— Por nada! — disse-lhe. — Porque estou contente… nao facas caso.
Depois, para culminar a minha felicidade, dei-lhe outro beijo rapido nos labios.
Quando chegamos a minha casa, ja la nao estava o automovel.
— O Joao Carlos foi-se embora! — disse com ar aborrecido. — Sabe Deus o que vou ter que andar para voltar para casa.
Nao me magoou este tom pouco gentil, porque de futuro nada me devia magoar. Os seus defeitos, como acontece quando se esta apaixonado, apresentavam-se-me com um aspecto singular que os tornava agradaveis. Disse-lhe, encolhendo os ombros:
— Ha muitos electricos de noite! Alias, se quiseres podes dormir comigo.
— Nao, isso nao! — respondeu logo.
Subimos a escada. Quando chegamos ao vestibulo, levei-o para o meu quarto e fui espreitar a sala grande. Estava as escuras, salvo junto da janela, iluminada por um bico de gas da rua que incidia sobre a maquina de costura e a cadeira. Minha mae devia ter ido deitar-se. Quem sabe se teria visto o Joao Carlos e a Gisela e se teria falado com eles? Fechei a porta e entrei no quarto. Jaime rondava nervosamente de um lado para o outro, entre a comoda e a cama:
— Ouve — comecou a dizer —, e melhor ir-me embora!
Fingindo nao ter ouvido, tirei o casaco e fui pendura-lo no bengaleiro. Sentia-me tao contente que nao resisti a perguntar-lhe com vaidade de proprietaria:
— Que tal achas o meu quarto? Nao e confortavel?
Olhou a volta e fez uma careta que nao compreendi. Segurei-lhe a mao, obriguei-o a sentar-se na cama e disse-lhe:
— Agora deixa-me fazer.
Despi-lhe o sobretudo, depois o casaco e pendurei-os no bengaleiro. Sem pressa, desfiz o no da gravata e tirei-lha, assim como a camisa, que pus em cima de uma cadeira. Em seguida ajoelhei-me e, pondo o seu pe no meu regaco, como fazem os sapateiros, tirei-lhe os sapatos e as meias e beijei-lhe os pes. Comecara a agir com metodo e sem pressa, mas a medida que lhe tirava a roupa nao sei que delirio de humildade e de adoracao se apoderou de mim. Talvez o mesmo sentimento que por vezes me assaltava ao prostrar-me na igreja. Era a primeira vez que o sentia por um homem, e isso tornava-me feliz, porque sabia que era esse o verdadeiro amor, livre de toda a sensualidade e de todo o vicio. Quando ficou nu, apertei-o de encontro as minhas faces e aos meus cabelos, com forca, fechando os olhos. Ele deixava-me faze-lo com uma expressao admirada, que me agradava. Depois levantei-me e comecei a despir-me a pressa, deixando cair a roupa no chao. Ficou friorentamente sentado na beira da cama e nao levantava os olhos. Aproximei-me por tras dele e, animada por uma violencia alegre e cruel, puxei-o e deitei-o de costas com a cabeca sobre a almofada. Tinha um corpo longo, magro e branco; os corpos tem a sua expressao como os rostos: o seu tinha uma expressao casta e juvenil. Estendi-me ao seu lado, o meu corpo contra o dele e ao pe da sua magreza, da sua graciosidade, da sua frieza e da sua brancura tive a impressao de ser muito ardente, muito morena, muito carnuda e muito forte. Apertei-me com violencia contra ele, comprimi o meu ventre contra os ossos das suas ancas, estendi os bracos ao longo do seu peito, o meu rosto contra o seu e esmaguei os meus labios contra a sua orelha. Parecia-me que desejava nao tanto ama-lo como envolve-lo no meu corpo como se fosse um quente cobertor e comunicar-lhe o meu ardor. Estava deitado de costas, mas conservava a cabeca um pouco levantada e os olhos abertos, como se quisesse observar tudo o que eu fazia. O seu olhar atento rasava as minhas costas e inspirava-me nao sei que mal-estar e que tormento. No entanto, no primeiro impulso continuei durante algum tempo sem fazer caso disso. De repente sussurrei-lhe:
— Nao te sentes melhor agora?
— Sim — respondeu-me num tom neutro e distante.
— Espera! — disse-lhe eu.
