seguia-me com os olhos enquanto eu girava pelo quarto, com uma atitude cheia de complacencia, de preguica, de majestade. Sentia o seu olhar sobre mim e compreendia ate que ponto a minha aceitacao inesperada lhe era agradavel. Logo que puxei as persianas comecei a cantarolar em surdina com voz intima e alegre. Sempre cantarolando, abri o armario, tirei o casaco e pendurei-o. Depois, sem cessar de cantar em voz baixa. olhei-me no espelho. Tive a impressao de nunca ter estado tao bonita, com os olhos brilhantes, doces e profundos, as narinas frementes, a boca entreaberta sobre os meus dentes regulares e brancos. Compreendi que era bela porque estava contente comigo propria e porque me sentia boa. Cantei um pouco mais alto e comecei a desabotoar o vestido de baixo para cima. Cantava uma cancao completamente idiota que estava muito em voga nessa altura e dizia:

— Canto esta cancao de que gosto tanto, que faz dlin dlon, dlin dlon, dlin dlon!

Esta canconeta pateta parecia-me a propria vida, absurda sem duvida, mas por vezes tambem doce e sedutora. Bruscamente, quando ja estava com o peito nu, alguem bateu a porta.

— Mais logo — disse eu. — Agora nao posso.

— E uma coisa urgente — respondeu a voz de minha mae.

Desconfiei de qualquer coisa, abri a porta e espreitei.

Minha mae fez-me sinal para sair e fechar a porta. Depois sussurrou-me :

— Esta uma pessoa na sala que quer falar-te por forca.

— Quem e?

— Nao sei. E um rapaz moreno.

Abri devagarinho a porta da sala e olhei. Vi um homem virado de costas para mim, encostado a mesa. Depois recomendei a minha mae:

— Diz-lhe que venho ja… Nao o deixes sair da sala.

Ela disse-me que ficasse descansada que o faria e tornei a entrar no quarto.

Astarito estava ainda sentado na cama como eu o tinha deixado :

— Depressa, depressa! Tenho pena, mas preciso de que te vas embora!

Perturbou-se e comecou a balbuciar quaisquer protestos. Nao o deixei acabar e continuei:

— A minha tia adoeceu de repente no meio da rua e eu e minha mae temos de ir ja ao hospital… Depressa, depressa!

Era uma mentira bastante grosseira, mas naquele momento foi a unica que me ocorreu. Olhava-me aparvalhado, como se nao acreditasse na sua pouca sorte. Reparei que tinha tirado os sapatos e que tinha umas meias listadas.

— Entao! Porque me olhas assim? Tens de te retirar! — insistia eu, desesperada.

— Esta bem, vou-me embora.

Baixou-se para calcar os sapatos. De pe, na sua frente, estendia-lhe ja o casaco. Compreendi que teria de lhe fazer alguma promessa se quisesse que interviesse a favor da criada de quarto.

— Ouve — acrescentei, ajudando-o a vestir o sobretudo —, estou realmente vexada… mas volta amanha a noite… depois do jantar… podemos estar juntos com tranquilidade… agora teria que te deixar logo em seguida… assim e melhor.

Ele nao respondeu e eu acompanhei-o ate a porta, conduzindo-o pela mao, como se fosse a primeira vez que ele tivesse vindo a minha casa, tal era o medo de que ele entrasse na sala onde Jaime me esperava.

— Ouve — disse-lhe. — Olha que vou hoje mesmo falar ao confessor.

Respondeu que sim com a cabeca para dizer que era conveniente. Tinha uma expressao ofendida e gelada. Na minha Impaciencia, nem esperei que ele se despedisse e fechei-lhe a porta.

5

Enquanto me aproximava da porta da sala grande e punha a mao no puxador, compreendi de repente que, a menos que sucedesse um milagre, eu arriscava-me a criar entre mim e Jaime as lamentaveis relacoes que existiam entre mim e Astarito. E apercebi-me de que o sentimento de timidez, de receio e de cego desejo que eu inspirava a Astarito era o mesmo que eu sentia por Jaime.

