A empregada disse o preco e eu respondi num tom desgostoso:
— Tinha razao; sao muito caros… pelo menos para mim. Obrigada.
Saimos da loja e dirigimo-nos rapidamente para uma igreja proxima, porque eu receava que a empregada desse pelo roubo e nos perseguisse por entre a multidao. Minha mae, que me dava o braco, olhava em volta com ar assustado, como um bebado que pergunta a si mesmo se nao serao os objectos que estao bebados porque os ve vacilar e baralharem-se. Nao pude deixar de sorrir da sua atrapalhacao. Nao sabia porque tinha roubado o lenco: a coisa, de resto, nao tinha importancia, porque eu ja tinha roubado a caixa de po de arroz de Gino e porque nas coisas deste genero o primeiro passo e que custa. Mas experimentava o mesmo prazer sensual e comecava a compreender porque havia tanta gente que roubava. Perto da igreja disse a minha mae:
— Queres entrar por um instante?
— Como quiseres! — respondeu-me em voz baixa.
Entramos: era uma igrejinha branca, redonda, a qual uma colunata disposta em volta do pavimento dava a impressao de uma sala de baile. Levantei os olhos e vi que a cupula estava cheia de frescos representando anjos de asas abertas. Tive a conviccao de que estes belos anjos me protegeriam e que a empregada so se aperceberia do roubo a noite. O silencio, o cheiro do incenso, a sombra, o recolhimento da igreja, davam-me seguranca, depois do tumulto e da luz violenta da rua. Entrara depressa, arrastando um pouco minha mae, mas acalmei-me logo e o medo desapareceu. Minha mae fez mencao de abrir a minha mala que ainda conservava e eu troquei-a pela sua, dizendo-lhe:
— Poe o lenco!
Ela abriu a mala e pos na cabeca o lenco roubado. Molhamos os dedos em agua benta e fomo-nos sentar na primeira fila de bancos em frente do altar-mor. Ajoelhei-me, enquanto minha mae ficava sentada com as maos sobre os joelhos, a cara escondida pelo lenco demasiadamente grande. Percebi que ela estava perturbada e nao pude deixar de comparar a sua perturbacao com a minha calma. Estava com uma disposicao de espirito doce e conciliadora; nao sentia remorsos e estava muito mais proxima da religiao do que quando nao praticava accoes condenaveis e trabalhava cerrando os dentes para ganhar a vida. Lembrei-me do fremito de desalento que momentos antes sentira ao olhar as ruas cheias de gente e senti-me reconfortada a ideia de que havia um Deus que via claro no meu intimo: verificava que em mim nenhum mal havia, que pelo unico facto de viver estava inocente, como todos os homens de resto. Sabia que este Deus nao estava la para me condenar ou julgar, mas para justificar a minha existencia, que so podia ser boa, visto que so dependia dele. Rezando maquinalmente e pronunciando as palavras da oracao, olhava o altar sobre o qual, atras da chamazinha tremula dos cirios, entrevia um quarto com uma imagem que me parecia ser a da Virgem e sentia que entre mim e a Virgem a questao nao era saber se eu devia viver desta ou daquela maneira, mas, mais radicalmente, se me devia considerar encorajada a viver ou nao. E bruscamente tive a impressao de que este encorajamento partia da silhueta escura que estava atras dos cirios do altar sob a forma de um brusco calor que me envolveu o corpo todo.
Minha mae ficara toda tremula e assustada, com o seu lenco novo que lhe fazia um bico por cima do nariz. Quando a olhei, nao pude deixar de sorrir com amizade.
— Reza um bocadinho — murmurei-lhe. — Veras que te faz bem.
Ela estremeceu, hesitou, depois ajoelhou-se e pos as maos como que de ma vontade. Sabia que ela nao queria acreditar na religiao, que lhe parecia um falsa consolacao destinada a acalma-la e a fazer-lhe esquecer as durezas da vida. Nem ao menos a vi mover maquinalmente os labios, e a sua cara cheia de desconfianca e de mau humor fez-me sorrir de novo. Teria desejado sossega-la, dizer-lhe que mudara de ideias, que nao devia ter receio, que nao seria obrigada a coser a maquina outra vez. Havia qualquer coisa de infantil na sua ma disposicao: era como uma crianca a quem se recusa um bolo que se tinha prometido, e esta aparencia parecia- me o aspecto fundamental da sua conduta para comigo. Se assim nao fosse, eu teria de pensar que ela desejaria que eu continuasse com o meu oficio para usufruir dai o seu conforto; e eu sabia, no fundo, que nao era verdade.
