distraccao durou so um instante. De repente o meu espirito encheu-se de pensamentos tumultuosos, que se agitavam como passaros numa gaiola estreita. Lembro-me de que tive medo dele desde o primeiro momento. Pensando que tinha estado com ele na cama, compreendi que, cedendo ao seu abraco no escuro, o meu corpo horrorizado descobrira antes do meu espirito ignorante o que ele me escondia e fora por isso que gritara daquela maneira.
Acabei por lhe dizer a primeira coisa que me veio ao espirito:
— Porque fizeste isso?
— Tinha um objecto de valor para vender — respondeu-me (e os seus labios mal se mexiam enquanto falava). — Sabia que aquele comerciante era um bandido, mas nao conhecia outro… ofereceu-me um preco ridiculo… Eu detestava-o porque ja me tinha roubado uma vez… disse-lhe que ficava com o objecto e que ele nao passava de um malandro… Entao ele respondeu-me uma coisa que me fez perder a cabeca.
— Que foi? — perguntei-lhe.
Percebia agora com espanto que a medida que Sonzogne me contava essas coisas o meu medo comecava a desvanecer-se; sem querer, uma impressao de participacao me animava. No momento em que perguntei o que lhe tinha dito o ourives senti que esperava quase uma coisa atroz que pudesse desculpar o crime, ou pelo menos justifica-lo. Respondeu-me com secura:
— Disse-me que, se nao me fosse embora, me denunciaria. Em suma, pensei : “Pois e quanto basta!” E quando ele se voltou…
Calou-se e olhou-me.
— E como era ele? — perguntei.
— Calvo, baixinho, com cara de fuinha… parecia um coelho.
Disse isto com uma entoacao tranquila e antipatica, que me fez ver, e mesmo odiar, esse aldrabao com cara de coelho enquanto avaliava, com ar desconfiado e falso, o objecto que lhe oferecia Sonzogne. Agora ja nao tinha medo algum; sentia que Sonzogne me transmitira o seu rancor contra o assassinado; e nao estava ate convencida de que o condenaria. Na verdade tinha a impressao de estar tao bem dentro do que passara que me parecia que eu tambem teria sido capaz de cometer este crime. Como compreendia esta frase: “Respondeu-me uma coisa que me fez perder a cabeca!” Ele tinha perdido a cabeca uma vez com Gino e uma segunda comigo; so por sorte nao nos tinha morto tambem a mim e a Gino. Compreendia-o tao bem, penetrava-o tao bem, que nao so ja nao tinha medo, mas experimentava uma especie de simpatia horrorizada, essa simpatia que nao me conseguira inspirar antes de saber o seu crime e quando ele era apenas um amante como os outros.
— Mas tu nao tens pena? — perguntei-lhe. — Nao tens remorsos?
— Agora esta feito — disse.
Olhava-o intensamente. A esta resposta. surpreendi-me, sem dar por isso, a aprovar com a cabeca. E entao lembrei-me de Gino, que tambem era, segundo o termo de Sonzogne, um bandido, mas que nao deixava de ser um homem que eu amara e que me amava. Pensava que amanha poderia aprovar da mesma maneira a morte de Gino. Admitia que o ourives nao era nem melhor nem pior do que Gino, que nao havia diferenca entre os dois, a nao ser que eu nao conhecia o ourives, e se me parecera justo que o tivessem assassinado era unicamente porque tinha ouvido dizer de uma certa maneira que ele tinha cara de coelho — e senti remorsos e horror… Nao ha horror por Sonzogne, que era feito assim e que era preciso compreender para o julgar, mas de mim, que nao era feita como Sonzogne e portanto me deixava tomar pelo contagio do odio e do sangue. Fui tomada por uma especie de agitacao, e de um salto sentei-me na cama: — Oh! Meus Deus! — repetia eu. — Oh! Meu Deus! Porque fizeste isso? E porque mo contaste?
— Tinhas tanto medo de mim — respondeu com simplicidade — e no entanto nada sabias; pareceu-me estranho e contei-te… Felizmente — acrescentou, divertido com o proprio raciocinio — nem todos sao como tu; ja estaria descoberto!
— E melhor que te vas embora e me deixes sozinha — disse-lhe. — Vai, anda.
— Que tens tu agora? — respondeu-me.
Reconheci o tom que tinha quando estava furioso. Mas pareceu-me descobrir neste tom nao sei que pesar de se encontrar so, condenado tambem por mim, que pouco antes lhe tinha pertencido. Acrescentei rapidamente:
— Nao julgues que tenho medo de ti. Ja nao e por medo… Mas tenho de me habituar a ideia… Preciso de pensar… quando voltares ja sera diferente.
— Mas em que queres pensar? — disse. — Nao tens a intencao de me denunciar?
Estas palavras produziram-me a mesma impressao que me dera a confissao de Gino da maneira como traira a criada de quarto: era gente que vivia num mundo diferente do meu. Fiz um grande esforco e respondi:
— Mas se te digo que podes voltar! Sabes o que outra mulher te diria? Nao quero mais ouvir falar de ti, nao te quero ver mais… era o que diria!
— Mas agora queres que me va embora!
— Julgava que te querias ir embora… entao um momento de mais ou de menos… Mas, se queres ficar, fica! Queres dormir ca? Se queres, podes passar a noite comigo e ires-te embora so amanha de manha… Queres?
Para falar verdade, fazia-lhe este oferecimento numa voz baca e triste, mas fazia-lho e estava contente por isso. Deitou-me um olhar onde julguei descobrir um vislumbre de gratidao (talvez me tivesse enganado), depois abanou a cabeca:
— Falei por falar — disse. — Realmente tenho de me ir embora.
Levantou-se e aproximou-se da cadeira onde tinha deixado a roupa.
— Como quiseres — disse-lhe. — Mas, se queres ficar, podes ficar. E se qualquer dia tiveres necessidade de dormir aqui — acrescentei com esforco — podes vir.
Nao disse palavra; comecou a vestir-se. Levantei-me por minha vez e vesti um penteador. Enquanto o enfiava senti uma impressao de loucura, como se o quarto estivesse cheio de vozes murmurando-me ao ouvido palavras intensas e contraditorias. E talvez fosse esta impressao de loucura que me levou a fazer um gesto sem saber porque. Enquanto girava pelo quarto, fazendo movimentos lentos com um sentimento de frenesim, vi-o abaixar-se para atacar os sapatos. Entao ajoelhei-me na sua frente e disse-lhe:
— Deixa estar que eu faco isso!
Pareceu ficar admirado mas nao protestou. Agarrei-lhe no pe direito, coloquei-o no meu colo, fiz um no duplo no atacador do sapato direito e a mesma coisa no do esquerdo. Nem me agradeceu, nem nada me disse; provavelmente eramos dois no quarto a nao compreender porque tinha eu feito aquilo. Enfiou o casaco, tirou a carteira do bolso e fez mencao de me dar dinheiro.
— Nao, nao! — disse com involuntario nervosismo na voz. — Nao, nao… nao me des coisa alguma… nao e preciso…
— Porque? O meu dinheiro nao e igual ao dos outros? — perguntou-me com uma voz onde se notava ja ira.
Pareceu-me bizarro que nao compreendesse a minha repugnancia por esse dinheiro, tirado talvez do bolso ainda quente do morto. Mas talvez o compreendesse e quisesse comprometer-me por uma especie de cumplicidade, ao mesmo tempo que punha a prova os meus verdadeiros sentimentos por ele.
— Nao e isso… — objectei —, eu… eu… mas eu nao pensava em dinheiro quando te chamei… Deixa estar…
Pareceu acalmar-se.
— Esta bem! — disse. — Mais vais aceitar uma recordacao. Tirou do bolso um objecto que colocou sobre o marmore da mesa-de-cabeceira.
Olhei o objecto sem lhe pegar e reconheci a caixa de po de arroz de ouro, roubada por mim alguns meses antes na casa da patroa de Gino.
— Que e isto? — balbuciei.
— Foi o Gino quem ma deu… era o objecto que eu devia vender… aquele individuo queria-o de graca… mas eu creio que tem um certo valor: e de ouro.
Dominei-me e disse:
— Obrigada.
— De nada — respondeu.