grande para chamar Jaime.

Mas quando saimos, a porta da escada que eu tinha esquecido que fechara a chave revelou o meu subterfugio.

— Tinhas medo que eu saisse! — murmurou enquanto eu, confusa, procurava a chave na mala.

Ele agarrou a chave e foi ele proprio quem abriu a porta, olhando-me com um abanar de cabeca que parecia reprimir uma afectuosa severidade. O meu coracao encheu-se de alegria e corri atras dele na escada, segurei-lhe o braco e perguntei-lhe esbaforida:

— Nao ficaste contrariado, pois nao?

Nao respondeu.

Na rua comecamos a caminhar ao sol, de braco dado, ao longo das portas e das lojas. Estava tao feliz de andar ao seu lado que esqueci completamente os meus juramentos, e quando passamos em frente do pequeno pavilhao do torreao foi como se alguem pegasse na minha mao e a forcasse a apertar a sua. Apercebi-me de que me inclinava para a frente para o olhar melhor e lhe dizia:

— Sabes que estou bem contente de te ver?

Fez a sua careta habitual de embaraco e respondeu-me:

— Tambem estou contente — mas num tom que nao condizia com as suas palavras.

Mordi os labios ate fazer sangue e desentrelacei os meus dedos dos seus. Nao pareceu dar por isso; olhava a sua volta com ar distraido. A porta das muralhas parou e pronunciou numa voz reticente:

— Ouve, devo dizer-te uma coisa.

— Diz!

— Foi realmente por acaso que vim ver-te… e tambem por acaso nao tenho nem um soldo no bolso. Por isso e melhor que nos separemos.

E dizendo isto estendia-me a mao. Comecei por experimentar um grande pavor: “Ele deixa-me”, pensava e, no meu desespero, nao via outra solucao senao agarrar-me ao seu pescoco chorando e suplicando. Mas o meu segundo movimento fez-me encontrar, no proprio pretexto que ele encontrara antes para me abandonar, uma solucao facil e mudei de sentimento. Pensei que podia pagar a refeicao, e a ideia de lhe pagar da mesma maneira que toda a gente me pagava a mim seduziu-me. Ja tenho falado no prazer sensual que sentia de cada vez que recebia dinheiro dos homens. Descobrira agora que havia em pagar-lhe um prazer tambem forte, e que a mistura do amor e do dinheiro — seja o dinheiro dado ou recebido — nao era somente uma questao de proveito. Impetuosamente gritei-lhe:

— Mas nao penses nisso! Serei eu quem pagara! Olha: tenho dinheiro.

Abri a mala e mostrei-lhe algumas notas que metera la na vespera a noite.

Ele disse com uma especie de decepcao:

— Mas isso nao se faz!

— Que importancia tem isso? Tu voltaste: e justo que festeje o teu regresso!

— Nao, nao, nao quero!

De novo fez mencao de estender a mao e de se ir embora. Mas desta vez agarrei-o pelo braco declarando-lhe:

— Va! Depressa! Nao falemos mais nisso!

E dirigi-me para o restaurante. Sentamo-nos a mesma mesa que da primeira vez. Tudo estava como entao, a parte um raio de sol invernal que penetrava pelos vidros da porta, iluminando as mesas e a parede. O dono da casa trouxe-nos a lista e eu dei as ordens num tom seguro e protector, parecido com aquele que empregavam comigo os meus amantes. Enquanto encomendava o almoco, ele conservou-se em silencio, de olhos baixos. Esquecera-me de pedir vinho porque nao bebia; mas lembrei-me de que na primeira vez ele bebera; tornei a chamar o homem e encomendei-lhe um litro.

Logo que ele se afastou, abri a mala, tirei uma nota, dobrei-a em quatro, olhei a minha volta e estendi-a por debaixo da mesa ao meu companheiro.

Olhou-me com ar interrogativo.

— E o dinheiro — disse-lhe em voz baixa. — Assim, quando quiseres, podes pagar.

— Ah! O dinheiro — disse lentamente.

