dentro de uma mala velha. Desta vez, como era natural, fizeram pesquisas, descobriram os dolares e prenderam-na. Agora ela jura que esta inocente, bem entendido, mas quem a vai acreditar depois de terem encontrado os dolares no seu quarto?
— Onde esta essa mulher?
— Esta na prisao e nao quer confessar! Mas sabes o que disse o comissario a minha patroa? “Esteja sossegada, minha senhora, ela acabara por confessar! A bem ou a mal!” Percebes, hem? A pancada!
Olhei-o gelada de espanto por ve-lo tao orgulhoso e tao excitado.
— Como se chama essa mulher? — perguntei como por acaso.
— Luisa Feligny… E uma mulher que ja nao e nova. Muito orgulhosa. Nao se compreende porque e criada de quarto; nao ha alguem mais honesta do que ela.
E ria divertido com a coincidencia.
Fiz um grande esforco como se me custasse respirar e perguntei-lhe:
— Ja reparaste que es um cobarde?
— Como? Porque? — perguntou-me, surpreendido. Agora, que o tratara por cobarde, sentia-me mais livre e mais desprendida. Sentia as narinas palpitarem de raiva. Continuei logo:
— E querias que ficasse com esse dinheiro? Mas eu sentia que era dinheiro que me queimaria os dedos!
— Qual historia! — disse, esforcando-se por nao se desconcertar. — Ela nao confessa e deixam-na.
— Mas disseste-me que esta na prisao e lhe batem.
— Disse isso por dizer.
— Pouco importa… deixaste prender uma inocente e tens ainda o descaramento de mo vir contar. Es um vil cobarde!
Bruscamente encolerizou-se, empalideceu e apertou-me a mao:
— Vais deixar de me chamar cobarde!
— Porque? Penso que es um cobarde e digo-te.
Ele perdeu o sangue-frio e teve um estranho gesto de violencia. Torceu-me a mao como se ma quisesse arranjar, depois, de repente, baixou a cabeca e mordeu-ma com forca. Com uma sacudidela, tirei a mao e levantei-me:
— Mas tu estas completamente idiota! — disse-lhe. — O que te aconteceu? Agora mordes? E inutil. Cobarde es e cobarde seras sempre!
Nao respondeu, mas agarrou a cabeca com as maos como se quisesse arrancar os cabelos.
Chamei o criado e paguei as contas todas: a minha, a dele e a do Sonzogne. Depois disse a Gino:
— Vou-me embora, mas devo dizer-te que entre nos esta tudo acabado… Nao me aparecas mais, nao me procures! Nao venhas, eu nao te conheco!
Nao respondeu nem levantou a cabeca e eu sai. A leitaria era a entrada da rua, a pouca distancia da minha casa. Comecei a andar devagar, do lado oposto as fortificacoes. Era noite, o ceu estava nublado, caia uma chuva miudinha como uma poeira de agua no ar imovel e tepido. Como de costume, as fortificacoes estavam as escuras, a parte alguns candeeiros, muito espacados. Mas assim que sai da leitaria vi um homem desencostar-se de um desses candeeiros e seguir ao longo das fortificacoes na mesma direccao que eu, na intencao provavel de me tolher o passo. Pelo seu impermeavel apertado na cintura e pela sua cabeca loura e quase rapada reconheci Sonzogne. Debaixo das muralhas parecia pequeno: de vez em quando desaparecia na sombra, depois reaparecia a luz de um candeeiro. Pela primeira vez, talvez, todos os homens me repugnaram, todos os homens pendurados as minhas saias como caes correndo atras de uma cadela. Vibrava ainda de colera, e, quando pensava naquela mulher que Gino com o seu procedimento metera na cadeia, nao podia deixar de sentir remorsos porque, no fim de contas, a caixa fora eu quem a roubara! Mas, mais do que remorso, era um sentimento de irritacao e de revolta. Insurgindo-me contra a injustica, e odiando Gino, detestava repeli-lo e saber que fora cometida uma injustica. Realmente, nao sou feita para estas coisas. Experimentava um mal-estar violento; tinha a impressao de nao ser mais eu mesma. Caminhava apressada, desejosa de chegar a casa antes que Sonzogne me abordasse, como parecia ter intencao de fazer. Mas ouvi o meu nome pronunciado por Gino, que me chamava, esbaforido:
— Adriana! Adriana!
