Entao eu digo:
Enfle, vou dar de presente 1 000 francos para voces dois.
– Ta certo, entao, chefe. Regular. Obrigado, a gente morre de fome na aldeia, e pior estar livre do que preso. Pelo menos, preso, a gente tem comida todos os dias e roupa.
– Chefe – diz Jesus a Clousiot -, esta sofrendo muito?
– Vai indo – diz Clousiot. – Mas como e que vamos fazer com minha perna quebrada, Papillon?
– Vamos ver. Para onde a gente vai, Jesus?
– Vou esconder voces numa enseada a 30 quilometros da saida do mar. Voces vao ficar la oito dias, para deixar esfriar o negocio da perseguicao dos guardas e dos cacadores de homens. Precisa dar a impressao de que voces sairam nesta mesma noite do Maroni e entraram no mar. Os cacadores de homens tem umas canoas sem motor, essas canoas sao o maior perigo. Fogo, falar, tossir podem ser fatais se eles estiverem por perto, escutando. Os guardas tem uns barcos a motor muito grandes para entrar na enseada, podem tocar o fundo.
A noite fica clara. Sao quase 4 horas da manha quando, depois de ter procurado bastante tempo, damos finalmente com o local que so Jesus conhece e entramos na mata. O barco achata os pequenos arbustos, que, apos passarmos, tornam a se endireitar atras de nos, formando uma cortina protetora bem fechada. Precisaria ser um adivinho para saber que ali ha agua suficiente para dar passagem a um barco. Entramos, penetramos na floresta durante mais de uma hora, afastando os galhos que barram a nossa passagem. De repente encontramo-nos numa especie de canal e paramos. A margem esta verde de grama limpa, as arvores sao imensas e a claridade (sao 6 horas) nao chega a penetrar no meio da folhagem. Debaixo dessa abobada imponente, os gritos de milhares de animais desconhecidos. Jesus diz:
– E aqui que voces vao ter que esperar oito dias. Volto no setimo dia, para trazer mantimentos.
Ele tira de baixo de uma vegetacao cerrada uma pequena canoa de uns 2 metros. Dentro dela ha dois remos. E com esse barco que ele vai voltar, com a mare montante, para Saint-Laurent.
So entao vamos ocupar-nos de Clousiot, que esta deitado na margem. Veste ainda a camisa, mas tem as pernas nuas. Com o machado, arranjamos uns galhos secos do formato de ripas. Enfle puxa entao o pe de Clousiot, que, suando gotas enormes, num certo momento diz: “Pare! Nessa posicao doi menos, o osso deve estar no lugar”. Colocamos as ripas e as amarramos com a corda de canhamo nova que esta dentro da canoa. Ele fica aliviado. Jesus tinha comprado quatro calcas, quatro camisas e quatro malhas de la dos deportados. Maturette e Clousiot se vestem, eu fico com as roupas do arabe. Tomamos um pouco de rum. E a segunda garrafa que esvaziamos desde a partida: esquenta, felizmente. Os mosquitos atacam a gente parar: precisamos sacrificar um pacote de fumo. Colocamos o de molho numa cabaca e passamos o caldo da nicotina no rosto, maos e nos pes. As malhas sao de la e esquentam, apesar dessa umidade que penetra na gente.
Enfle diz:
– Vamos embora. E as pratas que voce prometeu?
Afasto-me um pouco e volto com uma nota de 1 000 novinha em folha.
– Ate logo, nao saiam dai durante oito dias – diz Jesus. A gente volta daqui a sete dias. No oitavo dia, voces embarcam. Nesse Tempo todo facam as velas e arrumem o barco, cada coisa no seu lugar, coloquem os gonzos do leme, que nao esta montado. Se passarem dez dias e a gente nao voltar, e porque fomos agarrados na aldeia. Como o negocio engrossou com o ataque ao guarda, vai ter uma encrenca danada.
