— E um amigo de infancia — respondeu-me de mau humor. — Estudamos juntos… Os amigos de infancia sao todos assim.
Bebeu ainda e acrescentou:
— No entanto, de certa maneira vale mais do que eu.
— Porque?
— Porque quando ele faz uma coisa, fa-la seriamente; ao passo que eu comeco por querer faze-la e depois (aqui falou com uma voz tao falsa que me fez estremecer)… uma vez chegado o momento nao a faco… Esta noite, por exemplo, quando me telefonou para me pedir para ir com ele engatar umas raparigas, como costuma dizer-se, eu aceitei. Quando nos encontramos, desejei realmente ir para a cama contigo… Mas depois, logo que cheguei a tua casa, ja nada me apetecia…
— Ja nada te apetece? — repeti olhando-o.
— Nao… para mim nao eras uma mulher, mas um objecto, nao sei… uma coisa… Reparaste quando te torci o dedo ate te magoar?
— Sim.
— Pois bem, fiz isso para me certificar de que existias de facto… mais nada… ate com risco de te fazer sofrer.
— Sim, eu existia e tu magoaste-me muito — disse sorridente.
Comecava agora a compreender com alivio que nao fora por antipatia que ele nada tinha querido de mim. Alias nunca ha coisa alguma de estranho nas pessoas. Desde que se procure compreende-las, sabe-se que a sua conduta por mais insolita que pareca e sempre devida a um motivo perfeitamente plausivel…
— Entao eu nao te agradei? — perguntei-lhe.
Negou com um gesto de cabeca.
— Tanto faz… tu ou outra… e a mesma coisa!
Perguntei-lhe, passado um minuto de hesitacao:
— Diz-me la… tu nao seras impotente, por acaso.
— Nem por sombras.
Agora eu sentia um grande desejo de ter intimidades com ele, de transpor a distancia que nos separava, de o amar e de ser amada por ele. Tinha-lhe dito que nao estava vexada pela sua recusa; na verdade, sentia-me pelo menos mortificada e ferida no meu amor-proprio. Tinha a certeza de ser bela e sedutora: nenhuma razao verdadeira via para que ele nao me desejasse.
— Ouve — propus-lhe com simplicidade. — Acabamos de beber e vamos depois para casa.
— Nao, e impossivel.
— Entao isso quer dizer que nao te agradei logo da primeira vez, quando me viste na rua.
— Sim, procura compreender…
Sabia que nao ha homens que resistam a certos argumentos. “Ve-se que nao te agrado!” e, repetia eu com calma e com uma infinita amargura. E ao mesmo tempo estendi a mao e passei-lha pela cara. Tenho a mao comprida, grande e quente; se e verdade que o caracter se pode ler nas maos, o meu nao deve ser vulgar em comparacao com o de Gisela, que tem a mao vermelha, rude e disforme. Comecei a acariciar-lhe com docura as faces, a testa, a raiz dos cabelos, olhando-o com uma ternura insistente e cheia de desejo. Lembrei-me de que Astarito, no Ministerio, tivera o mesmo gesto comigo e compreendi mais uma vez que estava realmente apaixonada por este rapaz, porque nao havia duvida de que Astarito me amava e tivera este mesmo gesto de amor. Ao sentir esta caricia, primeiro ficou impassivel, depois o queixo comecou a tremer-lhe, o que nele era sintoma de perturbacao, como pude observar mais tarde, e todo o seu rosto tomou uma expressao atrapalhada, extraordinariamente juvenil e quase infantil. Fez-me pena e senti-me contente por este sentimento, que me aproximava dele.
— Mas que fazes? — perguntou-me como um garoto envergonhado. — Estamos num sitio publico!
— Que me importa? — disse eu tranquilamente. Sentia as faces a arder, apesar do frio que estava na casa, e fiquei admirada ao ver, a cada inspiracao nossa, formar-se uma nuvenzinha de vapor:
— Da-me a tua mao! — disse-lhe.
Deu-ma de ma vontade e eu levei-a a minha cara dizendo :
— Nao sentes como as minhas faces estao a arder?
