— Que tem nos bracos? — perguntei. — Ainda nao posso acreditar no que vi.

— Mas ja lhe disse para apalpar — disse-me com uma entoacao tao vaidosa que parecia sinistra.

— Nao muito bem… estava o Gino presente… Deixe-me apalpar agora.

Parou e dobrou o braco, olhando-me de lado, grave e ingenuamente ao mesmo tempo, mas de uma ingenuidade que nada tinha de infantil. Estendi a mao e desci do seu ombro ao longo dos bracos para apalpar os musculos. Era para mim uma estranha sensacao senti-los tao vivos e duros. Articulei com voz apagada:

— Es realmente forte.

— Sou forte, sim — confirmou com uma sombria conviccao.

E recomecamos a andar.

Agora estava arrependida de o ter chamado. Nao me agradava; para mais, esta gravidade, esta maneira de falar, faziam-me medo. Foi assim que, em silencio, chegamos em frente da minha porta. Tirei as chaves da mala.

Aproximou-se de mim e disse-me:

— Eu subo.

Desejei dizer-lhe que nao. Mas a maneira como ele me olhava, com fixidez e insistencia incriveis, subjugou-me e fez-me perder a coragem.

— Se quiseres — disse-lhe.

So depois de ter dito isto reparei que o tratara por tu.

— Nao tenhas medo — disse-me interpretando erradamente o meu ar assustado. — Tenho dinheiro… Dar-te-ei o dobro do que te costumam dar os outros.

— Isso nada tem que ver… Nao e pelo dinheiro. — Mas ele fez uma cara comica como se qualquer assustadora suposicao lhe atravessasse o espirito… — E so porque me sinto um pouco cansada — acrescentei.

Seguiu-me ate ao vestibulo. Quando chegamos ao quarto, despiu-se com gestos metodicos de homem ordenado. Tinha um lenco em volta do pescoco; dobrou-o com cuidado e meteu-o no bolso do impermeavel. Colocou o fato nas costas da cadeira e pendurou as calcas de maneira a nao desmanchar os vincos. Juntou os sapatos um ao lado do outro debaixo da cadeira e as meias dentro dos sapatos. Reparei que estava vestido de novo da cabeca aos pes; os tecidos que usava nao eram finos, mas resistentes e de boa qualidade. Fazia estas coisas em silencio, nem depressa nem devagar, com uma regularidade sistematica e ponderada, sem se ocupar de mim, que, entretanto, me tinha despido e deitado nua sobre a cama. Se ele me desejava, nao o mostrava, a menos que aquele constante agitar dos musculos do maxilar denotasse perturbacao; mas isso nao devia ser, porque ja o tinha antes, quando nem sequer parecia pensar em mim. Ja disse que a ordem e o asseio me agradavam e me pareciam denotar qualidades de alma correspondentes. Mas nessa noite a ordem e o asseio de Sonzogne suscitavam em mim sentimentos bem diferentes, misturados de medo e de horror. “Desta maneira — pensava eu — e que os cirurgioes se preparam nos hospitais quando se dispoem a fazer qualquer operacao sangrenta. Ou, pior ainda, os magarefes, mesmo sob os olhos dos carneiros que vao esfolar.” Estendida sobre a cama, sentia-me sem defesa, impotente, como um corpo inanimado que vai ser submetido a qualquer experiencia. E o seu silencio e a sua indiferenca deixavam-me na duvida sobre o que ele iria fazer quando tivesse acabado de se despir. Quando ficou nu e se aproximou da cabeceira da cama e estranhamente me prendeu os ombros com as duas maos, como se me quisesse conservar imovel, nao pude evitar um fremito de medo. Ele reparou e perguntou-me por entre dentes:

— Que tens?

— Nada — respondi. — Tens as maos geladas.

— Nao te agrado, hem? — disse-me segurando-me sempre os ombros, de pe, junto do travesseiro. — Preferes os que sao iguais a ti, hem?

Enquanto falava, olhava-me de uma maneira intoleravel.

— Porque? — disse-lhe. — Tu es um homem como os outros. E tu proprio me disseste ja que me queres pagar o dobro.

— Sei muito bem o que quero dizer — respondeu. — Tu e as outras como tu gostam dos ricos, das pessoas distintas… Eu sou como tu e voces, as prostitutas, so gostam dos “grandes”.

