Olhamo-nos. A minha dor dava-me a seguranca da minha resolucao. Esta atitude pareceu perturba-lo tanto como as caricias que lhe fizera primeiro:
— Nao — disse-me com esforco. — Fica.
Recomecamos a comer em silencio. Depois vi-o encher um grande copo de vinho e esvazia-lo de um trago.
— Ves? Estou a beber — disse-me.
— Vejo.
— Daqui a pouco estou bebado. Entao ja serei bem capaz de te fazer uma declaracao!
Estas palavras trespassaram-me o coracao. Tive a impressao de que ja nao podia continuar a sofrer desta maneira.
— Ouve — disse-lhe humildemente. — Nao me atormentes mais!
— Atormento-te?
— Sim, metes-me a ridiculo. Mas eu nao te peco outra coisa senao que nao te preocupes mais comigo. Apaixonei-me por ti… acabara por passar… Mas por enquanto deixa-me tranquila.
Nao respondeu e bebeu o segundo copo de vinho. Temi te-lo ferido e perguntei-lhe:
— Que queres? Estas zangado comigo?
— Eu? Pelo contrario.
— Se te agradar trocar de mim, podes faze-lo; dizia aquilo so por dizer.
— Mas eu nao faco troca de ti.
— E se te da prazer dizeres-me maldades — insistia eu, tomada de nao sei que desejo de me mostrar submissa com ele, sem manobras nem calculos —, podes dize-las… nao te amarei menos por isso; amar-te-ei ainda mais! Se me batesses, beijaria a mao com a qual me tivesses batido.
Olhava-me com atencao e parecia extraordinariamente embaracado. Era evidente que a minha paixao o desconcertava. Acabou por dizer:
— Vamos embora?
— Para onde?
— Para tua casa.
Estava tao desesperada que tinha quase esquecido o motivo do meu desespero. A um convite tao inesperado, quando ainda nem sequer tinhamos comido o primeiro prato e metade do vinho ainda estava no jarro, senti mais estupefaccao que prazer. Pensava que nao era o amor mas o embaraco que o levava a interromper o almoco e disse-lhe:
— Estas sobre brasas para me deixar, nao e?
— Como percebeste? — perguntou-me.
Esta resposta, demasiado cruel para ser verdade, encorajou-me, respondi-lhe baixando os olhos:
— Sabes… ha coisas que se compreendem logo! Nao, vamos acabar de comer; depois vamo-nos embora!
— Como quiseres… mas vou embebedar-me.
— Embebeda-te… Nada tenho com isso!
— Mas vou embebedar-me ate me fazer mal… e entao em vez de um amante para amar, tens um doente para tratar.
Tive a ingenuidade de lhe mostrar o meu receio. Estendi a mao para o jarro e disse-lhe:
— Nao bebas mais.
Desatou a rir e disse:
— Caiste no laco!
— Qual laco?
— Nao te aflijas, que eu nao adoeco assim com essa facilidade!
— So o fazia por ti — disse-lhe, humilhada.
— Por mim? Oh! Oh!
Continuou a arreliar-me. Mas conservava nas suas alfinetadas a gentileza que lhe era natural, se bem que isso nao me contrariasse muito.
— Mas tu, tambem, porque nao bebes? — perguntou.
— Nao gosto. Alem disso, a mim basta-me um copo para me embriagar.
— Que mal pode fazer-te? Ficaremos os dois alegres.
— E feio uma mulher embriagada; nao quero que me vejas assim!
— Porque? Que tem isso de feio?
— Nao sei. E feio ver uma mulher cambalear, dizer disparates, fazer gestos inconvenientes… E triste. Eu sei que sou uma desgracada e sei que tu tambem pensas o mesmo de mim, que sou uma desgracada. Mas se bebesse e tu me visses embriagada, nunca mais me poderias ver.
— E se te ordenasse que bebesses?
— Queres por forca aviltar-me! — disse, reflectindo. — A unica coisa boa que tenho e nao ser ignobil… Queres realmente que eu perca ate mesmo esta qualidade?
— Quero! — disse-me com enfase.
— Nao percebo em que te pode isso dar prazer! Mas se o desejas muito, esta bem, serve-me vinho! — disse-lhe.
E estendi o copo.
Olhou o copo e, depois de me olhar tambem, desatou a rir outra vez:
— Estava a brincar — disse.
— Nunca deixas de brincar!
— Entao tu nao es ignobil — repetiu passado um momento em que me olhara em silencio.
— E o que dizem, pelo menos.
— Julgas que eu tambem o penso?
— Como hei-de eu saber o que pensas?!
— Vejamos… que julgas tu que penso de ti e sinto por ti?
— Nao sei — disse eu lentamente cheia de pavor. — Certamente que nao me amas como eu te amo. Talvez eu te agrade como uma mulher pode agradar a um homem quando nao e de todo feia.
— Ah! Entao achas que nao es de todo feia?
— Disso tenho a certeza — disse com orgulho. — Sei mesmo que sou muito bonita. Mas de que me serve a beleza?
— A beleza para nada serve.
Entretanto, tinhamos acabado de comer e esvaziaramos quase dois jarros de vinho.
— Como ves — disse-me —, bebi e nao estou bebado. Mas os seus olhos brilhantes e a agitacao das maos contradiziam as suas palavras. Olhava-o talvez com um ar esperancado.
— Queres voltar para casa? — disse-me. — E Venus toda inteira agarrada a sua presa.
— Que estas a dizer?
— Nada. Sao uns versos franceses. Hep! Chefe! Era sempre um pouco enfatico, mas de uma maneira comica. E foi de uma maneira comica que interpelou o patrao e lhe meteu o dinheiro debaixo do nariz, juntando- lhe uma gorjeta excessiva e declarando:
— Este dinheiro e para si!
Em seguida bebeu o resto do vinho e veio ter comigo. Ja na rua, sentia uma grande pressa de chegar a casa.
Sabia que era de ma vontade que ele voltava comigo; sabia que me desprezava e detestava o sentimento que o impelia para mim sem que o pudesse impedir. Mas eu tinha a maior confianca na minha beleza e no meu amor por ele e estava impaciente por afrontar a sua hostilidade com essas armas; sentia de novo uma vontade agressiva e alegre, e que o meu amor seria mais forte do que a sua aversao, que ao calor da minha chama o seu metal duro acabaria por se fundir e ele amar-me-ia por sua vez.
Caminhando a seu lado na grande avenida deserta as primeiras horas da tarde, disse-lhe:
— Vais prometer-me que, uma vez em minha casa, nao procuraras ir-te embora.
— Prometo.
— Vais prometer-me ainda outra coisa.