— Sim.

— E agora ainda te faco medo?

— Nao; agora podes ate matar-me… e-me indiferente. Eu dizia a verdade, e ate naquele momento quase desejava que ele me matasse, porque de repente perdera o desejo de viver. Mas ele irritou-se e disse-me:

— Quem fala em te matar? E porque te fazia medo?

— Nao sei… fazias-me medo… sao coisas que nao se podem explicar.

— Gino fazia-te medo?

— Porque me havia de fazer medo?

— E entao porque te faco eu medo, eu?

Agora ja nao mostrava vaidade, mas eu sentia que comecava a ficar furioso.

— Ora! — disse-lhe para o apaziguar. — Tu fazias-me medo porque te acho capaz de fazer sei la o que!

Nao respondeu logo e reflectiu durante uns instantes. Depois voltou-se e perguntou-me em tom ameacador:

— Tudo isso quer dizer que devo vestir-me e ir-me embora?

Olhava-o e compreendi que estava de novo a ponto de encolerizar-se e que uma recusa da minha parte faria cair sobre mim qualquer outra violencia, talvez pior ainda. Era preciso aceitar. Mas pensava naqueles olhos claros e sentia repugnancia a ideia de os ver olharem-me fixamente durante o amor. Disse-lhe molemente.

— Nao… fica se quiseres… mas apaga a luz. Levantou-se, pequeno e branco, extraordinariamente bem proporcionado, a parte o pescoco, que tinha um pouco curto, e foi nas pontas dos pes dar a volta ao interruptor ao pe da porta. Mas compreendi logo que nao tivera uma boa ideia em ter pedido para apagar a luz, porque assim que o quarto ficou as escuras o medo, que julgava ja afastado, tomou de novo posse de mim. Era como se tivesse dentro do quarto nao um homem, mas um leopardo ou qualquer outra fera, capaz de se encolher num canto para me apanhar desprevenida, de saltar sobre mim e despedacar-me. Talvez se tenha demorado no meio do quarto as escuras tenteando caminho por entre as cadeiras e os outros moveis; talvez fosse tambem o meu temor que me fizesse parecer a demora longa. Julguei que tinha passado um tempo infinito ate ele chegar a cama, e quando pos as suas maos sobre mim nao pude reprimir um novo sobressalto, mais forte ainda do que o primeiro. Esperava que ele nao se apercebesse, mas tinha o instinto agucado — exactamente como os animais — e ouvi logo, muito perto de mim, a sua voz perguntar-me :

— Ainda tens medo?

Por certo, no escuro, o meu anjo-da-guarda devia estar presente. O tom da sua voz fez-me adivinhar que ele tinha levantado o braco e que esperava a minha resposta para decidir se me devia bater ou nao. Percebi que ele sabia que fazia medo e desejava que nao o temessem e o amassem como aos outros homens. Mas para chegar a esse resultado nao conhecia outro meio que o de inspirar um medo ainda mais forte. Estendi a mao, fingi acariciar-lhe o pescoco e o ombro direito, e tive a certeza do que imaginara; ele tinha o braco levantado, pronto a esbofetear-me. Disse com voz forte, esforcando-me para dar a minha voz a entoacao habitual, doce e tranquila:

— Nao… desta vez e so frio… Vamos enfiar-nos na cama.

— Esta bem! — disse ele.

Este “Esta bem!”, onde subsistia ainda um resto de ameaca, confirmou a minha desconfianca. Entao, enquanto que, debaixo dos lencois, ele me apertava e me estreitava, passei um momento de angustia indescritivel, um dos piores da minha vida. O medo inteiricava-me os membros, que, sem eu o querer, se arrepiavam ao contacto do seu corpo, singularmente liso, escorregando e serpenteando. Ao mesmo tempo dizia a mim propria ser absurdo ter medo num momento daqueles e procurava com todas as forcas da minha alma dominar o meu temor e abandonar-me a ele sem receio, como a um amante bem amado. Sentia este medo, nao tanto nos meus membros, que me obedeciam, as vezes com grande repugnancia, mas no fundo das minhas entranhas, que pareciam fechar-se e recusar-se ao abraco com horror. Acabou por me possuir e senti um prazer que o terror tornava negro e atroz. Nao pude evitar de emitir um grito longo e lamentoso, na escuridao, como se a posse final nao fosse a do amor, mas a da morte, como se esse grito fosse o da minha vida que partia, nao deixando atras dela mais do que um corpo inanimado e martirizado.

