quarto: ele tinha-me dado os bons-dias, mas nem sequer lhe respondera. Veio sentar-se ao pe de mim e, passando-me a mao pela cintura, olhou-me fixamente.

No meio de todas as minhas preocupacoes esquecera a sua louca sensualidade, sempre viva e agucada. Achei-a intoleravel.

— Entao tu tens sempre desejo? — disse-lhe lentamente, num tom desagradavel e recuando.

Nao respondeu, tomou-me a mao e levou-a aos labios com um olhar submisso.

— Tens sempre desejo? — repeti. — Mesmo a esta hora? Depois de teres trabalhado toda a manha? Em jejum? Antes do almoco? Sabes que es extraordinario?

— Mas eu amo-te — disse-me. Vi os labios tremerem-lhe e os olhos franzirem-se-lhe.

— Mesmo assim… — disse-lhe. — Ha uma hora para o amor e uma hora para o resto. Marquei-te encontro justamente a esta hora para que compreendesses que nao era de amor que se tratava… e tu, ao contrario… Nao tens vergonha?

Olhava-me fixamente sem responder. Bruscamente tive a impressao de o compreender demasiado bem. Ele amava-me e este encontro esperava-o ha nao sei quantos meses. Enquanto eu me debatia no meio de mil dificuldades, ele nao tinha feito outra coisa senao pensar nas minhas pernas, no meu seio, nas minhas ancas, na minha boca!

— Entao — disse-lhe mais branda —, se eu me despir…

Ele disse que sim com a cabeca. Deu-me vontade de rir, sem maldade, mas nao sem despeito.

— E a ideia de que me possa sentir triste ou simplesmente longe de todas estas coisas nunca te passa pela cabeca? Que posso ter fome, estar cansada… ou ainda ter outras preocupacoes… Isso nunca te ocorre, nao?

Olhava-me. De repente atirou-se sobre mim, abracou-me com forca e aconchegou a cabeca na cavidade do meu ombro. Nao me beijava, contentava-se em apoiar a cara contra a minha carne para sentir o seu calor. Respirava com forca e de vez em quando suspirava. Agora ja nao estava irritada com ele; os seus gestos suscitavam-me pelo menos a compaixao e a consternacao que me eram habituais: ja nao estava triste. Quando achei que ele ja tinha suspirado bastante, repeli-o e disse-lhe:

— Preciso de falar contigo de uma coisa muito seria.

Olhou-me, segurou a minha mao e comecou a acaricia-la. Era persistente. Realmente para ele nada mais existia que o seu desejo.

— Tu es da policia, nao es? — perguntei-lhe.

— Sou.

— Pois bem! Entao manda-me prender e mete-me na prisao!

Disse-lhe isto em tom resoluto. Naquele momento desejava realmente que ele o fizesse.

— Mas porque? Que te aconteceu?

— Aconteceu que sou uma ladra! — disse-lhe com forca. — Acontece que roubei e que prenderam uma inocente por minha causa… portanto e preciso que me prendam; irei para a prisao de boa vontade. E isso que eu quero.

Nao me pareceu admirado, mas apenas contrariado. Fez uma careta e disse:

— Explica-te!

— Ja acabei de te dizer… sou uma ladra!

Em poucas palavras contei-lhe o roubo e expliquei-lhe como tinha sido presa a criada de quarto. Falei do estratagema de Gino, mas sem o nomear; disse somente: “um criado”. Mas desejava imenso falar-lhe de Sonzogne e do seu crime; fiz um esforco enorme para me conter. Conclui:

— Agora escolhe: ou libertas esta mulher da prisao… ou vou hoje mesmo entregar-me ao comissariado.

— Devagarinho!… — repetia levantando a mao. — Nao ha urgencia alguma. Essa mulher esta na prisao, mas nao foi condenada. Esperemos.

— Nao… nao posso esperar. Ela esta presa e parece que lhe batem… nao posso esperar… Agora es tu quem tem de decidir…

O meu tom fez-lhe compreender que estava a falar serio. Levantou-se com uma expressao descontente e deu alguns passos pelo quarto. Depois disse como se falasse consigo proprio :

— Ainda ha a historia dos dolares.

— Mas ela negou sempre… depois de lhos terem encontrado… podemos dizer que era uma vinganca de alguem que a detesta.

— E a caixa, tem-na?

— Esta aqui! — disse-lhe tirando o objecto da mala e dando-lho.

Ele recusou-se a aceita-lo.

— Nao, nao — disse-me —, nao e a mim que o tens de dar.

Hesitou um momento, depois acrescentou:

— Posso conseguir libertar essa pobre mulher, mas e preciso que ao mesmo tempo a policia tenha a prova da sua inocencia… esta caixa precisamente.

— Pronto! Vai restitui-la a sua proprietaria.

Teve um riso desagradavel.

— Como se ve que nada percebes destas coisas! — disse-me. — Se es tu quem me da a caixa, sou moralmente obrigado a mandar-te prender… Senao dirao: como e que Astarito tem o objecto roubado, quem lho deu e como? Nao, tens de arranjar maneira de fazer chegar a caixa as maos do comissario, mas sem te descobrir.

— Posso manda-la pelo correio?

— Nao, pelo correio, nao.

Deu ainda alguns passos pelo quarto e depois veio sentar-se ao meu lado e disse-me:

— Vais fazer o seguinte… Conheces algum padre? Lembrei-me do monge frances ao qual me confessara depois do passeio a Viterbo.

— Sim — respondi-lhe —, o meu confessor.

— Confessas-te ainda?

— Confessava-me.

— Bem… vai procurar o teu confessor e conta-lhe o que fizeste como acabas de mo fazer a mim… roga-lhe que devolva a caixa ao comissariado… nenhum confessor pode recusar uma coisa destas… ele nao e obrigado a fornecer qualquer indicacao porque esta ligado ao segredo da confissao. Um ou dois dias depois, telefonarei e agirei… por fim a tua criada de quarto sera posta em liberdade.

Senti uma alegria tao grande que nao me contive e deitei-lhe os bracos a roda do pescoco e beijei-o. Continuou ja com a voz tremula de volupia:

— Mas nao deves tornar a fazer destas coisas. Quando precisares de dinheiro, nao tens mais que me pedir…

— Posso ir hoje mesmo procurar o confessor?

— Com certeza!

Tinha ficado com a caixa na mao. Fiquei muito tempo imovel com o olhar perdido. Sentia um grande alivio, como se fosse eu a criada de quarto. Tinha realmente a impressao de ser ela ao pensar no alivio que ela experimentaria, bem maior que o meu quando a libertassem! Ja nao me sentia triste, nem cansada, nem desgostosa. Entretanto, Astarito, introduzindo os dedos em volta do meu pulso, procurava subir ao longo do braco por debaixo da manga. Voltei-me e disse-lhe com docura e com voz acariciadora :

— Ainda continuas a desejar-me?

Incapaz de falar, disse que sim com a cabeca.

— Nao te sentes cansado? — continuei com voz terna e cruel. — Nao achas que e tarde, que seria melhor deixar para outro dia?

Vi-o fazer um gesto negativo com a cabeca.

— Amas-me assim tanto? — perguntei-lhe.

— Sabes bem que te amo — respondeu em voz baixa. Fez mencao de me beijar. Libertei-me e disse:

— Espera!

Acalmou-se logo porque compreendeu que eu tinha acedido. Levantei-me, dirigi-me lentamente para a porta e dei volta a chave na fechadura. Depois fui a janela, abri-a, corri as persianas e fechei as portas. Ele

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