— Nao tive tempo — respondeu-me vivamente. — Com a mudanca, sabes… E depois tive que comprar tanta coisa: moveis, roupa branca, loucas… Nem tinha tempo para respirar… E que e preciso tanta coisa para montar uma casa!
Falava beliscando os labios como certas senhoras distintas costumam fazer quando falam nestas coisas.
— Compreendo — disse eu sem sombra de maldade nem de amargura, absolutamente como se se tratasse de uma coisa que nao me dissesse respeito. — Agora, que estas instalada e que as tuas coisas caminham melhor, nao te agrada ver-me… tens vergonha de mim.
— Nao tenho vergonha de ti — retorquiu com uma leve irritacao, mais motivada, pareceu-me, pelo meu tom razoavel que pelas minhas palavras. — Se pensas isso, es estupida. Somente, doravante nao nos podemos ver como dantes… quero dizer, nao podemos sair juntas e fazer tudo o resto… Se ele viesse a saber, estava arranjada!
— Esta sossegada — disse-lhe com docura. — Nao me tornaras a ver. Hoje vim unicamente para saber o que te tinha acontecido.
Fingiu nao ouvir, confirmando assim as minhas suposicoes. Houve um momento de silencio. Depois perguntou-me com ar de falsa solicitude:
— E tu?
Em seguida, com uma espontaneidade que me assustou, pensei em Jaime. Respondi-lhe com voz embargada:
— Eu? Esta tudo como de costume.
— E Astarito?
— Vejo-o as vezes.
— E Gino?
— Acabei com tudo.
A recordacao de Gino apertou-me o coracao. Mas Gisela interpretou a sua maneira a expressao mortificada que o meu rosto deixava transparecer; pensava talvez que eu estava amargurada pela sua sorte e pela sua atitude desdenhosa. Disse com uma delicadeza afectada:
— Ninguem me tira da cabeca que bastava tu quereres para Astarito te por casa tambem.
— Mas eu nao quero Astarito nem outro qualquer — respondi-lhe tranquilamente.
Vi a sua cara desconcertada.
— Porque? — perguntou-me. — Nao gostavas de ter uma casa como esta?
— A casa e bonita — respondi —, mas eu gosto mais da minha liberdade.
— Eu sou livre — disse-me, irritada. — Mais livre do que tu… tenho o dia todo para mim.
— Nao e dessa liberdade que eu falo.
— Entao de qual?
Compreendi que a magoara, mas porque nao tinha mostrado admiracao suficiente pela casa, de que ela estava tao orgulhosa. Expliquei-lhe, no entanto, que de maneira nenhuma desprezava a situacao dela, mas que nao me queria ligar sem amor a qualquer homem. e feri-a de novo, mais ainda desta vez. Preferi mudar de conversa e disse-lhe :
— Mostra-me a casa… Quantos quartos tens?
— Que te importa a casa — disse-me com desapontamento ingenuo —, se acabas de dizer que nao gostarias de ter uma casa como esta?
— Nao foi isso que eu disse — respondi com calma. — A tua casa e muito bonita. Gostaria ate muito de ter uma assim!
Ela nao respondeu. Baixou os olhos com ar mortificado:
— Entao — disse eu molemente ao fim de uns instantes —, nao ma queres mostrar?
Levantou os olhos e vi com espanto que estavam cheios de lagrimas.
— Nao es a amiga que eu julgava ! — gritou-me. — Tu… tu… estas cheia de inveja… Desprezas de proposito a minha casa para me magoares.
Falava sem me olhar, com a cara cheia de lagrimas. Eram lagrimas de despeito; a invejosa desta vez era ela; sofria de uma inveja sem objectivo e corava sem o saber pelo meu amor desesperado por Jaime e pelo desprendimento amargo que este amor me dava. Mas, compreendendo-a tao bem, e porque a compreendia, senti pena dela. Levantei-me, aproximei-me e pousei-lhe a mao no ombro.
