Este nos aplicara uma injecao de essencia de terebintina numa articulacao ou passara um cabelo molhado em urina na pele, para que ela se infeccione. Ou nos dara enxofre para respirar e depois dira ao medico que estamos com 40 graus de febre. Durante estes poucos dias de expectativa, e preciso ir para o hospital, seja de que maneira for.

– Se a gente nao e chamada e e deixada com os outros nos barracoes, no campo, entao ha tempo para agir. Neste caso, nao se deve procurar um trabalho no interior do campo. E preciso pagar ao administrador para arranjar no povoado um lugar de limpador de privadas, de varredor, ou ser empregado na serraria de uma empresa civil. Saindo para trabalhar fora da penitenciaria e voltando a cada tarde ao campo, a gente tem tempo para entrar em contato com forcados libertos, que vivem no povoado, ou com chineses, para que eles preparem a fuga. E preciso evitar os campos em torno do povoado: todo mundo morre ali depressa; ha campos onde ninguem resistiu tres meses. Em pleno mato, os homens sao obrigados a cortar 1 metro cubico de madeira por dia.

Julot ruminou para nos todas essas informacoes preciosas, ao longo da viagem. Quanto a ele, esta preparado. Sabe que vai diretamente para o calabouco, por ter tentado fugir. Por isso, tem uma faquinha, quase um canivete, dentro do seu canudo. Na chegada, vai tirar a faquinha e abrir o joelho. Ao descer do navio, caira da escada na frente de todo mundo. Acha que sera transportado diretamente do cais para o hospital. Exatamente isso, alias, e o que acontecera.

SAINT-LAURENT-DU-MARONI

Os vigilantes se revezaram para ir trocar de roupa. Voltam, cada um por sua vez, vestidos de branco, com um capacete colonial no lugar do quepi. Julot diz: “Estamos chegando”. Faz um calor de matar, porque fecharam as vigias. Atraves delas, a gente ve o mato. Estamos, portanto, em Maroni. A agua e lamacenta. Esta floresta virgem e verde e impressionante. Passaros alcam voo, perturbados pelo apito do navio. Vamos muito devagar, o que permite observar calmamente a vegetacao escura, exuberante e densa. Vemos as primeiras casas de madeira, com seu teto de folha de zinco. Negros e negras estao na frente das portas, espiando o navio passar. Ja se acostumaram a ve-lo descarregar seu carregamento humano e e por isso que nao fazem nenhum gesto de boas-vindas a sua passagem. Tres toques de apito e ruidos de helice nos informam que estamos chegando; depois cessa todo o ruido da maquina. Seria possivel ouvir o voo de uma mosca.

Ninguem fala. Julot tem sua faca aberta e corta sua calca no joelho, rasgando as bordas das costuras. So daqui a pouco que ele devera cortar seu joelho – para nao deixar um rastro de sangue. Os vigilantes abrem a porta da cela e somos enfileirados tres a tres. Estamos na quarta fileira, Julot entre Dega e mim. Subimos para a coberta. Sao 14 horas. Um sol de fogo surpreende meu cranio raspado e meus olhos. Alinhados sobre a coberta, somos dirigidos para a passarela. Em uma parada da coluna, provocada pela entrada dos primeiros na passarela, sustento o saco de Julot em suas costas e ele, com as duas maos, arranha a pele de seu joelho, afunda a faca e corta, com um so golpe, 7 a 8 centimetros de carne. Passa a faca pra mim e aguenta sozinho seu saco. No momento em que entramos na passarela, cai de proposito e rola ate embaixo, E levantado pela gente que esta perto e, sendo visto ferido, chamam padioleiros. O roteiro se desenvolve como ele tinha previsto: vai embora carregado numa padiola por dois homens.

Uma multidao variada nos olha, curiosa. Pretos, mulatos, indios, chineses, brancos na miseria (que devem ser forcados libertos) examinam cada um dos que chegam a terra e se enfileiram atras dos outros. Do outro lado, vigilantes, civis bem vestidos, mulheres na moda de verao, rapazes com o capacete colonial na cabeca. Tambem eles olham os recem-chegados. Quando ja somos duzentos, o comboio se move. Marchamos durante quase dez minutos e chegamos diante de uma porta de tabuas, muito alta, onde esta escrito: “Penitenciaria de Saint-Laurent-du-Maroni. Capacidade: 3 000 homens”. A porta se abre e a gente entra por fileiras de dez. “Um, dois; um, dois, marche!” Numerosos forcados assistem a nossa chegada. Estao empoleirados nas janelas ou sobre grandes pedras, para ver melhor.