Apanhou a nota, desdobrou-a em cima da mesa, olhou-a, depois tornou a dobra-la, abriu a minha mala e tornou a mete-la la com uma seriedade ligeiramente ironica.

— Queres que seja eu a pagar? — perguntei, desconcertada.

— Nao — respondeu tranquilamente. — Eu pagarei.

— Mas entao porque me disseste que nao tinhas dinheiro?

Hesitou, depois respondeu com uma sinceridade cheia de amargura:

— Nao foi por acaso que te procurei. Para te dizer a verdade. ha um mes que penso em vir. Mas quando me encontrei diante de ti desejei tornar a ir-me embora. Entao lembrei-me de te dizer que nao tinha dinheiro: esperava que tu me mandasses para o diabo. Sorriu e passou a mao pelo queixo:

— Enganei-me, ao que parece — acrescentou.

Fora entao uma especie de experiencia que ele fizera comigo. Mas nao me desejava. Ou, para ser mais exacta, a atraccao que sentia por mim era combatida por uma aversao igualmente forte. De futuro reconheceria nesta faculdade de mentir e de representar um papel para fazer uma experiencia uma das suas caracteristicas principais. Naquele momento sentia-me deveras perturbada e perguntava a mim propria se me devia lamentar ou felicitar pela sua astucia e pela sua desfeita.

— Porque te querias ir embora? — perguntei-lhe maquinalmente.

— Porque compreendi que nao experimentava qualquer sentimento por ti… ou, mais exactamente, um desejo como aquele que o meu amigo sente pela tua camarada.

— Sabes que eles vivem juntos? — disse-lhe.

— Sim — respondeu-me com ar de desprezo. — Sao feitos um para o outro.

— Nada sentes por mim — repeti —, e vieste? No meu amor decepcionado (decepcao que eu, de resto, previra) tinha prazer em lhe fazer notar a sua inconsequencia.

— Parece-me — respondeu — que eu sou o que vulgarmente se chama um caracter fraco.

— Vieste e isso basta-me — disse-lhe cruelmente.

Alonguei a mao por debaixo da mesa e pousei-lha sobre os joelhos, olhando-o. A este contacto vi-o perturbar-se e notei que o queixo lhe tremia. Senti prazer em ve-lo tremer; compreendi que, apesar de me desejar tanto como acabara de me dizer quando me confessara ter pensado durante um mes em me vir ver, havia uma parte dele proprio que me era hostil e que era contra essa parte que eu deveria dirigir os meus esforcos a fim de a humilhar e destruir. Lembrei-me do seu olhar passando como um fio sobre as minhas costas nuas na primeira vez em que estivemos juntos; fizera mal em me deixar gelar por aquele olhar, que se eu tivesse persistido nos meus esforcos para o seduzir, esse olhar se teria extinto da mesma maneira que neste momento a dignidade convulsa da sua cara caira e se evaporara. Inclinada sobre a mesa como se lhe quisesse falar em voz baixa, acariciava-o e espiava com o olhar — um olhar que eu sentia alegre e satisfeito — o efeito da minha caricia sobre o seu rosto. Olhava-me com o ar interrogativo e magoado dos seus grandes olhos brilhantes com longos cilios de mulher. Acabou por me dizer:

— Se te chega agradares-me desta maneira, podes continuar.

Endireitei-me imediatamente. Quase no mesmo instante o patrao trouxe a comida. Comecamos os dois a comer, sem apetite.

— No teu lugar procuraria obrigar-me a beber — disse-me.

— Porque?

— Porque quando estou embriagado faco com mais facilidade aquilo que os outros querem.

A frase que tinha ja pronunciado: “Se te chega agradares-me desta maneira, podes continuar!” tinha-me magoado. O que ele dizia a respeito do vinho convenceu-me da inutilidade dos meus esforcos. Desesperada, respondi-lhe:

— Quero que facas so aquilo que te apetecer. Se te queres ir embora, nao tens mais que ir… a porta esta ali.

— Para me ir embora — disse ele num tom brincalhao — era preciso que tivesse a certeza de o desejar!

— Queres que seja eu a ir-me embora?

Вы читаете A Romana
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату