ombreira da porta para nao cair. Mas reagi, e depois de reflectir decidi ir a nova casa de Gisela. Tomei um taxi e disse ao motorista que me levasse a Rua Casablanca.
Quanto mais o taxi avancava, tanto mais nos afastavamos da cidade e das suas velhas casas, alinhadas nas ruas estreitas e encostadas umas as outras. As ruas alargavam, bifurcavam, confluiam para formar pracas e tornavam-se mais e mais largas; as casas eram novas, e entre duas construcoes entrevia-se de vez em quando uma faixa verde que era o campo. Percebi que a minha viagem tinha um sentido oculto, extremamente penoso, e tornava-me cada vez mais triste. Lembrava-me de todos os esforcos feitos por Gisela para me roubar a inocencia e me tornar igual a ela; e sem o querer, da mesma maneira natural como uma ferida sangra, assim tambem comecei a chorar.
Quando desci do taxi, tinha os olhos brilhantes e as faces cheias de lagrimas.
— Nao vale a pena chorar, menina — disse-me o chauffeur.
Limitei-me a abanar a cabeca e encaminhei-me para a porta da casa de Gisela.
Esta casa era inteiramente branca, de estilo moderno, de construcao absolutamente recente como o demonstravam os materiais ainda acumulados no pequeno jardim e as manchas de cal que maculavam as grades. Entrei num hall branco completamente nu; a escada era tambem branca, com janelas de vidro fosco, deixando passar uma luz suave. O porteiro, um forte rapaz ruivo, de fato-macaco, muito diferente dos velhos porteiros sujos que estava habituada a ver, indicou-me o ascensor; premi o botao e o elevador comecou a subir. Exalava um agradavel cheiro a madeira nova e verniz. No ruido que fazia tambem se tinha a impressao de se notar qualquer coisa de novo como o trabalhar de um motor em rodagem. O elevador subiu ate ao ultimo andar: a medida que subia, a luz aumentava como se nao existisse tecto e como se subisse direito para o ceu.
Por fim parou, eu sai e encontrei-me rodeada de uma claridade luminosa, num patamar de um branco ardente. em frente de uma porta de madeira clara com puxadores de cobre lavrados. Toquei: uma criadinha morena e magra veio abrir: tinha uma figura gentil, uma touca de renda e um avental bordado.
— A menina Santis? — perguntei. — Diga-lhe que esta aqui a Adriana.
Deixou-me para ir ao fundo do corredor junto de uma porta envidracada com vidros bacos como os da escada. O corredor era tambem branco e nu como o resto da casa; julguei que o apartamento devia ser pequeno, quatro casas, nao mais. Estava aquecido; o calor do irradiador reavivava o cheiro penetrante da cal fresca e da pintura nova. A porta envidracada abriu-se ao fundo do corredor; a criadinha reapareceu e disse-me que podia entrar.
Entrando, primeiro nada vi, porque atraves de um grande vitral o sol de Inverno entrava em jorros deslumbrantes. Era o ultimo andar: atraves desse vitral so se via o ceu azul, resplandecente de sol. Por momentos esqueci a minha visita. Fechando os olhos perante esse sol quente e dourado como um velho vinho, senti uma impressao de bem-estar. Mas a voz de Gisela fez-me estremecer. Estava sentada em frente do vitral e por cima de uma mesinha semeada de frascos estendia os dedos a uma mulher baixinha e grisalha: a manicura.
— Oh! Adriana! Senta-te um momento — disse-me Gisela com falsa atencao, como lhe era habitual.
Sentei-me ao lado da porta e olhei a minha volta. A sala, vista do lado da janela, era comprida e estreita. A bem dizer quase nao tinha moveis: uma mesa, um bufete, algumas cadeiras de madeira clara; mas era tudo novo e sobretudo havia o sol. Este sol tinha qualquer coisa de luxuoso. Ha casas ricas — pensei eu — que nao possuem um sol como este. Fechei os olhos gulosamente com docura e por um momento em nada pensei. Depois senti qualquer coisa pesada e fofa cair sobre os meus joelhos; abri os olhos e vi que era um gato enorme, de uma raca que eu nunca tinha visto, com um pelo extremamente comprido, fino como seda, de um cinzento-azulado, com um focinho grande, mau e majestoso, que nao me agradou. O gato comecou a ronronar, rocou-se por mim, levantou a sua cauda emplumada e emitiu uns roncos miados. Depois enroscou-se sobre os meus joelhos.
— Que lindo gato! — disse eu. — De que raca e?
— E um gato persa — respondeu com orgulho Gisela. E uma raca muito apreciada. Estes gatos chegam a ser pagos por muito dinheiro.
— Nunca tinha visto — disse eu acariciando o gato.
— Sabe quem tem um gato igual a este? — disse a manicura. — A senhora Radaelli. Se visse como o amima! Mais que a um cristao! No outro dia perfumou-o com o pulverizador… Entao. ponho mais uma camada de verniz nas unhas dos pes?
— Nao, Marta, nao vale a pena, por hoje chega — disse Gisela.
A manicura arrumou os seus instrumentos e os frasquinhos numa maleta, cumprimentou-me e saiu da sala.
Uma vez sos, olhamo-nos. Gisela tambem me pareceu toda de novo como a casa. Vestia um bonito tricot de angora vermelho com uma saia castanha que eu nunca lhe tinha visto. Tinha engordado: debaixo da malha o seio sobressaia mais e as ancas estavam mais amplas. Notei tambem que tinha as palpebras um pouco inchadas como as pessoas que comem bem, dormem muito e nao tem aborrecimentos.
As palpebras assim davam-lhe um ar ligeiramente sonso. Olhou um instante para as suas unhas e perguntou-me, para dizer qualquer coisa:
— Que dizes? Gostas da minha casa?
Eu nao sou invejosa. Mas nesse momento, talvez pela primeira vez na minha existencia, senti a mordedura da inveja e admirava-me que houvesse pessoas capazes de manter em toda a sua vida um tal sentimento, por me parecer desagradavel e doloroso no mais alto grau. Sentia na cara uma especie de esticao como se tivesse emagrecido subitamente e esse esgar impossibilitava-me de sorrir e de dizer algumas palavras gentis a Gisela, como teria desejado. Experimentava por ela uma aversao encarnicada. Teria querido dizer-lhe alguma frase desagradavel: feri-la, ofende-la, humilha-la, qualquer coisa que envenenasse a sua alegria. “Que tenho eu? — pensava, confusa, sem deixar de acariciar o gato. — Ja nao sou eu?” Felizmente que estes sentimentos nao duraram muito. Logo a bondade existente no fundo da minha alma se revoltou e lutou contra esta subita inveja. Pensava que Gisela era minha amiga, que a sua sorte me devia ser grata e que devia estar contente por ela.
Imaginei Gisela entrando pela primeira vez na sua casa nova batendo as maos de alegria: no mesmo instante o frio da inveja desapareceu da minha cara e senti-me de novo aquecida pelo belo sol da sala, mas de uma maneira mais intima, como se o sol tivesse entrado tambem na minha alma.
— Ainda o perguntas? — disse-lhe. — Uma casa tao bonita, tao alegre? Como a arranjaste?
Tive a impressao de ter pronunciado estas palavras com sinceridade e sorri; mais para mim propria, como por uma recompensa, do que para Gisela. Respondeu-me em ar de confidencia e familiaridade:
— Lembras-te de Joao Carlos, daquele louro com o qual me zanguei logo naquela noite? Pois bem! Algum tempo depois voltou a procurar-me… era bem melhor do que me pareceu a primeira vista… Depois tornamo-nos a encontrar varias vezes… E ha alguns dias disse-me: “Vem comigo, que quero fazer-te uma surpresa…” Eu pensei que me quisesse dar um presente: uma mala, um perfume… Em vez disso meteu-me no carro, trouxe-me aqui, mandou-me entrar… A casa estava completamente vazia… Pensei que fosse para ele. Perguntou-me se eu gostava, disse-lhe que sim mas sem imaginar, claro… Entao ele disse-me: “Aluguei esta casa para ti!” Podes calcular a minha surpresa!
Sorria com ar digno e satisfeito, deitando um olhar a sua volta. Impulsivamente levantei-me e fui beija-la, dizendo:
— Fico bem contente! Bem contente! Podes crer que sinto verdadeiro prazer com isso!
Este gesto acabou por dissipar no meu espirito todo o sentimento hostil que ainda conservava. Encostei a cara a janela e olhei para fora. A casa elevava-se sobre uma especie de promontorio debaixo do qual se estendia uma paisagem imensa. Era uma terra cultivada, percorrida por um riachozinho sinuoso, semeada aqui e ali de matas, de quintas, de acidentes de terreno pedregoso. Da cidade so se via, num canto do panorama, um pequeno numero de casas brancas, ultimo prolongamento dos arrabaldes. Uma fila de montanhas desenhava-se no horizonte sobre o ceu azul e luminoso. Voltei-me para Gisela e disse-lhe:
— Sabes que tens uma vista magnifica?
— Nao e? — respondeu-me.
Foi ao bufete e tirou dois copinhos e uma garrafa de ventre bojudo :
— Tomas um calice de licor? — perguntou-me com ar negligente.
Notava-se com clareza que todos os gestos de dona de casa a enchiam de satisfacao.
Sentamo-nos a mesa e bebemos o licor em silencio. Sentia que Gisela estava embaracada. Fui ao encontro das suas ideias e disse-lhe com docura:
— Tu nao te portaste bem comigo! Podias ao menos ter-me dito!