Nao disse palavra. Limitou-se a olhar-me e o seu queixo tremia. Alguem bateu com a porta ao entrar e eu tirei a mao. Deu um suspiro de alivio e bebeu outro copo de um trago. Mas eu, assim que o cliente passou, estendi outra vez a mao e introduzi-a no casaco, desabotoando a camisa e pousando-a sobre o seu peito nu, junto do coracao.
— Quero aquecer as maos — disse-lhe. — E quero sentir como bate o teu coracao.
Voltei a mao de costas e depois do lado da palma.
— Tens a mao fria! — disse olhando-me.
— Aqui vai aquecer — disse sorrindo.
Conservei o braco estendido e devagarinho acariciava o seu peito e as suas costelas magras. Sentia uma grande alegria porque o sabia junto de mim e porque estava tao cheia de amor por ele que podia dispensar o seu. Olhei-o e disse-lhe com ar de fingida ameaca:
— Sinto que daqui a pouco chegara o momento em que te irei beijar.
— Nao, nao — respondeu esforcando-se por brincar tambem, mas no fundo assustado. — Domina-te.
— Vamos embora daqui!
— Vamos, se queres!
Pagou o vinho, que nao acabou de beber, e saiu comigo Agora tambem ele parecia excitado a sua maneira; nao como eu, por amor, mas por qualquer agitacao do seu espirito que os acontecimentos da noite lhe tivessem provocado. Mais tarde, quando o conheci melhor, percebi que ficava sempre assim excitado quando qualquer coisa lhe permitia descobrir um aspecto ignorado do seu caracter, ou confirmar esse mesmo aspecto. Ele era muito egoista, ou, por outra, preocupava-se muito consigo proprio.
— Acontece-me isto constantemente… — comecou a dizer como se falasse sozinho, enquanto eu o levava para a minha casa quase a correr — penso fazer uma coisa, com grande entusiasmo, tudo me parece proprio, tenho a certeza de que agirei como tenciono, depois, no momento preciso, tudo se desmorona… deixo de existir, por assim dizer… ou talvez nao exista de mim mais do que a pior parte da minha alma: fico frio, vazio, cruel… como quando te torci o dedo.
Monologava com ar concentrado e talvez ate com uma amarga satisfacao. Eu nem o ouvia, porque estava cheia de alegria: os meus pes voavam por entre os charcos. Respondi-lhe alegremente:
— Ja disseste essas coisas… mas eu, por minha vez, ainda nao te contei o que sinto. Tenho um grande desejo de te apertar com forca, muita forca, de te dar o meu calor e de te obrigar a fazer o que nao queres… nao ficarei contente enquanto nao o fizeres!
Nada respondeu. O que lhe dizia parecia que nem sequer lhe chegava aos ouvidos, tao ocupado estava a ruminar o que me dissera. De subito passei-lhe o braco a roda da cintura e pedi-lhe:
— Passa o teu braco a roda da minha cintura… Sim?
Pareceu nao me ouvir. Entao passei-lho eu, como se faz quando se enfia um casaco. Recomecamos a andar mal agarrados, porque estavamos cheios de roupa grossa de Inverno e quase nao nos podiamos abracar.
Quando passamos ao pe da vivenda do torreao, parei e disse-lhe:
— Da-me um beijo!
— Mais logo.
— Da-me um beijo!
Voltou-se e eu beijei-o violentamente, passando-lhe os bracos a roda do pescoco. Ele ficou com a boca fechada, mas eu introduzi a lingua por entre os seus labios, depois entre os dentes, que acabaram por se descerrar. Nao tive a certeza de o meu beijo ter sido retribuido; mas como ja disse, pouco me importava. Separamo-nos e vi-lhe a volta da boca uma grande mancha de baton, enviesada, que tornava comica e esquisita a sua cara seria. Desatei a rir, toda contente.
— Porque te ris? — murmurou.
Hesitei, depois preferi nada lhe dizer, porque me divertia ve-lo correr atras de mim com um ar muito grave e a cara toda pintada sem que soubesse.