foi ele quem preparou a fuga do Dr. Bougrat dois anos atras. Para encontra-lo tenho que tirar uma radiografia num pavilhao que tem equipamento especial. O pavilhao fica dentro do recinto do hospital, mas os condenados em liberdade podem ser admitidos com uma autorizacao falsificada, para tirar uma radiografia. Ele diz para eu tirar o canudo antes de ir para a radiografia, porque o medico pode ve-la, se olhar mais abaixo do pulmao. Mando um recado a Sierra, pedindo para mandar Jesus a radiografia e combinar com Chatal para eu ser mandado la tambem. Na mesma noite, Sierra avisa que vai ser depois de amanha, as 9 horas.

No dia seguinte, Dega pede alta e Fernandez tambem. O Mana zarpou de manha. Pretendem fugir das celas do presidio, desejo-lhes boa sorte, eu nao mudo meus planos.

Encontrei Jesus. E um velho condenado liberto, seco como um bacalhau, rosto moreno, marcado por duas horriveis cicatrizes. Tem um olho que fica lacrimejando o tempo todo, quando olha a gente. Cara feia, olhar perigoso. Nao me inspira a menor confianca, o futuro vai provar que eu tenho razao. Entramos logo no assunto:

– Posso arranjar um barco para quatro homens, no maximo cinco. Um tonel de agua, comida, cafe e fumo; tres remos, uns sacos vazios, agulha e linha para voce mesmo fazer a vela e o cutelo, a vela menor; uma bussola, um machado, uma faca, 5 litros de tafia (rum da Guiana), tudo por 2 500 francos. A lua some daqui a tres dias. Se voce aceitar, daqui a quatro dias vou ficar esperando no barco todas as noites, das 11 as 3 da manha, durante oito dias. No primeiro quarto de lua nao vou esperar mais. O barco estara exatamente no canto do muro, atras do hospital. Va andando pelo muro, porque enquanto voce nao estiver em cima do bote nao vai conseguir enxerga-lo, nem a 2 metros.

Nao confio nele, mas aceito assim mesmo.

– E a gaita? – pergunta Jesus.

– Mando por Sierra.

Despedimo-nos sem apertar as maos. Nada elegante.

As 3, Chatal vai ate o presidio levar o dinheiro para Sierra, 2 500 francos. Penso comigo: “Jogo esse dinheiro por Galgani, porque e arriscado. Espero que ele nao beba essas 2 500 pratas!”

Clousiot esta radiante, cheio de confianca em si, em mim e no nosso plano. So uma coisa o preocupa: quase todas as noites, o carcereiro arabe volta para a enfermaria e, alem disso, nao muito tarde. Outro problema: quem mais, poderiamos escolher para fazer a proposta? Ha um corso do baixo mundo de Nice, chamado Biaggi. Esta na colonia desde 1929, encontra-se de prisao preventiva na enfermaria, sob forte vigilancia, porque matou um sujeito. Clousiot e eu discutimos se vamos falar com ele e quando. Enquanto conversamos em voz baixa, aproxima-se um rapazinho de uns dezoito anos, bonito como uma mulher. Chama-se Maturette e foi condenado a morte pelo assassinato de um chofer de taxi e mais tarde agraciado por causa da sua idade: dezessete anos. Eram dois rapazes os acusados, de dezesseis e dezessete anos; no tribunal, em vez de se acusarem reciprocamente, esses dois garotos declararam-se ambos autores do crime. O chofer foi morto por um unico tiro. Por essa atitude, na epoca do cesso, os meninos ganharam a simpatia de todos os condenados.

Maturette, completamente efeminado, aproxima-se e pede um fosforo com uma voz de mulher. Acendo seu cigarro e dou-lhe ainda, de presente, quatro cigarros e uma caixa de fosforos. Agradece com um sorriso insinuante, deixamos que se afaste. De repente, Clousiot diz:

– Papi, estamos salvos. O arabe vai voltar quando a gente quiser e a hora que a gente quiser, esta no papo.