Chegando ao meio do patio, ouvimos a ordem gritada:

– Alto! Coloquem seus sacos na frente de voces. Distribuam os chapeus, voces ai!

Dao a cada um de nos um chapeu de palha, muito necessario: ou tres ja cairam de insolacao. Dega e eu nos olhamos, porque um guarda agaloado pegou uma lista entre as maos. Pensamos no que disse Julot. Chamam Guittou: “Por aqui!” Ele e enquadrado por dois vigilantes e vai embora. Suzini, a mesma coisa; Girassol, igualmente.

– Jules Pignard!

– Jules Pignard (e Julot) se feriu, foi para o hospital.

– Esta bem.

Estes sao os internados nas ilhas, depois o vigilante prossegue:

– Escutem atentamente. Cada pessoa que eu chamar saira da fila com seu saco em cima do ombro e ira se enfileirar diante desse barracao amarelo, o n.° 1.

Fulano, presente, etc. Dega, Garrier e eu logo nos encontramos com os outros, alinhados na frente do barracao. Abrem a porta para nos e entramos numa sala retangular, com o comprimento aproximado de 20 metros. No meio, um corredor de 2 metros de largura; a direita e a esquerda, uma barra de ferro, que vai de uma ponta a outra da sala. Lonas, que servem de rede para dormir, estao estendidas entre a barra e a parede, cada lona com uma cobertura. Cada um se instala onde quiser. Dega, Pierrot le Fou, Santori, Grandet e eu nos arrumamos uns pertos dos outros e imediatamente as curriolas se formam. Vou ao fundo da sala: a direita, o banheiro; a esquerda, as privadas, mas sem agua corrente. Dependurados nas barras das janelas, assistimos a distribuicao dos outros, que chegaram depois de nos. Louis Dega, Pierrot le Fou e eu estamos radiantes: nao fomos internados, por isso estamos juntos num barracao. Se nao fosse assim, ja estariamos numa cela, conforme explicou Julot. Todo mundo esta contente, ate o momento em que, quando tudo acaba, por volta das 5 horas da tarde, Grandet diz:

– E esquisito, neste comboio nao chamaram um so internado. E estranho. Por mim, tanto melhor.

Grandet e o cara que roubou o cofre-forte de uma central, caso que fez rir toda a Franca.

Nos tropicos, a noite e o dia chegam sem crepusculo nem aurora. Passa-se de uma ao outro de uma vez, o ano inteiro, na mesma hora. A noite cai bruscamente as 6 e meia da tarde. E, as 6 e meia, dois velhos forcados trazem dois lampioes de petroleo, que sao pendurados em um gancho no teto e dao muito pouca luz. Tres quartos da sala ficam em plena escuridao. As 9 horas, todo mundo dorme, porque, passada a excitacao da chegada, a gente morre de calor. Nem sinal de vento, todo mundo fica de cueca. Deito entre Dega e Pierrot le Fou, conversamos baixinho e depois dormimos.

Na manha seguinte, e ainda noite quando toca o clarim. Todos se levantam, se lavam e se vestem. Dao-nos cafe e pao. Uma tabua esta pregada a parede e serve para a gente botar o pao, o prato e o resto das coisas. As 9 horas entram dois vigilantes e um forcado, jovem vestido de branco sem listras. Os dois guardas sao corsos e falam em corso com forcados conterraneos. Durante este tempo, o enfermeiro passeia pela sala. Chegando junto de mim, diz:

– Como vai isso, Papi? Nao me reconhece?

– Nao.

– Eu sou Sierra, de Argel, conheci voce na casa de Dante, em Paris.

– Ah, sim, agora me lembro. Mas voce viajou em 29, ja estamos em 33 e voce continua sempre por aqui?

– Sim, a gente nao se livra desta situacao tao depressa. Finja que esta doente. E ele, quem e?

– Dega? E meu amigo.

– Inscrevo ele tambem na consulta. Voce, Papi, tem diarreia. E voce, velhinho, esta com crises de asma. A gente se ve na consulta das 11 horas, tenho coisas a falar com voces.

Ele vai aos que levantam o dedo e os inscreve. Quando torna a passar a nossa frente, esta acompanhado por um dos vigilantes, queimado de sol e muito velho.