Depois ficamos um bom bocado as escuras sem falar. Mas eu estava estafada e adormeci quase em seguida. Senti logo a impressao de um enorme peso sobre o meu peito, como se Sonzogne se tivesse acocorado, dobrado sobre si proprio, nu como estava, os joelhos entre os bracos e a cara sobre os joelhos. Estava sentado sobre o meu peito, as nadegas duras e nuas fazendo pressao sobre o meu pescoco, os pes sobre o meu estomago. A medida que adormecia, o seu peso aumentava, e, a dormir, mexia-me de um lado para o outro para experimentar desembaracar-me, ou pelo menos desloca-lo. Por fim tive a impressao de sufocar e quis gritar. Fazia-o sem voz, que estacionava no meu peito muito tempo, um tempo que me pareceu infinito; por fim consegui emiti-la e acordei num choro alto.

A lampada da mesa-de-cabeceira estava acesa e Sonzogne olhava-me apoiado no cotovelo.

— Dormi muito tempo? — perguntei-lhe.

— Uma meia hora — disse por entre dentes.

Deitei-lhe uma olhadela onde devia persistir o terror do meu pesadelo, porque me perguntou com um curioso acento, como para entabular conversa:

— E agora, ainda tens medo?

— Nao sei.

— Se soubesses quem eu sou, ainda terias mais medo do que anteriormente.

Todos os homens depois do amor se inclinam para as conversas sobre eles proprios e para as confidencias. Sonzogne parecia nao fazer excepcao a regra.

O tom da sua voz, ao contrario do que lhe era habitual, era leve, calmo e quase afectuoso, futil, com uma ponta de vaidade. Mas assustava-me outra vez terrivelmente, e o meu coracao comecou a bater com toda a forca como se fosse rebentar.

— Porque? — perguntei. — Quem es tu?

Olhou-me nao porque hesitasse, mas porque queria saborear o efeito das suas palavras sobre mim. Acabou por dizer lentamente.

— Sou o da Rua Palestro; sou esse.

Ele pensava que nem seria preciso explicar o que se passara na Rua Palestro, e desta vez a sua vaidade nao se enganou. Alguns dias antes um crime horrivel fora cometido numa casa dessa rua; todos os jornais haviam falado nele, e as pessoas apaixonadas por esses assuntos tinham-no comentado muito. Minha mae, que passava uma grande parte do dia a coleccionar noticias diversas, tinha sido a primeira a falar-me no caso. Um jovem ourives fora assassinado no apartamento onde vivia. Ao que parecia, a arma de que se servira Sonzogne — porque agora ja sabia quem era o assassino — tinha sido um pesado pisa-papeis de bronze. A policia nao tinha encontrado qualquer indicio que a conduzisse a descoberta do assassino. Havia suspeitas de o ourives ter sido receptador; supunha-se pois — com razao, como se vera — que tinha sido morto no decorrer de uma transaccao ilicita.

Tenho muitas vezes notado que assim que uma noticia nos enche de horror ou de espanto, a nossa cabeca esvazia-se e a nossa atencao fixa-se sobre um objecto qualquer, o primeiro que nos cai sob os olhos, mas de uma maneira singular, como se ela quisesse trespassar a superficie para chegar a nao sei que segredo que se escondesse ai. Foi o que me aconteceu nessa noite com Sonzogne, depois de me ter feito aquela revelacao. Fiquei com os olhos escancarados e o espirito esvaziou-se de repente, como um recipiente que contenha um liquido ou um po muito fino, assim que e furado; somente, sentia o meu espirito, embora vazio, pronto a encher- se de outra materia, e esta sensacao era dolorosa porque eu teria querido preencher esse vazio e nao o conseguia. Enquanto o ouvia, fixava os olhos sobre o pulso de Sonzogne, estendido a meu lado, com o cotovelo apoiado na cama. Tinha o braco branco, liso, redondo, sem pelos, onde nada indicava os seus musculos extraordinarios. O pulso tambem era redondo e branco; nesse pulso estava o unico objecto que Sonzogne conservava na sua nudez: uma pulseira de couro, parecida com as pulseiras dos relogios, mas sem relogio. A cor desta pulseira, de um preto engordurado, parecia dar um significado nao so ao braco, mas a todo o corpo branco e nu, e esse significado distraia-me sem que o pudesse explicar. Era uma nota de cor sombria; sugeria o elo de uma cadeia de forcado. Mas havia tambem qualquer coisa de gracioso e de cruel nessa simples pulseira negra, uma especie de ornamento que confirmava o caracter brusco e felino da ferocidade de Sonzogne. A minha

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