– Como?

– E muito simples: pedimos a Maturette que se deixe seduzir por ele Voce sabe, os arabes adoram os rapazinhos. Dai a entrar de noite para visitar o menino, e um pulo. Maturette vai fazer onda, dizendo que tem medo de ser visto, e o arabe entrara a hora que for melhor para a gente.

– Deixe comigo.

Vou ate Maturette, ele me recebe com um sorriso convidativo. Pensa que me conquistou com o seu primeiro sorriso insinuante. Vou logo dizendo:

– Esta enganado, va ate as latrinas.

Chegando la, comeco:

– Se falar uma palavra do que vou dizer, voce e um homem morto. Esta disposto a fazer isso, isso e isso para ganhar uns cobres? Quanto? Prefere fazer o servico ou quer ir com a gente?

– Quero ir com voces, esta certo?

Prometido. Apertamos as maos.

Ele vai deitar-se e, depois de trocar algumas palavras com Clousiot, eu tambem me deito. De noite, la pelas 8 horas, Maturette senta na janela. Nem precisa chamar o arabe, ele vem sozinho e comecam a conversar em voz baixa. As 10, Maturette se deita. Nos estamos deitados desde as 9 horas, com um olho aberto. O arabe entra na enfermaria, da duas voltas, encontra um homem morto. Bate na porta e pouco depois entram dois padioleiros com uma maca e levam o morto. Esse morto vai servir para justificar as rondas do arabe a qualquer hora da noite. No dia seguinte, por sugestao nossa, Maturette marca encontro com ele as 11 da noite. O carcereiro chega na hora, passa pela cama do menino, puxa-o pelos pes para acorda-lo, depois dirige-se para as latrinas. Maturette segue-o. Quinze minutos depois aparece o carcereiro, que vai direto para a porta e sai. Imediatamente, Maturette vai deitar-se na sua cama, sem falar com a gente. Na noite seguinte, e a mesma coisa, desta vez a meia-noite. Tudo esta dando certo, o arabe vem a hora que o menino indica.

Dia 27 de novembro de 1933. Dois pes da cama vao ser arrancados para servir de arma. As 4 da tarde, espero um aviso de Sierra. Chata!, o enfermeiro, chega sem bilhete. Ele diz apenas:

– Francois Sierra falou para avisar que Jesus vai esperar no lugar que foi previamente combinado. Boa sorte.

As 8 da noite, Maturette diz ao arabe:

– Venha depois da meia-noite; a essa hora, a gente vai poder ficar junto mais tempo.

O arabe diz que vira depois da meia-noite. A meia-noite em ponto estamos prontos. O arabe entra la pela meia-noite e quinze, vai direto para a cama de Maturette, puxa os pes dele e segue para as latrinas. Maturette entra com ele. Arranco o pe da minha cama, que faz um pouco de barulho ao cair. Do lado de Clousiot nada se ouve. Tenho que ficar atras da porta dos banheiros e Clousiot vai-se aproximar para chamar sua atencao. Depois de vinte minutos de espera, tudo acontece muito rapido. O arabe sai dos banheiros e, surpreso de ver Clousiot, diz:

– O que e que voce esta fazendo ai, de pe no meio da sala a esta hora? Va dormir.

Na mesma hora leva uma pancada em plena nuca e cai sem um ruido. Rapido, visto suas roupas, calco seus sapatos, arrasto-o para debaixo de uma cama e, antes de esconde-lo completamente, dou-lhe outra pancada na cabeca. E a conta.