– Papillon, apresento-lhe meu chefe, o vigilante enfermeiro Bartiloni. Senhor Bartiloni, estes dois sao os meus amigos, de quem falei ao senhor.

– Esta bem, Sierra, a gente arranja tudo na consulta, conte comigo.

As 11 horas chegam para nos buscar. Somos nove doentes. Vamos a pe, entre os barracoes. Chegando diante de um barracao mais novo e o unico pintado de branco com uma cruz vermelha, entramos numa sala de espera, onde se acham uns sessenta homens. A cada canto da sala, dois vigilantes. Sierra aparece, vestido com uma blusa imaculada de medico. Ele diz: “Voce, voce e voce, venham”. Entramos numa sala e logo vemos que e o gabinete do medico. Ele fala aos tres velhos em espanhol. Reconheco imediatamente um espanhol: e Fernandez, que matou tres argentinos no cafe Madrid, em Paris. Depois que conversam um pouco, Sierra o faz passar para uma privada, que da para a sala, e vem ate nos:

– Papi, deixe que eu abrace voce. Estou contente de poder prestar um grande servico, a voce e ao seu amigo: os dois estao internados… Ah! Esperem eu falar! Voce, Papillon, perpetua, e voce, Dega, cinco anos. Tem gaita?

– Sim.

– Entao me deem 500 francos cada um e, amanha pela manha, estarao hospitalizados, voce por diarreia. E voce, Dega, de noite, bata a porta, ou, melhor ainda, algum de voces chama o guarda e pede o enfermeiro, dizendo que Dega esta morrendo de falta de ar. Do resto, eu me encarrego. Papillon, peco-lhe so uma coisa: se houver Problema, avise a tempo, que irei ao seu encontro. No hospital, por 100 francos semanais cada um, voces vao poder ficar durante um mes. A coisa tem de ser feita depressa.

Fernandez sai da privada e entrega, na nossa frente, 500 francos a Sierra. Eu entro tambem na privada e, quando saio, entrego-lhe nao 1 000, mas 1 500 francos. Ele recusa os 500 francos. Nao quero insistir. Ele me diz:

– Estes cobres, que voce me da, sao para o guarda. Nao levo nada para mim. Somos amigos ou nao?

No dia seguinte, Dega, eu e Fernandez estamos numa cela imensa, dentro do hospital. Dega foi hospitalizado no meio da noite. O enfermeiro da sala e um tipo de 35 anos, que a gente chama Chatal. Tem todas as instrucoes de Sierra para nos tres. Quando o medico passar, apresentara um exame de fezes onde eu aparecerei podre de amebas. Para Dega, dez minutos antes da consulta, ele queima um pouco de enxofre, que lhe forneceram, e manda ele respirar o gas com um pano na cabeca. Fernandez sente enorme alegria: ele cortou a pele no interior da bochecha e soprou o mais possivel durante uma hora. Fez isso tao conscientemente, que a inchacao cresceu ao ponto de tapar um olho. A cela fica no primeiro andar de um edificio, onde estao uns setenta doentes, muitos de diarreia. Pergunto ao enfermeiro onde esta Julot. Ele me diz:

– Justamente no edificio defronte. Quer que lhe diga alguma coisa?

– Sim. Diga-lhe que Papillon e Dega estao aqui, que ele apareca na janela.

O enfermeiro entra e sai da sala quando quer. Para isso, nao precisa mais do que bater a porta e um arabe abre. E um guarda-chaves, um forcado que serve de auxiliar aos vigilantes. Nas cadeiras, a direita e a esquerda, ficam sentados tres vigilantes, mosquetao nos joelhos. As grades da janela sao trilhos de estrada de ferro e eu me pergunto como e que se faz para cortar isso. Sento-me junto a janela.

Entre o nosso edificio e o de Julot ha um jardim cheio de flores alegres. Julot aparece na janela, uma lousa na mao, sobre a qual escreve com giz: “VIVA”. Uma hora depois, o enfermeiro me traz uma carta de Julot. Ele me escreveu: “Estou procurando dar um pulo a sua sala. Se fracassar, tentem vir a minha. O motivo e que voces tem inimigos na sua sala. Como e, estao internados? Animo, dara tudo certo”. O incidente da Central de Beaulieu, onde sofremos juntos, ligou-nos muito um ao

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