Por outro lado, Clousiot informa que ele nao deixou o fuzil perto do muro. Jogou-o por cima do muro e o rio fica tao perto (ele nao sabia disso), que certamente o fuzil caiu na agua. Jesus diz que e bom isso, porque, se ele nao foi encontrado, os cacadores de homens vao pensar que estamos armados. Eles sao os mais perigosos, mas nao devemos ter medo: so estao armados com um revolver e um facao e, pensando que temos fuzis, nao vao aventurar-se. Ate logo, ate logo. Se nos descobrirem e precisarmos abandonar a canoa, vamos ter que subir o riacho ate a floresta; com a bussola, iremos para o norte. Ha muitas chances de a gente encontrar, depois de dois ou tres dias de marcha, o presidio da morte chamado Charvein. La vamos ter que pagar a alguem para avisar Jesus de que estamos naquele lugar. Vao embora os dois velhos condenados. Alguns minutos depois, sua canoa ja desapareceu, nao se ouve nada e nao se ve nada.
A claridade do dia penetra na floresta de uma maneira toda particular. Parece que estamos embaixo de uma abobada que recebe o sol pelo alto e nao deixa passar nenhum raio. Comeca a esquentar. Entao, Maturette, Clousiot e eu nos sentimos sos. Primeiro reflexo: damos risada. Tudo correu com a maior facilidade. O unico inconveniente e a perna de Clousiot. Ele diz que agora, que ela esta presa nas ripas, vai bem. A gente pode esquentar um cafe. E rapido; acendemos o fogo e tomamos uma bela caneca de cafe preto cada um, adocado com acucar mascavo. Esta delicioso. Gastamos tanta energia desde ontem a noite, que nao temos coragem de olhar as coisas nem de inspecionar o barco. A gente ve depois. Estamos livres, livres, livres. Faz exatamente 37 dias que chegamos a colonia. Se a fuga der certo, minha prisao perpetua nao foi muito longa. Eu falo: Senhor presidente, quanto tempo duram os trabalhos forcados na Prisao perpetua, na Franca?” E damos uma gargalhada. Maturette tambem tem prisao perpetua. Clousiot diz: “Nao vamos cantar vitoria, ainda. A Colombia esta longe, e esse barco feito com uma arvore queimada me parece bem pouca coisa para entrar no mar”.
Nao respondo nada porque eu, francamente, ate o ultimo momento, pensei que a canoa fosse levar-nos ao lugar onde estaria o barco apropriado para entrar no mar. Descobrindo que estava enganado, nao tive a coragem de dizer nada, para nao influenciar mal os meus amigos logo no comeco. Por outro lado, como Jesus parecia achar tudo aquilo muito natural, nao queria dar a impressao de nao conhecer os barcos habitualmente utilizados para fugas.
Passamos este primeiro dia falando e tomando contato com essa mata tao desconhecida. Os macacos e pequenas especies de esquilos fazem terriveis cabriolas em cima das nossas cabecas. Um bando de pequenos porcos selvagens veio beber agua e tomar banho. Havia pelo menos 2 000. Entram na enseada e nadam, arrancando as raizes que estao penduradas. Um jacare sai de nao sei onde e agarra a pata de um porco, que comeca a se esgoelar como um louco; entao, os porcos atacam o jacare, sobem em cima dele, tentando morde-lo na juncao de sua enorme boca. A cada golpe de rabo, o jacare faz dancar um porco a direita ou a esquerda. Um deles morre e boia com o ventre para o ar. Imediatamente, seus companheiros o comem. A enseada esta cheia de sangue. O espetaculo dura vinte minutos, o jacare foge debaixo da agua. Nao o vimos mais.
Dormimos bem e de manha fazemos cafe. Tiro minha malha, para me lavar com
Quando colocamos o mastro, percebo que o fundo do barco nao e solido: o buraco onde se fixa o mastro esta comido e perigosamente gasto. Ao colocarmos as dobradicas que segurarao o leme, os parafusos entram como se a madeira fosse manteiga. Este barco esta podre. Aquele porco do Jesus esta querendo matar a gente. Contrariado, mostro isso tudo aos dois, nao tenho o direito de esconder deles a situacao. O que e que vamos
Hoje de manha assistimos a um curioso espetaculo: um bando de macacos de focinho cinzento brigou com uns macacos de focinho preto e aveludado. Maturette, no meio da baderna, levou um pedaco de galho na cabeca e esta com um galo grande como uma noz.