Fingi nao ouvir e apressei o passo. Ele agarrou-me por um braco:
— Adriana… estivemos sempre de acordo… nao nos podemos separar assim!
Com uma sacudidela, libertei o braco e continuei o meu caminho. Do outro lado, sob as muralhas, a pequena silhueta clara de Sonzogne tinha saido da obscuridade para entrar no circulo luminoso do candeeiro.
— Mas eu amo-te, Adriana! — repetia Gino correndo ao meu lado.
Inspirava-me uma mistura de piedade e de odio, e essa mistura era-me tao desagradavel que nao a podia traduzir. Esforcei-me por pensar noutra coisa. De repente, nao sei como, uma ideia passou pelo meu espirito como um relampago. Lembrei-me de Astarito, da maneira como ele sempre me oferecera a sua ajuda, e pensei que talvez ele tivesse um meio de conseguir libertar da prisao aquela pobre mulher. Esta ideia produziu em mim um efeito benfazejo; a minha alma libertou-se do peso que a oprimia e tive mesmo a impressao de ja nao odiar Gino e de sentir por ele apenas compaixao. Parei e disse-lhe tranquilamente:
— Porque nao desapareces, Gino?
— Mas eu amo-te.
— Eu tambem; ja te amei, mas agora acabou; vai, desanda, e melhor para ti e para mim.
Estavamos num sitio escuro da avenida e nao havia candeeiros nem lojas. Agarrou-me pela cintura e tentou beijar-me. Teria podido muito bem livrar-me sozinha, porque sou forte e porque ninguem pode beijar uma mulher contra a sua vontade. Em vez disso, nao sei porque diabolica inspiracao, lembrei-me de chamar Sonzogne, que parara do outro lado da avenida, debaixo das fortificacoes, e nos olhava, imovel, com as maos nos bolsos do impermeavel. Penso que se o chamei foi porque julguei ter encontrado o meio de impedir a ma accao de Gino, deixando a coquetterie e a curiosidade aflorar de novo ao meu espirito. Gritei duas vezes:
— Sonzogne! Sonzogne!
Imediatamente ele atravessou a avenida e Gino, desconcertado, largou-me.
— Diga-lhe — proferi com calma enquanto Sonzogne se aproximava — que me deixe tranquila, porque ja nada quero com ele… Nao me quer ouvir, mas talvez a si ouca, visto que sao amigos.
— Estas a ouvir o que diz esta menina? — disse Sonzogne.
— Mas eu… — comecou Gino.
Pensava que iriam continuar a discutir por uns momentos e que por fim Gino, resignado, acabaria por se retirar. Mas de repente vi Sonzogne fazer-me um gesto que nao percebi, Gino olha-lo por um instante, aparvalhado, depois, sem uma palavra, cair e rolar do passeio para a valeta.
Levantei a cabeca e olhei melhor: Sonzogne estava na minha frente, as pernas afastadas, olhando o punho ainda fechado. Gino, no chao, as costas viradas para nos, voltava a si e com o cotovelo na valeta levantava lentamente a cabeca. Mas nao parecia querer por-se de pe; dava a impressao de olhar fixamente um papel velho cuja brancura se distinguia na lama da valeta. Depois Sonzogne disse:
— Vamos.
Com a cabeca um pouco atordoada encaminhei-me com ele para a minha casa.
Andava sem dizer palavra e apertando-me o braco. Era mais baixo do que eu, e a sua mao rodeava-me o braco como uma prisao metalica. Passado um momento, disse-lhe:
— Nao devia ter dado o soco a Gino… ele ia-se embora na mesma sem violencia.
— Assim ja nao a aborrecera mais — respondeu-me.
— Mas como foi? — perguntei. — Eu nada vi… so dei por Gino cair no chao.
— E uma questao de habito — respondeu.
Falava como se mastigasse as palavras antes de as pronunciar, ou, melhor, como se experimentasse a sua consistencia por entre os dentes, que conservava cerrados e que eu imaginava encaixados uns nos outros como os das feras. Agora experimentava um grande desejo de lhe apalpar os bracos e de sentir de novo sob a minha mao os seus musculos duros e fortes. Inspirava-me mais curiosidade do que atraccao. E, sobretudo, fazia-me medo. Mas o medo, tanto quanto eu o posso designar com clareza, pode ser um sentimento agradavel e por vezes excitante.