Reconheci no seu tom funesto a mesma tendencia inflexivel para procurar questoes que ha pouco tinha feito com que insultasse Gino sob o mais futil pretexto. Julguei nessa altura que tivesse qualquer rancor contra Gino. Agora compreendia que a sua sombria susceptibilidade o levava sempre a encolerizar-se quando esta especie de demonio o dominava: fosse qual fosse a maneira como nos portassemos com ele, enganavamo-nos sempre.

— Porque procuras agora tambem motivos para me ofender? — respondi, ligeiramente vexada. — Ja te disse que para mim os homens sao todos iguais.

— Se isso fosse verdade, nao fazias essa cara… Nao te agrado, hem?

— Mas se ja te disse…

— Nao te agrado, hem? — continuou. — Tenho pena, mas e preciso que te agrade!

— Oh! Deixa-me em paz — gritei, bruscamente irritada.

— Quando te fui util para te livrares do teu melro, quiseste-me ao pe de ti… mas depois terias gostado de nao me tornar a ver… somente eu subi. E nao te agrado, hem?

Agora eu tinha realmente medo. As suas palavras sibiladas, a voz dura, impiedosa e calma, o seu olhar fixo, os seus olhos que de azuis pareciam tornar-se vermelhos, tudo parecia levar-me a nao sei que horrivel fim. Entao compreendi, mas ja tarde, que faze-lo parar no rumo que as coisas levavam era o mesmo que tentar deter um bloco de pedra que rolasse por uma ribanceira. Limitei-me a encolher violentamente os ombros.

— Nao te agrado, hem? — continuou. — Fazes uma cara desgostosa quando te toco… Mas agora, meu amor, vou fazer-te mudar de ideias!

E levantou a mao para me esbofetear. Comecava a esperar um gesto do genero e procurava proteger-me com o braco. Mas mal acabara de o fazer quando me bateu com uma ultrajante dureza, primeiro numa face, depois, logo que eu voltava a cara, na outra. Era a primeira vez na minha vida que isto me acontecia. Apesar da violencia das bofetadas, senti-me por momentos mais surpreendida que penalizada. Afastei o meu braco da cara e disse-lhe:

— Sabes o que es? Es um desgracado!

Esta frase pareceu feri-lo. Sentou-se na beira da cama e, agarrando o colchao com as duas maos, bamboleou-se uns instantes. Depois disse sem me olhar:

— Somos os dois desgracados!

— E preciso ter coragem para bater assim numa mulher! — disse-lhe ainda.

De repente, nao pude dominar-me e os olhos encheram-se-me de lagrimas. Mas nao era tanto pelas bofetadas como pelo enervamento dessa noite, cheia de acontecimentos desagradaveis e tristes… Julguei ver Gino projectado na rua, lembrei-me de que nao lhe ligara qualquer importancia e me tinha ido embora alegremente com Sonzogne unicamente interessada em apalpar os seus musculos extraordinarios; senti remorsos, piedade por Gino e desgosto por mim propria; compreendi que fora castigada pela minha insensibilidade e pela minha patetice pela mesma mao que batera em Gino. Tinha sido cumplice da violencia e essa mesma violencia voltara-se contra mim. Atraves das minhas lagrimas olhava Sonzogne. Ficara sentado na beira da cama, nu, sem pelos, as costas um pouco curvas, deixando cair os seus bracos extraordinarios que nao traiam a sua forca. Senti um repentino desejo de suprimir a distancia que nos separava e disse-lhe, nao sem esforco:

— Mas pode ao menos saber-se porque me bateste?

— Fazias uma destas caras!

Parecia mergulhado em pensamentos; a pele do seu maxilar estremecia.

Compreendi que se o queria aproximar de mim devia primeiro que tudo dizer-lhe o que pensava dele e nada lhe esconder.

— Tu pensavas que eu nao gostava de ti? Pois bem! Enganas-te!

— E possivel.

— Enganas-te. Na realidade, nao sei porque, mas fazes-me medo. Era por isso que eu fazia aquela cara. A estas palavras voltou-se bruscamente para mim e perscrutou-me com um olhar desconfiado. Mas tranquilizou-se logo e perguntou-me, nao sem vaidade:

— Faco-te medo?

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