outra. Suponho que e o principal motivo pelo qual tantos criminosos confiam as suas amantes ou as suas mulheres os crimes que cometeram e estas os contam a algum amigo mais intimo e aquele a outro, ate que a informacao chega aos ouvidos da policia, provocando assim a perdicao de todos. Mas penso tambem que, quando confiam os seus actos infames, os criminosos procuram descarregar uma parte de um peso que lhes pareceu intoleravel e fazem com que os outros tambem o carreguem. Como se o crime fosse um fardo que eles pudessem partilhar e repartir por varios ombros ate o tornar sem importancia. Como se, pelo contrario, ele nao fosse uma carga inalienavel, cujo peso nao diminuiu por estar distribuido por outras pessoas, mas que se multiplica por todos aqueles que aceitam a sua carga!
Percorrendo as ruas para encontrar um telefone publico, comprei dois jornais e procurei, nas noticias da cidade. informacoes sobre o crime da Rua Palestro. Mas muitos dias se tinham passado: nao vi senao algumas linhas que exprimiam a decepcao no seguinte titulo: “Nenhuma luz sobre o assassinio do ourives.” Compreendi que, a menos que praticasse qualquer erro grosseiro, Sonzogne podia estar certo de que nunca mais o descobririam. O caracter ilicito das actividades da vitima tornava, por si mesmo, muito dificeis as investigacoes policiais. O ourives, como diziam os jornais, estava com frequencia em contacto, secretamente e por motivos inconfessaveis, com pessoas de todas as classes sociais e de todas as condicoes; o assassino podia muito bem ser alguem que nunca o tivesse visto antes e que o matasse sem premeditacao. Esta hipotese estava muito proxima da verdade. Mas, precisamente porque era justa, deixava ver que a policia renunciara a descobrir o culpado.
Encontrei um telefone publico num restaurante e marquei o numero de Astarito. Havia bem umas seis semanas que nao lhe telefonava; devo te-lo apanhado desprevenido, porque nao reconheceu logo a minha voz e respondeu-me primeiro com o tom expedito que empregava quando estava no seu gabinete. Durante um instante tive a nitida impressao de que ele nao queria mais ouvir falar de mim e senti um baque no coracao ao pensar na criada de quarto na sua prisao, e na fatalidade que fizera com que Astarito deixasse de amar-me no proprio momento em que a sua intervencao era necessaria para salvar esta desgracada. No entanto, o meu proprio susto agradou-me porque me deu de novo o sentimento perdido da minha bondade e me fez compreender que a libertacao desta mulher era verdadeiramente importante para mim, e que, nao obstante as minhas relacoes com Sonzogne, o assassino, continuava a doce e compassiva Adriana que sempre fora.
Assustada, disse o meu nome a Astarito e ouvi com alivio a sua voz mudar imediatamente de tom e tartamudear enquanto o ritmo das suas palavras se acelerava.
Devo confessar que me senti invadir por uma onda de afeicao por ele, porque um amor assim (alias sempre lisonjeiro para uma mulher) dava-me seguranca e enchia-me de gratidao. Marquei-lhe encontro com uma voz acariciadora; prometeu vir sem falta e sai do restaurante.
Durante toda aquela noite que passara com pesadelos tinha chovido muito; varias vezes ouvira durante o sono o ruido da chuva misturado com os assobios do vento, formando como uma parede de mau tempo a roda da casa, aumentando a solidao e as trevas nas quais eu me debatia. Mas de madrugada a chuva cessara e os ultimos sopros de vento tinham varrido as nuvens, deixando o ceu limpido e o ar imovel e lavado. Depois de ter telefonado a Astarito, comecei a andar ao longo de uma avenida de platanos, sob os primeiros raios de sol dessa manha. Do meu penoso e frequentemente interrompido sono nao ficara mais que um leve atordoamento que o ar frio me fez em breve passar. A beleza do dia dava-me uma grande alegria, e todos os objectos sobre os quais os meus olhos pousavam pareciam-me dotados de uma seducao que encantava os meus olhos e me alegrava. Gostava das gotas de orvalho em torno das pedras, agora secas. Gostava dos troncos dos platanos com as escamas sobrepostas da sua casca; brancas, verdes, amarelas, castanhas, e aqui e ali douradas; gostava das fachadas das casas onde as grandes manchas molhadas conservavam ainda o traco da lavagem nocturna; gostava dos transeuntes da manha; homens que vao apressados para o trabalho, criadas com o cesto no braco, raparigas e rapazes acompanhados dos pais ou dos irmaos, levando pastas e livros. Parei para dar esmola a um velho mendigo, e quando procurava o dinheiro no meu porta-moedas, os meus olhos pousaram ternamente sobre o seu velho capote militar e comecaram a sentir simpatia pelos bocados com que ele estava remendado nos cotovelos e junto da gola. Eram bocados cinzentos, castanhos, amarelos ou de um verde menos destacado do conjunto; reparei