanto custam? — perguntei.