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Agora, eu e Gisela ja nao eramos apenas amigas, mas sim uma especie de socias. Nunca estavamos de acordo quanto aos lugares que deviamos frequentar, porque Gisela preferia os restaurantes de luxo, ao passo que eu gostava mais dos cafes de terceira ordem ou simplesmente da rua. Mas, devido precisamente a esta diferenca de gostos, tinha-se concluido entre nos uma especie de pacto: cada uma de nos acompanharia a outra, dia sim, dia nao, aos seus lugares predilectos. Uma noite, depois de um jantar infrutifero num restaurante, regressavamos juntas a casa quando observei que eramos seguidas por um carro. Preveni Gisela e arrisquei-me a dizer-lhe que talvez nao fosse tolice deixar que eles chegassem a fala connosco. Gisela, que estava de mau humor, porque tinha tido de pagar o jantar e estava quase sem dinheiro, disse com mau modo:
— Vai tu, se quiseres! Ca por mim vou para a cama.
Entretanto, o carro tinha-se abeirado do passeio e seguia-nos passo a passo. Gisela caminhava do lado da parede e eu do lado de fora. Olhei disfarcadamente para o automovel e vi que dentro dele vinham dois homens. Interroguei Gisela a meia voz:
— Que vamos fazer? Se tu nao vens, eu tambem nao vou.
Gisela deitou tambem um olhar de lado para o carro, que continuava a seguir-nos devagarinho, e, parecendo resignar-se de repente, respondeu-me:
— Esta bem! Mas este sistema nao me agrada… Andamos ainda umas dezenas de metros, sempre seguidas pelo carro, depois Gisela virou a esquina e metemos por uma travessa acanhada e sombria, com um passeio muito estreito que se estendia ao longo de uma parede coberta de cartazes. Ouvimos o carro voltar tambem e logo a seguir a luz branca e crua dos farois iluminou-nos. Tive a sensacao de que esta luz me despia e me pregava nua na parede molhada, sobre os cartazes rotos e desbotados. Paramos. Gisela, irritada, disse-me a meia voz:
— Se isto sao maneiras! Vamos para casa!
— Nao, nao… — supliquei eu.
Nao sei porque, apoderara-se de mim um desejo fortissimo de conhecer os homens do carro.
— Que importancia tem isso? — continuei. — Todos eles procedem assim.
Gisela encolheu os ombros e no mesmo momento os farois apagaram-se; depois o carro veio parar junto de nos. O condutor deitou de fora a cabeca loura e disse, numa voz sonora:
— Boas noites!
— Boas noites — respondeu Gisela com ar digno.
— Onde vao as duas, assim tao sos? — continuou o homem. — Podemos acompanha-las?
Apesar da sua entoacao ironica, como de alguem que se julga terrivelmente espirituoso, estas frases eram rituais. Ouvi-as depois centenas de vezes. Sempre muito seria, Gisela respondeu:
— Depende…
Esta era, tambem, a sua resposta de sempre.
— Ora, ora! — insistiu o homem. — Depende de que?
— Quanto e que tencionam pagar-nos? — perguntou Gisela encostando-se a porta do carro.
— Quanto pedem voces?
Gisela disse uma importancia.
— Voces sao caras — respondeu o rapaz. — Muito caras! Mas parecia decidido a aceitar. O seu companheiro debrucou-se para ele e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. O louro encolheu os ombros e. dirigindo-se a nos, continuou:
— Esta bem. Subam…
O seu companheiro desceu e foi sentar-se no assento de tras convidando-me a entrar com um gesto. Gisela sentou-se ao lado do condutor, que lhe perguntou:
— Para onde vamos?
— Para casa de Adriana — respondeu Gisela. E deu-lhe a minha morada.
— Bem. Vamos la entao para casa da Adriana…
Geralmente, quando me encontrava com homens que nao conhecia, num carro ou em qualquer outra parte, ficava imovel e silenciosa, esperando as suas palavras ou os seus gestos. Sabia perfeitamente que em geral nao era preciso encoraja-los a tomar a iniciativa. Por isso limitei-me a aguardar os acontecimentos enquanto o carro percorria rapidamente as ruas. Do homem que o acaso me destinava para companheiro dessa noite nao via senao duas maos longas e brancas, pousadas nos joelhos. Ele tambem nao falava e conservava-se imovel, encostado para tras, com a cabeca no escuro. Pensei que era timido e simpatizei imediatamente com ele. Eu tambem ja assim fora, e o espectaculo da timidez emocionava-me sempre, porque me recordava a minha paixao por Gino. Gisela nao havia meio de se calar. Um dos seus grandes prazeres era conversar com os clientes com um ar superior e bem educado, como se fosse uma senhora em companhia de homens que a respeitassem. A certa altura, perguntou :
— Este carro e seu?
— E. Agrada-te?
— E comodo — respondeu Gisela com ar superior. — Mas gosto mais dos Lancia. Andam mais e tem uma suspensao melhor. O meu noivo tem um.
Realmente Ricardo tinha um Lancia. Simplesmente, o que ele nunca fora era noivo de Gisela. O rapaz desatou a rir e respondeu:
— O que ele deve ter e um Lancia de duas rodas…
Gisela era facil de irritar. Respondeu com ar ofendido:
— Por quem me toma voce?
— Nao sei. Diga-me por quem a devo tomar, nao va eu enganar-me…
Outra das ideias fixas de Gisela era fazer-se passar aos olhos dos seus amantes de acaso por aquilo que nao era, nem nunca tinha sido: bailarina, dactilografa, senhora respeitavel, sem reparar que essas pretensoes nao condiziam com a facilidade com que ela se deixava abordar e discutir logo de entrada o aspecto material da questao.
— Somos dancarinas da troupe Caccini — declarou ela com um ar muito serio. — Nao temos o habito de aceitar convites de desconhecidos. Alias, eu nao queria aceitar. A minha colega e que insistiu tanto… Se o meu noivo suspeitasse disto, havia de ser bonito!
O rapaz que ia ao volante riu de novo:
— Bem. Eu e o meu amigo somos realmente duas pessoas decentes. Quanto a voces, sao duas prostitutas de rua. Mas que importancia tem isso?
Foi entao que o meu companheiro falou pela primeira vez.
— Para, Joao Carlos — disse com uma voz tranquila.
Eu nao disse palavra. Nao me agradava aquela classificacao, principalmente com a manifesta intencao de ofender que se notava no tom de voz com que Joao Carlos falava. Mas, ao fim e ao cabo, o que ele dissera era verdade.
— Isso e mentira e voce nao passa de um ordinarao!
O rapaz nao respondeu, mas parou o carro junto do passeio. Estavamos numa rua pouco frequentada e mal iluminada. O condutor voltou-se para Gisela.
— E se eu te pusesse fora do carro?
— Experimenta! — respondeu Gisela, agressiva.
Gisela era extremamente desordeira e de ninguem tinha medo.
Entao o meu companheiro inclinou-se para a frente e eu vi pela primeira vez o seu rosto. Era moreno, com os cabelos em desordem, a testa alta, grandes olhos sombrios e brilhantes, um nariz bem desenhado, a boca sinuosa e um horrendo queixo fugidio. Era extremamente magro. Interrogou o amigo:
— Vais acabar com essa discussao idiota?
A pergunta foi feita com energia, mas sem irritacao, como se ele interviesse num assunto em que, na verdade, nao estivesse directamente interessado nem lhe desse importancia. A sua voz nao era muito forte, nem muito masculina e ate, com frequencia, soava a falsete.
— Que tens tu com isso? — respondeu o outro, bruscamente.