anos, baixo, de cabelo encaracolado, olhos salientes e maxilares duros. Tinha o pescoco tao curto que quase nao existia. Como um touro que ve o vermelho e para a olhar de cabeca baixa, assim ele me olhava com a chavena na mao. Estava vestido elegantemente, com um sobretudo que valorizava os seus largos ombros. Sabia que com aquele aspecto bastava que eu o olhasse para que as veias do pescoco lhe inchassem e a cara ficasse vermelha. Mas nao tinha a certeza de que ele me agradasse. Depois senti como que uma seiva secreta saindo de uma casca rugosa, sob a forma de mil germezinhos ternos; o desejo de o excitar espicacava-me o corpo todo e obrigava-me a deixar a minha atitude reservada. Justamente uma hora antes eu tinha decidido deixar esta vida. Pensava que realmente nada havia a fazer… era mais forte do que eu! Mas pensava-o alegremente. Depois de sair da igreja, tinha-me reconciliado com a minha sorte, fosse ela qual fosse, e sentia que esta aceitacao valia mais para mim que qualquer nobre recusa. E assim, passados uns momentos de reflexao, levantei os olhos para o homem. Ainda me olhava, apalermado, com a chavena na sua mao peluda e os olhos bovinos fixos em mim. Entao, tomei, por assim dizer, o meu impulso, e com toda a malicia de que era capaz disparei-lhe um longo olhar calido e sorridente. Recebeu-o em cheio e, como ja tinha previsto, congestionou-se. Bebeu o cafe, pos a chavena no balcao e, muito direito no seu sobretudo apertado, foi-se embora, para pagar na caixa. A porta olhou para tras e fez-me claramente e com ar imperioso um sinal de inteligencia. Saiu e eu disse a minha mae :

— Deixo-te… fica tu! De qualquer maneira nao te poderia acompanhar.

Ela estremeceu:

— Porque? Aonde vais?

— Esperam-me la fora — disse-lhe, levantando-me. Toma o dinheiro: paga e volta para casa… Alias chegarei primeiro… mas nao vou so.

Olhou-me com ar assustado e julguei ver uma sombra de remorso no seu olhar. Mas ficou calada. Disse- lhe adeus e sai. O homem esperava-me na rua. Apenas saira ja ele se inclinava para mim e me agarrava violentamente o braco dizendo:

— Para onde vamos?

— Para minha casa.

Foi assim que depois de algumas horas de angustia renunciei a luta contra o que parecia ser o meu destino, e o abracei ate com mais amor, como se estreita um inimigo que nao se pode vencer. E senti-me liberta. Alguns vao pensar que e facil aceitar uma sorte ignobil mas rendosa em vez de a recusar. Eu tenho perguntado muita vez a mim propria porque a tristeza e a raiva enchem as almas daqueles que vivem segundo certos preceitos e certos ideais, enquanto que aqueles que aceitam a sua vida, que e acima de tudo nulidade, obscuridade e fraqueza, sao tao frequente mente despreocupados e alegres. Neste caso, de resto, cada qual obedece nao a preceitos, mas ao seu temperamento, que toma o aspecto de destino. O meu, como ja o disse, era ser a todo o custo alegre, doce e tranquila e eu aceitei-o.

3

Renunciei completamente a Jaime e nao pensei mais nele. Sentia que o amava, que se ele tivesse voltado eu teria ficado feliz e ama-lo-ia mais do que nunca, mas sentia tambem que nao me deixaria mais humilhar por ele. Se ele tivesse voltado, teria ficado na sua frente, fechada na minha vida como numa fortaleza que seria verdadeiramente inexpugnavel enquanto a nao abandonasse. Dir-lhe-ia: “Sou uma rapariga da rua e nada mais. Se me queres, e preciso que me aceites tal como sou.” Tinha compreendido que a minha forca nao era desejar ser aquilo que nao sou, mas aceitar aquilo que era. A minha forca era a minha fortaleza, o meu trabalho, a minha mae, a minha casa, as minhas roupas modestas, a minha origem humilde, as minhas infelicidades e, mais intimamente, o sentimento que me fazia aceitar todas estas coisas profundamente enterradas na minha alma como uma pedra preciosa na terra. Contudo, estava certa de que nao o tornaria a ver; e esta certeza fazia com que o amasse de uma maneira nova para mim, impotente e melancolica, mas nao privada de docura, como se amam os que morreram e nunca mais voltarao. No decurso desses dias rompi com Gino. Como ja o disse, nao gosto dos rompimentos bruscos; quero que as coisas vivam e morram naturalmente. As minhas relacoes com Gino sao um bom exemplo desta vontade. Elas acabaram porque a vida que as animava se apagou e nao por qualquer falta da minha parte e nem sequer, num certo sentido, por culpa de Gino. Acabaram de maneira a nao me deixarem nem desgosto nem remorso.