Nenhum dos oitenta homens da enfermaria se mexeu. Dirijo-me rapidamente para a porta, seguido de Clousiot e Maturette, vestidos apenas com a camisa, e bato. O vigia abre, eu pego o ferro e tac!, na cabeca dele. O outro, da frente, deixa cair o fuzil, com certeza esta dormindo. Antes que reaja, dou-lhe uma pancada. Os meus dois nao gritaram, o de Clousiot diz “ha!” antes de desmoronar. Os meus dois ficam sentados em suas cadeiras, o terceiro fica esticado no chao em todo o seu comprimento. A gente prende a respiracao. Para nos, todos escutaram esse “ha!”. Foi muito alto mesmo e, no entanto, ninguem se mexe. Nao os levamos para a sala, partimos com os tres fuzis. Clousiot primeiro, o rapazinho no meio e eu atras, descemos pelas escadas mal iluminadas por uma lanterna. Clousiot largou seu pedaco de ferro, eu tenho o meu na mao esquerda e o fuzil na direita. Embaixo, nada. A nossa volta, a noite esta escura como breu. Precisamos olhar bem para enxergar o muro, perto do rio; dirigimo-nos rapidamente para la. Chegando ao muro, faco escadinha. Clousiot sobe, fica escarranchado, puxa Maturette, depois eu. Escorregamos na escuridao do outro lado do muro. Clousiot cai de mau jeito dentro de um buraco e machuca o pe; eu e Maturette chegamos bem. Levantamos, abandonamos os fuzis antes de saltar. Quando Clousiot vai levantar, nao consegue, diz que esta com a perna quebrada. Deixo Maturette com Clousiot e corro ate o canto do muro, segurando com a mao na parede. Esta tao escuro, que nao percebo quando chego ao fim do muro, minha mao cai e bato com o queixo. Do lado do rio ouco uma voz que diz:

– Sao voces?

– Sim. E Jesus?

– E.

Ele acende um fosforo por um instante. Vejo onde ele esta. Entro na agua, chego ate ele. Sao dois.

– Suba o primeiro. Quem e?

– Papillon.

– Bom.

– Jesus, precisa voltar um pouco mais para cima, meu amigo quebrou a perna caindo do muro.

– Entao pegue essa pa e reme.

Os tres remos afundam na agua e o barco faz depressa os 100 metros que nos separam do lugar onde os outros dois devem estar. Nao se enxerga nada. Chamo:

– Clousiot!

– Nao fale, diabo! – diz Jesus. – Enfle, rode a pedra do isqueiro. Brilham algumas faiscas, eles perceberam. Clousiot assobia entre os dentes: e um assobio que nao faz barulho, mas a gente escuta perfeitamente. Parece o silvo de uma cobra. Assobia sem parar, conduzindo-nos perto dele. Enfle desce, carrega Clousiot nos bracos e o coloca na barca. Maturette sobe tambem, depois Enfle. Somos cinco e a agua chega a dois dedos da borda do barco,

– Nao facam nenhum movimento sem avisar – diz Jesus. – Papillon, pare de remar, coloque a pa sobre os joelhos. Forca, Enfle!

E rapidamente, com a ajuda da correnteza, a barca entra noite adentro.

Quando passamos, depois de 1 quilometro, diante da penitenciaria escassamente iluminada por um velho gerador, estamos no meio do rio, navegando a uma velocidade incrivel, levados pela correnteza. Enfle levantou o remo. Somente Jesus, com o cabo do seu colado a coxa, mantem o equilibrio do barco. Nao rema, so dirige.

Jesus diz:

– Agora, a gente pode falar e fumar. Deu tudo certo, acho. Tem certeza de que nao matou ninguem?

– Acho que nao.

– Diabo! Voce me tapeou, Jesus! – diz Enfle. – Voce disse que era uma fuga sem problema nenhum, no entanto e uma evasao de condenados, pelo que consegui entender.

– Pois e, sao condenados, Enfle. Nao quis falar para voce, senao voce nao me ajudava e eu precisava de um homem: Nao tem nada. Se eles pegarem a gente, eu fico com toda a responsabilidade.

– Certo, Jesus. Pelas 100 pratas que voce me deu, nao quero arriscar o meu pescoco se tiver um morto, nem a prisao perpetua se tiver algum ferido.

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