Compreendendo perfeitamente que se quisesse ser amada me devia portar de uma maneira diferente, sentia-me invencivelmente impulsionada pelo desejo de me colocar perante a sua pessoa numa posicao de dependencia, de ansiedade, de sujeicao. Quais poderiam ser os motivos da minha posicao de inferioridade nao saberia dizer: se os tivesse conhecido, esta posicao deixaria de existir. O meu instinto advertia-me apenas de que eramos feitos de maneira diferente e que eu era mais resistente do que Astarito, mas mais fragil que Jaime: que da mesma maneira que qualquer coisa me impedia de amar Astarito, alguma coisa tambem havia que impedia Jaime de me amar; que da mesma forma como o amor de Astarito por mim, o meu amor por Jaime nascera sob mau signo e acabaria ainda pior. O coracao saltava-me do peito e tinha a respiracao entrecortada antes de o ver e de lhe falar. Estava cheia de medo de dar um passo em falso, de lhe fazer notar a minha ansiedade e o desejo que tinha de lhe agradar e ao mesmo tempo o receio de o perder para sempre. esta seguramente a pior maldicao do amor; nunca e suficientemente retribuido: quando se ama nao se e amado e quando nos amam nao correspondemos. Nunca acontece dois amantes terem a mesma forca de desejo e de sentimento, se bem que este seja o ideal para o qual todos os homens tendem, cada um por sua conta. Sabia com certeza que desde o momento em que me apaixonasse por Jaime ele nao estaria apaixonado por mim. E sabia tambem, sem querer confessa-lo a mim propria, que, por mais que fizesse, nunca conseguiria que ele me tivesse amor. Tudo isto me passou pelo espirito enquanto esperava. mortalmente perturbada, atras da porta da sala grande. Sentia-me completamente aturdida, pronta a cometer as maiores tolices, e isso irritava-me o mais possivel. Acabei por me encher de coragem e entrei.

Estava ainda na posicao em que o vira quando espreitara pela porta entreaberta, apoiado a mesa, de costas para a porta. Ouvindo-me entrar, voltou-se, olhou-me com ar hesitante, atento e critico e disse-me:

— Passei por tua casa e lembrei-me de te fazer uma visita… achas que fiz mal?

Reparei que falava devagar, como se quisesse observar-me antes de pronunciar as palavras, e eu tremia a ideia de que talvez lhe parecesse menos sedutora que a recordacao que o levara a procurar-me depois de tanto tempo. Encorajou-me a lembranca de que pouco antes, quando me olhara ao espelho, me achara bela. Respondi- lhe ansiosa:

— De maneira nenhuma. Fizeste muito bem… ia sair para almocar… Vamos almocar juntos!

— Mas tu reconheces-me? — perguntou-me, talvez com ironia. — Sabes quem eu sou?

— Se te reconheco! — disse eu, brincalhona.

E antes que a minha vontade dominasse os meus gestos, ja lhe tinha pegado na mao e levado aos labios, olhando-o com amor. Ele perdeu um pouco a serenidade e isso deu-me prazer.

— Porque nunca mais deste sinal de vida, grande maroto! — disse-lhe com voz terna.

Abanou a cabeca e respondeu:

— Tenho tido muito que fazer.

Eu perdera completamente a cabeca. Dos labios levei a mao ao coracao, abaixo do seio, e disse-lhe:

— Sente como o meu coracao bate!

Mas ao mesmo tempo chamava-me idiota, porque pensei que nao deveria fazer nem dizer aquilo.

Fez uma careta um pouco aborrecida; entao, assustada. acrescentei depressa:

— Vou vestir o casaco. Volto ja. Espera.

Sentia-me tao transtornada e tinha tanto medo de o perder que, uma vez no vestibulo, fechei rapidamente a chave a porta da escada e tirei-a da fechadura. Se ele quisesse aproveitar o momento em que eu me vestia para se safar nao lhe seria possivel. Em seguida entrei no quarto e, diante do espelho, tirei o resto da pintura da boca e dos olhos com um canto do lenco. Depois tornei a por baton, mas muito levemente. Fui ao bengaleiro buscar o casaco, nao o encontrei e senti-me completamente perdida; depois lembrei-me de que o tinha pendurado no armario, tirei-o e vesti-o. Olhei-me no espelho e pareceu-me que o penteado que tinha chamava demasiado a atencao. Rapidamente, com algumas penteadelas, arranjei o cabelo como o usava na epoca em que era a noiva de Gino. Mas enquanto me penteava jurei solenemente que de futuro dominaria a minha paixao e nao teria nem gestos nem palavras irreflectidos. Por fim estava pronta. Passei pelo vestibulo e cheguei a porta da sala

Вы читаете A Romana
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату