Tinha vestido o impermeavel e apertava o cinto.
— Entao ate qualquer dia! — disse-me da porta.
Passado um momento, ouvi ao fundo da antecamara a porta fechar-se.
So, aproximei-me da mesa-de-cabeceira e peguei na caixinha. Sentia-me embaracada e tomou-me um sombrio espanto. A caixa brilhava na minha mao, e o rubi redondo e vermelho encaixado no fecho pareceu alargar-se na minha mao e cobrir o ouro. Tinha na mao uma mancha de sangue redonda e brilhante que pesava tanto como o objecto. Sacudi a cabeca; a mancha desapareceu; tornei a ver a caixa de ouro com um fecho de rubi. Entao pousei-a sobre a mesa-de-cabeceira, estendi-me na cama, com o corpo enrolado no penteador, apaguei a luz e reflecti.
Pensava que se me tivessem contado a historia da caixa eu teria rido como se ri de um caso extraordinario e quase inacreditavel. Era uma daquelas historias que obrigam a exclamar: “Ora vejam la a coincidencia!” e em seguida as boas mulheres do tipo da minha mae tiram dai indicacoes para o numero da lotaria: a morte e um numero, o ouro outro; o gatuno, outro. Mas desta vez fora comigo que a historia acontecera; e reparava com grande admiracao na diferenca que havia em estar fora ou dentro das coisas. Com efeito, acontecera-me aquilo que acontece a alguem que, tendo enterrado um grao, o encontra muito tempo depois transformado em planta vigorosa, cheia de folhas e coberta de botoes prestes a abrir. Mas que semente, que planta e que botoes! Ia de uma coisa para a outra sem chegar ao comeco. Tinha-me entregue a Gino porque esperava que casasse comigo, mas tinha-me enganado e eu por raiva furtara a caixa. Depois revelara-lhe o roubo, ele assustara-se e, para evitar que fosse acusado, tinha-lhe devolvido o objecto para que ele o entregasse a patroa. Mas em vez de o restituir, guardara-o e, julgando que o acusavam de roubo, tinha feito com que prendessem a criada de quarto, a qual estava inocente, e na prisao batiam-lhe! Entretanto Gino dera a caixa a Sonzogne para que a vendesse e Sonzogne fora a casa do ourives para o efeito, e este tinha irritado Sonzogne e Sonzogne, enfurecido, tinha-o morto, e logo que o ourives morreu Sonzogne tornou-se um assassino! Compreendia que nao podia inculpar-me, mas ao mesmo tempo pensava que a causa principal de todas estas desgracas tinha sido o meu desejo de me casar e de constituir familia, mas ao mesmo tempo nao conseguia eximir-me a um sentimento de remorso e de consternacao. Enfim, a forca de reflectir cheguei a conclusao de que no fim de contas a culpa de tudo recaia inteira sobre as minhas pernas, o meu seio, as minhas ancas, em resumo, na minha beleza, de que minha mae tanto se orgulhava, e que no fundo nada tinha de me acusar porque todas as coisas vinham da natureza. Mas se nisso pensava, era por irritacao e desespero, como se pensa numa coisa absurda para desculpar outras cem vezes mais absurdas. Sabia em consciencia que ninguem era culpado, que tudo era como tinha de ser, embora tudo fosse insuportavel, e que se realmente se pretendia que houvesse alguma culpa ou alguma inocencia, entao todo o mundo era ao mesmo tempo inocente e culpado.
Entretanto, lentamente a escuridao entrava em mim como a agua de uma inundacao subindo do res-do- chao aos andares superiores de uma casa. A primeira coisa a ser submersa foi seguramente a minha faculdade de julgamento. Ate ao fim a minha imaginacao fascinada saciou-se do crime de Sonzogne, mas isenta de toda a reprovacao e de todo o horror, como de um acto incompreensivel, e por conseguinte, no seu genero, estranhamente atraente. Julguei ver Sonzogne caminhar pela Rua Palestro, as maos nos bolsos do impermeavel, depois entrar na casa e esperar de pe na pequena sala do ourives. Julguei ver o ourives entrar e apertar a mao a Sonzogne. Estava atras da secretaria. Sonzogne estendeu-lhe a caixa, que ele examinou com abanadelas de cabeca destinadas a indicar o seu desprezo. Depois levantava a sua cara de coelho e oferecia uma cifra irrisoria. Sonzogne olhava-o fixamente, com olhos ja cheios de ira, e arrancava-lhe violentamente o objecto das maos. Depois acusava-o de ladrao e usurario. O outro ameacava-o de o denunciar e intimava-o a ir-se embora. Depois voltava-se ou baixava-se como quem nao quer discutir mais. Sonzogne agarrava o pisa-papeis de bronze e batia- lhe com ele na cabeca uma primeira vez. O outro tentava fugir e entao Sonzogne saltava de novo sobre ele e atingia-o com novas pancadas ate sentir que o tinha morto. Depois Sonzogne atirava-o ao chao, abria as gavetas, apoderava-se do dinheiro e fugia. Mas antes de sair, tinha eu lido no jornal, num novo acesso de furia, dera um pontape na cara do morto estendido no chao.
Demorava-me apaixonadamente sobre todos os pormenores do crime. Seguia Sonzogne como se acariciasse os seus gestos; era a sua mao que estendia a caixa, que empunhava o pisa-papeis, que feria o ourives; era o seu pe furioso que acabava por bater na cara do morto. Nenhum horror entrava nesta representacao, o menor, como ja disse, mas tambem qualquer aprovacao. Experimentava o mesmo deleite singular que me provocavam, quando era pequena, os contos de minha mae: esta-se no quente, encolhida contra sua mae e a imaginacao segue com embriaguez maravilhada as aventuras das personagens do conto. Somente, o meu conto era sombrio e sangrento, o heroi era Sonzogne e o meu encantamento misturava-se a uma impotente e melancolica tristeza. Como se quisesse tirar o sentido do conto, recomecava, revia ainda as fases do crime, sentindo de novo um obscuro prazer e encontrava-me de novo em face do misterio. Como um homem que salta de um lado para o outro de um precipicio mede mal o salto e cai no vacuo, no decurso de uma destas lucubracoes adormeci.
Dormi talvez duas horas e acordei; ou, melhor, o meu corpo comecou a acordar enquanto o meu espirito, mergulhado numa especie de torpor, continuava adormecido. Foi com as maos que comecei a acordar; estendia- as nas trevas como as de um cego, sem conseguir reconhecer o sitio onde estava. Adormecera estendida sobre a cama e agora estava de pe, num lugar estreito, entre muralhas verticais, hermeticas e lisas. Veio-me imediatamente a ideia uma cela de prisao; e ao mesmo tempo a recordacao da criada de quarto que Gino havia feito prender injustamente. Eu era a criada de quarto e a minha alma padecia toda a dor fisica da injustica sofrida. Esta dor dava-me a sensacao fisica de nao ser ja eu, mas a criada de quarto; sentia que esta dor me transformava, me fechava no corpo desta mulher, me impunha a sua cara, me obrigava aos seus gestos. Levei as maos a cara, chorava, pensava que me tinham fechado injustamente numa cela e que me era impossivel sair de la. Mas ao mesmo tempo sentia que era ainda a Adriana a quem nao tinham feito qualquer injustica e que nao tinha sido aprisionada. E compreendi que me bastaria um gesto para me libertar e deixar de ser a criada de quarto. No entanto, nao conseguia adivinhar qual seria esse gesto, sofrendo e desejando desesperadamente sair da minha prisao de angustia e de piedade. Depois, de repente, rodeada desta mesma luz, feita de espasmos e de trevas, que nos deslumbra quando recebemos uma pancada violenta, o nome de Astarito resplandeceu no meu espirito. “Irei ter com Astarito e pedirei que a liberte!”, pensava eu. Estendi de novo as maos e descobri ao mesmo tempo que as paredes da minha cela se tinham separado, deixando uma estreita abertura vertical por onde eu podia escapar-me. Dei alguns passos as escuras, os meus dedos encontraram o interruptor. Acendi a luz com uma febre histerica. O quarto iluminou-se. Estava ao pe da porta, nua, anelante, o corpo e a cara molhados de suor frio e abundante. A cela na qual me parecera estar encerrada nao era senao o espaco compreendido entre o armario, o canto do quarto e a comoda: espaco restrito que efectivamente as paredes e os dois moveis quase fechavam. Durante o sono levantara-me, e tinha-me encurralado ali.
Apaguei de novo a luz e voltei para a cama, medindo os passos. Antes de tornar a adormecer pensei que nao podia ressuscitar o ourives, mas que podia salvar, ou pelo menos tentar salvar, a criada de quarto: era a unica coisa que contava. Devia-o fazer, ainda mais porque acabava de descobrir que nao era tao boa como pensava. Pelo menos a minha bondade nao excluia o gosto pelo sangue, a admiracao pela violencia e a simpatia pelo crime.
4
Na manha seguinte vesti-me com cuidado, meti a caixa na mala e sai para telefonar a Astarito. Sentia-me estranhamente alegre. A angustia que a revelacao de Sonzogne me inspirara na noite anterior desaparecera completamente. Alem disso observei mais vezes no decorrer da minha vida que a vaidade e a pior inimiga da caridade e da reprovacao moral. Mais do que horror ou medo, eu sentia agora um sentimento de vaidade ao pensar que em toda a cidade eu era a unica a saber como fora praticado o crime e quem era o autor. “Eu sei quem matou o ourives”, dizia a mim propria, e tinha a sensacao de olhar os homens e as coisas com olhos diferentes. Parecia-me que qualquer coisa mudara, mesmo na minha fisionomia, e receava quase que se decifrasse claramente o segredo de Sonzogne na expressao da minha cara. Ao mesmo tempo experimentava um desejo doce, agradavel, irresistivel, de contar a alguem o que sabia. Como se fosse demasiada a agua num vaso muito pequeno para a conter, o segredo transbordava da minha alma e eu sentia a tentacao de o lancar para