Mas na altura em que o ia estreitar outra vez com um novo ardor, tive novamente a sensacao do seu olhar fixo e frio estendendo-se ao longo das minhas costas, como um fio de aco molhado, e de repente senti-me perdida e envergonhada. O meu ardor apagara-se; lentamente afastei-me e deitei-me de costas, longe dele. Tinha feito um grande esforco de amor; tinha posto neste esforco todo o entusiasmo de um inocente, de um velho desespero; o brusco sentido da inutilidade deste esforco encheu-me os olhos de lagrimas e escondi a cara com um braco para que nao visse que eu chorava. Parecia-me que me tinha enganado, que nem o podia amar, nem ser amada por ele. E pensava ainda mais, que ele me via e me julgava sem ilusoes, tal como eu era na realidade. Agora eu sabia que vivia numa especie de bruma que eu propria criara para nao me poder reflectir na minha consciencia. Ele, com os seus olhares, dissipara essa bruma e pusera novamente o espelho diante dos meus olhos. E eu via-me tal como era, na verdade, ou, melhor, tal como devia ser para ele, porque de mim eu nada pensava, nada sabia, como ja o expliquei: quase nao acreditava na minha existencia. Acabei por lhe dizer:
— Vai-te embora.
— Porque? — disse-me apoiando-se no cotovelo e olhando-me com ar embaracado. — Que aconteceu?
— E melhor que te vas embora! — disse-lhe com calma sem tirar o braco da cara. — Nao julgues que me ofendeste… Mas sei que nada sentes por mim, e entao…
Nao acabei, mas abanei a cabeca. Nao respondeu; senti-o mexer-se e sair da cama; vestia-se. Uma dor aguda trespassou-me a alma como se me tivessem ferido profundamente com uma lamina fina e cortante. Sofria por ouvi-lo vestir-se; sofria com a ideia de que dai a um momento ele se iria embora para sempre e eu nunca mais o voltaria a ver; sofria por estar a sofrer.
Vestiu-se devagar, esperando talvez que eu o chamasse. Lembro-me de que um instante julguei poder prende-lo excitando o seu desejo. Quando me estendera ao seu lado, tinha puxado a roupa da cama para cima. Com uma coquetterie da qual sentia o desespero e a tristeza, mexi a perna, de maneira que a roupa escorregasse ao longo do corpo. Nunca me oferecera desta maneira. Durante uns instantes, deitada de costas, as pernas afastadas e o braco sobre os olhos, tive como que a ilusao fisica das suas maos sobre os meus ombros e do seu halito na minha boca. Mas quase imediatamente ouvi a porta fechar-se.
Fiquei como estava, estendida, imovel. Creio que passei, sem dar por isso, da dor para uma especie de semi-sonolencia, depois ao sono. Acordei ainda de noite e reparei que estava so. Durante este primeiro sono, apesar da amargura da separacao, o sentido da sua presenca ficara-me. Nao sei como, voltei a adormecer.
2
No dia seguinte surpreendi-me por me sentir languida, melancolica, como se tivesse saido de uma longa doenca. Sou de caracter alegre, e como em mim a alegria vem da saude e da robustez do corpo, ela foi sempre mais forte do que todas as adversidades, se bem que me tenha acontecido por vezes sentir-me alegre sem que o queira em circunstancias em que me deveria sentir bem triste. Assim raro era o dia em que logo que me levantava nao sentia desejo de cantar ou de contar alguma graca a minha mae. Mas, nessa manha, mesmo esta involuntaria alegria me faltava; sentia-me apagada e dolente, sem desejo de viver as doze horas de vida que o dia me oferecia. Como minha mae reparasse logo nesta mudanca de humor, disse-lhe que tinha dormido mal.
Era verdade, e esse fora um dos numerosos efeitos da profunda mortificacao que me trouxera a recusa de Jaime. Ja o disse; ha muito tempo que nao me importava de ser o que era: nao achava em mim propria qualquer razao para nao o ser. Mas esperava amar e ser amada; ora, a recusa de Jaime, apesar das razoes complicadas que ele me dera, parecia nao poder ser atribuida senao ao meu oficio, o qual por este motivo se me tornara bruscamente odioso, intoleravel.
O amor-proprio e um curioso animal que pode nao acordar aos mais crueis golpes e despertar ferido de morte por uma simples arranhadura. Havia uma recordacao entre todas que me afligia e me enchia de amargura e de vergonha: — Que tal achas este quarto? — perguntara-lhe. — Nao e confortavel?
Lembrara-me de que nao respondera, mas olhara tudo a sua volta com uma careta que eu de momento nao compreendi. Agora sabia que tinha sido uma careta de desagrado. Tinha com certeza pensado: “O quarto de uma prostituta!” Quando recordava isto, o que mais me afligia era o ter pronunciado esta frase com uma ingenua satisfacao. Deveria ter pensado que a uma pessoa como ele, tao fina, tao sensivel, o meu quarto devia parecer- lhe um antro sordido, duplamente feio, pelos seus moveis tao modestos e pelo uso que eu lhe dava. Bem desejei