no prazer que sentia ao observar a sua cor e a maneira como eles estavam solidamente cosidos com linha preta, com grandes pontos visiveis, e surpreendi-me a pensar no trabalho que ele teria tido uma manha para cortar com a tesoura a parte usada, procurar um bocado em qualquer velho farrapo, ajusta-lo sobre o buraco e cose-lo com amor. Gostava desses remeados como o esfomeado gosta de ver o pao saindo do forno; afastando-me, nao pude impedir-me de olhar para tras varias vezes para os olhar. Entao, de repente, pensei que devia ser bom ter uma vida semelhante aquela tao limpida, tao agradavel, tao limpa. Uma vida que tivesse sido lavada de todos os seus aspectos embaciados e permitir olhar tudo com amor, mesmo as coisas mais humildes. Nesse momento senti de novo o desejo, ha muito adormecido e mudo, de uma vida normal, com um homem so, numa casa nova, arrumada, clara e limpa. Apercebi-me de que o meu trabalho nao me agradava, se bem que, por uma singular contradicao, a minha natureza me levasse para ele. Pensava que este nao era um trabalho limpo, que nele havia sempre a minha volta, sobre o meu corpo, sobre os meus dedos, na minha cama, como que uma impressao de suor, de espuma, de calor impuro, de humidade pegajosa que parecia persistir mesmo depois de me ter lavado e de ter arrumado o quarto. Pensava tambem que esta historia de me despir e de me vestir durante quase todo o dia debaixo dos olhares de homens sempre diferentes impedia-me de considerar o meu corpo com o sentimento de prazer e de intimidade que teria gostado e que me lembro de ter experimentado, ainda rapariguinha, quando me via ao espelho ou quando tomava banho. E uma bela coisa poder observar o nosso proprio corpo como uma coisa nova e desconhecida que floresce, toma vigor e se embeleza sozinha; ora eu para dar de cada vez esta impressao de novidade aos meus amantes roubara-a a mim propria para sempre.
A luz destas reflexoes, o crime de Sonzogne, a perversidade de Gino, a infelicidade da criada de quarto e todas as outras intrigas nas quais me debatia apareciam-me como consequencias da irregularidade da minha vida. Consequencias alias privadas de sentido e que nao me davam qualquer impressao de falta nem podiam ser suprimidas, a nao ser que eu conseguisse satisfazer as minhas velhas aspiracoes a uma vida normal. Tomou-me um grande desejo de estar em regra em todos os sentidos. Em regra com a moral, que nao permitia um oficio como o meu, em regra com a natureza, que impunha que na minha idade uma mulher tivesse filhos, em regra com o gosto, que mandava que se vivesse no meio de belos objectos, que se usasse lindos vestidos frequentemente renovados, que se morasse em casas iluminadas, limpas e comodas. Somente estas coisas excluiam-se umas as outras; se eu estivesse em regra com a moral, nao podia estar em regra com a natureza; e o gosto contradizia ao mesmo tempo a moral e a natureza. A esta ideia experimentava o despeito que me era habitual, tao velho como a minha vida, de me saber sempre em divida com a necessidade e na incapacidade de me satisfazer somente pelo sacrificio das minhas melhores aspiracoes. Mas apercebia-me tambem mais uma vez de que nao tinha aceite inteiramente a minha sorte; e isso dava-me confianca porque pensava que logo que se proporcionasse ocasiao de mudar de vida, eu nao seria apanhada desprevenida, mas aproveitaria a ocasiao com clarividencia e decisao.
Marcara encontro com Astarito ao meio-dia, a saida da reparticao; tinha ainda algumas horas a minha frente: sem saber o que fazer, decidi ir a casa de Gisela. Havia ja algum tempo que nao a via; supus que qualquer outro ocupava na sua vida o antigo lugar de Ricardo: meio noivo, meio amante. Gisela, tambem como eu, esperava regularizar a sua situacao; suponho que e uma esperanca que tem todas as mulheres da minha especie. Mas eu era levada a isso por uma inclinacao nata, enquanto Gisela, que dava uma grande importancia a consideracao, era sobretudo por questao de decoro. Ela corava quando se pensava no que ela era, eis tudo, se bem que ela tivesse sido levada a se-lo por uma vocacao muito mais profunda que a minha. Eu, ao contrario, nao sentia o menor sentimento de vergonha, mas, em certos momentos, uma impressao de servidao e de vida contra a natureza.
Chegada a casa de Gisela, dispunha-me a subir a escada quando a voz da porteira me obrigou a parar:
— Vai a casa da menina Gisela? Ela ja ca nao mora.
— Para onde foi ela?
— Rua Casablanca, 7.
A Rua Casablanca era uma rua nova situada num bairro recente.
— Um senhor louro veio busca-la de automovel; levaram as coisas e partiram.
Reparei imediatamente que se viera era justamente para ouvir aquilo, que ela tinha partido com alguem. Nao sei porque experimentei uma brusca impressao de cansaco; as pernas vergaram-se-me e tive de me apoiar a