Continuara a ve-lo de tempos a tempos, duas ou tres vezes por mes. Agradava-me, como ja disse, se bem que ja tivesse perdido toda a estima que tivera por ele. Num desses dias marcou-me, pelo telefone, encontro numa pastelaria onde eu lhe disse que iria.

Era uma pastelaria do meu bairro. Gino esperava-me na salinha do fundo, numa especie de gabinete sem janelas, com as paredes completamente revestidas de azulejos. Quando entrei, reparei que nao estava so. Alguem estava sentado com ele, de costas viradas para mim. So via que trazia um impermeavel verde e que tinha cabelos louros, cortados muito curtos. Aproximei-me e Gino disse:

— Deixa-me apresentar-te o meu amigo Sonzogne.

Entao ele levantou-se; olhei-o e estendi-lhe a mao. Mas quando ele ma apertou, tive a impressao de ter sido agarrada por tenazes e dei um pequeno grito de dor. Ele largou-me logo a mao; sentei-me sorrindo e disse- lhe:

— Sabe que me magoou? Voce aperta sempre assim a mao?

Nao me respondeu nem sequer sorriu. Tinha a cara branca como o papel, a testa saliente, olhos pequeninos azuis-claros, o nariz adunco e a boca cerrada como um corte. Os seus cabelos louros, lisos e deslavados, estavam cortados curtos sobre as temporas achatadas, mas a base da cara era larga, com maxilares largos e desgraciosos. Parecia estar sempre a cerrar os dentes, como se triturasse qualquer coisa, e constantemente, debaixo da pele das faces, via-se fremir e deslizar uma especie de nervo. Gino, que parecia ter por ele uma amizade afectuosa e admirativa, disse-me rindo:

— Mas isto nada e… Se tu soubesses como e forte! Tem o soco proibido!

Tive a impressao de que Sonzogne o olhava com hostilidade. Acabou por dizer com voz surda:

— Nao e verdade que tenha o soco proibido… Mas podia ter!

Perguntei:

— Que e isso do soco proibido?

Sonzogne respondeu-me secamente:

— Quando se pode matar um homem com um soco, nao se tem o direito de empregar o punho. E como fazer uso do revolver.

— Mas sente como ele e forte! — insistiu Gino, excitado e desejoso, parecia, de se reconciliar com Sonzogne. — Vamos — pedia-lhe —, deixa-a apalpar os teus bracos!

Hesitei, mas dir-se-ia que Gino o desejava e que o seu amigo tambem esperava esse gesto. Estendi a mao molemente para lhe apalpar o braco. Ele dobrou o antebraco para retesar os musculos, mas seriamente, quase que com um ar sombrio. Entao, com grande surpresa minha, porque ao ve-lo dava o aspecto de um homem franzino, os meus dedos sentiram, atraves das mangas, como um rolo de cabo de aco. Retirei a mao com uma exclamacao, nao sei se de admiracao, se de repugnancia. Sonzogne olhou-me com ar satisfeito, um leve sorriso nos labios. Gino declarou:

— E um velho amigo… Nao e verdade, primo, que nos conhecemos ha muito tempo? Somos como dois irmaos!

E deu uma palmada nas costas de Sonzogne, acrescentando:

— O meu velho primo!

Mas o outro levantou os ombros para afastar a mao de Gino e respondeu:

— Nem amigos, nem irmaos… Trabalhamos na mesma garagem, e o que e!

Gino nao se desconcertou:

— Eh! Sei que de ninguem queres ser amigo! Sempre so… sempre por tua conta… nem homens nem mulheres!

Sonzogne olhou-o. Tinha um olhar frio, de uma imobilidade e de uma insistencia incriveis, e Gino desviou dele os seus olhos.

— Quem te contou essas historias? — disse-lhe Sonzogne. — Ando com quem me agrada, homens e

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