Quando acabou de rezar, persignou-se com ar seco e despeitado para marcar bem que o fazia so para me ser agradavel. Saimos. A porta tirou o lenco, dobrou-o cuidadosamente e meteu-o na mala. Voltamos a Rua Nacional e encaminhei-me para uma pastelaria.
— Vamos tomar um vermute! — disse-lhe.
— Nao, nao, nao vale a pena! — respondeu com uma voz em que a apreensao e o prazer se misturavam.
Fazia sempre a mesma coisa; por um velho habito, receava sempre que eu fizesse gastos excessivos.
— Ora! — disse-lhe. — Por um vermute!
Calou-se e seguiu-me.
Era uma velha pastelaria com um balcao com embutidos de caju luzidio e muitas vitrinas cheias de lindas caixas com bombons. Sentamo-nos num canto e pedi dois vermutes. O criado intimidou minha mae, que baixou os olhos, imovel e envergonhada, enquanto eu dava as competentes ordens. Quando trouxeram os vermutes, ela bebeu um pequeno gole, tornou a por o copinho em cima da mesa, olhou-me e pronunciou com gravidade:
— E bom.
— E vermute — disse eu.
O criado trouxe uma grande caixa de vidro e metal com bolos. Abri-a e disse-lhe:
— Come um bolinho!
— Nao, nao, por favor…
— Pelo menos um…
— Tirava-me o apetite.
— Um bolo so!…
Escolhi um folhado com creme e ofereci-lho dizendo:
— Come este, que e leve.
Ela mordicou-o com precaucao, olhando para o sitio que tinha mordido.
— E realmente muito bom! — disse por fim.
— Come outro — disse-lhe.
Desta vez nao se fez rogada e comeu o segundo bolo. Acabado o vermute, ficamos silenciosas, contentando-nos em olhar o vaivem de clientes na pastelaria. Compreendia que minha mae se sentia contente por estar sentada neste canto com um vermute e dois bolos no estomago, que as idas e vindas desta gente lhe despertavam a curiosidade e a divertiam e que nada tinha para me dizer. Era provavelmente a primeira vez que ela ia a um lugar destes.
Uma rapariga entrou. Trazia pela mao uma garotinha com uma gola de pele branca, um vestido curto, meias e luvas brancas. A mae escolheu um bolo e deu-o a garota. Eu disse a minha mae:
— Quando eu era pequena, nunca me trazias as pastelarias!
— Como podia eu? — respondeu.
— Agora — disse tranquilamente —, quem te leva as pastelarias sou eu.
Calou-se, depois disse-me com ar penalizado:
— Estas a censurar-me por ter vindo… mas eu nao queria!
Pousei a minha mao sobre a sua e disse-lhe:
— Nao te censuro… Pelo contrario, estou bem contente por te ter trazido… A avo nunca te levava as pastelarias?
Ela abanou a cabeca:
— Ate aos dezoito anos nunca sai do meu bairro.
— Entao ja ves — disse-lhe. — Numa familia e preciso que haja alguem que faca certas coisas, um dia ou outro. Tu nunca o fizeste, tua mae tambem nao, nem provavelmente a mae da tua mae… entao faco-as eu… Nao pode continuar tudo eternamente da mesma maneira.
Nada disse e passamos ainda um quarto de hora a observar as pessoas. Depois abri a mala, tirei a cigarreira e acendi um cigarro. E frequente as mulheres como eu fumarem nos lugares publicos para chamarem a atencao dos homens. Mas eu naquela altura nao pensava em procurar amantes; tinha ate decidido deixar de o fazer. Apetecia-me fumar, mais nada. Introduzi o cigarro nos labios e deitei uma baforada pelo nariz, conservando o cigarro entre os dedos e olhando em volta. Mas devia haver nos meus gestos, sem que eu desse por isso, qualquer coisa de provocante, porque vi logo alguem que se encontrava junto do balcao e segurava uma chavena de cafe que se preparava para beber suspender o movimento e olhar-me fixamente. Era um homem de quarenta