— Porque dizes isso? Nao sou invejosa… Nao sao estas coisas que eu invejo. Mas estou contente por te saber feliz. Entao, va, mostra-me os outros quartos — disse-lhe beijando-a.
Assoou-se e pareceu-me desejar faze-lo:
— Sao so quatro — disse-me —, e estao quase vazios.
— Mostra-mos.
Levantou-se, precedeu-me no corredor, abriu varias portas e mostrou-me o quarto, onde havia so uma cama, um sofa aos pes da cama, um quarto vazio onde ela tinha a intencao de por mais uma outra cama para os convidados e o quarto da criada, que nao era mais que um cubiculo. Mostrou-me estas tres casas com uma especie de despeito, explicando-me com brevidade o seu respectivo uso e sem tirar qualquer prazer disso. Mas a sua vaidade era mais forte do que o seu mau humor quando me mostrou a casa de banho e a cozinha, ambas revestidas de azulejos, com engenhos electricos novos e torneiras cintilantes… Explicou-me a maneira como funcionavam esses aparelhos, a sua superioridade sobre a aparelhagem de gas, o seu asseio e o seu rendimento; e se bem que o meu espirito andasse longe, fingi desta vez interessar-me pelas suas explicacoes com exclamacoes de admiracao e de surpresa. Ficou tao contente com a minha atitude que me disse, uma vez acabada a visita:
— Vamos la dentro tomar outro calice de licor.
— Nao, nao — respondi-lhe. — Tenho de me retirar.
— Porque esta pressa? Espera um momento.
— Nao posso.
Estavamos no corredor. Hesitou um momento, depois declarou-me :
— Gostava que voltasses. Sabes o que podemos fazer? Ele vai com frequencia a Roma… Um destes dias mando dizer-te, arranjamos dois dos teus amigos e passamos um bom bocado.
— Mas se ele sabe?
— E porque ha-de saber?
— Esta bem — disse eu. — Fica combinado.
Hesitei por minha vez, depois perguntei-lhe corajosamente :
— A proposito, diz-me uma coisa… e ele nunca te falou do amigo que o acompanhava naquela noite?
— O estudante? Porque? Interessa-te?
— Nao, e so para saber…
— Ainda ontem a noite o vimos.
Nao consegui dissimular mais a minha perturbacao.
— Ouve — disse-lhe com a voz mal segura —, se o vires diz-lhe que venha ter comigo… mas diz-lhe sem parecer ligar grande importancia ao assunto.
— Esta bem — respondeu-me. — Eu digo-lhe.
Mas ela perscrutava-me com ar desconfiado e eu, sob o seu olhar, perdi a seguranca, porque me parecia que o meu amor por Jaime estava escrito na minha cara em letras bem visiveis. Pelo tom da sua resposta compreendi que nao faria o que lhe pedira. Desesperada, abri a porta, pedi licenca e desci a escada com rapidez sem olhar para tras. No segundo andar parei e apoiei-me a parede olhando para cima. “Porque lhe disse isto? — pensava. — Que se passou em mim?” Continuei a descer, de cabeca baixa.
Tinha marcado encontro com Astarito em minha casa. Quando cheguei estava esgotada; ja nao estava habituada a sair de manha; todo este sol e todas estas idas e vindas me tinham fatigado. Sentia-me triste; a minha visita a Gisela ja a tinha expiado quando chorara no taxi que me transportara a sua casa nova. Foi minha mae quem me abriu a porta, dizendo-me que alguem me esperava ha mais de uma hora no meu quarto. Fui directamente para la e sentei-me na beira da cama, sem me importar com Astarito, que, de pe, em frente da janela, parecia olhar para o patio. Fiquei um momento imovel, com a mao sobre o coracao, ofegante, tanto correra pelas escadas acima. Estava de costas voltadas para Astarito e olhava com ar abstracto para a porta do