Ha cinco dias e quatro noites que estamos aqui. Nesta noite choveu torrencialmente. Abrigamo-nos com folhas de bananeiras selvagens. A agua escorria em cima de seu verniz, mas nao nos molhamos muito, so os pes. Hoje de manha, tomando cafe, penso como Jesus e um criminoso. Ter-se aproveitado de nossa inexperiencia para empurrar para a gente este barco podre! Para economizar 500 ou 1 000 francos, ele manda tres homens a morte certa. Pergunto a mim mesmo se, depois de obriga-lo a me fornecer um outro barco, nao vou mata-lo.
Gritos de gaios alvorocam todo o nosso pequeno mundo, gritos tao agudos e irritantes, que digo a Maturette para pegar o facao e ir ver o que e. Ele volta depois de cinco minutos e me faz sinal para segui-lo. Chegamos a um local a uns 150 metros do barco e vejo, pendurado no ar, um maravilhoso faisao (ou uma ave parecida com um faisao), duas vezes maior que um galo grande. Esta preso num laco e pendurado pela perna num galho. Com um golpe de facao, corto seu pescoco, para acabar com aqueles gritos horripilantes. Suspendo-o, para calcular seu peso, tem pelo menos 5 quilos. Seus esporoes sao como os dos galos. Decidimos come-lo, mas, refletindo, achamos que o laco foi colocado la por alguem e que deve haver outros. Vamos ver. Voltamos para o lugar e encontramos uma coisa curiosa: e uma verdadeira barreira de 30 centimetros de altura, feita de folhas e cipos entrelacados, a uns 10 metros da enseada. Essa barreira corre paralelamente a agua. De vez em quando, uma porta, e na porta, disfarcado por uns galhos pequenos, um laco de arame preso por uma extremidade a um galho de arvore dobrado. Logo imagino que o animal deve chocar com a barreira e percorre-la ate encontrar uma passagem. Quando encontra a porta, passa, mas seu pe fica preso no arame, soltando o galho. Fica entao pendurado no ar, ate que o proprietario das armadilhas venha busca-lo.
Essa descoberta nos preocupa. A barreira parece bem conservada e nao e velha; corremos o perigo de ser descobertos. Nao podemos acender fogo de dia, mas de noite o cacador nao vai aparecer. Decidimos fazer um turno de guarda para vigiar, olhando sempre na direcao das armadilhas. O barco esta escondido embaixo dos galhos e todo o material esta na floresta.
Estou de guarda no dia seguinte, as 10 horas. De noite comemos o faisao ou galo, nao sabemos bem. O caldo nos fez um bem enorme e a carne, mesmo cozida, era deliciosa. Cada um comeu duas tigelas. Agora estou de guarda. Mas, intrigado com umas formigas-de-mandioca enormes, pretas, cada uma carregando grandes pedacos de folhas, que levam para um enorme formigueiro, esqueco minha guarda. Essas formigas tem mais ou menos 1 centimetro e meio de comprimento e ficam erguidas sobre as patas. Cada uma delas carrega pedacos enormes de folhas. Sigo-as ate a arvore que estao descascando e vejo toda uma organizacao. Antes de tudo, ha as cortadeiras, que so preparam os pedacos. Rapidamente cortam com suas tesouras uma enorme folha de uma especie de bananeira, recortam uns pedacos, todos do mesmo tamanho, com uma habilidade incrivel, e os pedacos caem no chao. Embaixo ha uma fileira de formigas da mesma especie, mas um pouco diferentes. Tem do lado da mandibula uma risca cinzenta e estao em semicirculo, fiscalizando as carregadeiras. Estas chegam pela direita, em fila, e vao para o formigueiro pela esquerda. Rapidas, elas apanham sua carga antes de entrar na fila, mas, de vez em quando, na pressa de se carregarem e entrarem na fila, criam um atravancamento. Entao intervem as formigas policiais e empurram cada uma das operarias para o lugar que elas devem ocupar. Nao consigo compreender que falta grave cometeu uma operaria, mas ela e retirada da fileira por duas formigas policiais: uma arranca-lhe a cabeca; a outra corta-lhe o corpo em dois, na altura da cintura. Duas operarias sao obrigadas a parar pelos guardas; colocam no chao seu pedaco de folha, fazem um buraco com suas patas, e as tres partes da formiga, cabeca, peito e o resto do corpo, sao enterradas e depois cobertas de terra.