O barco, nao mais dirigido pelo bretao, e empurrado na direcao da ilha, mas vai atravessado. Tento endireita-lo, fazer meia volta, mas sou mal sucedido e, levados pela corrente, entramos ate tres quartos da vegetacao que invade a agua. Chegamos com tanta velocidade que, mesmo freando com meu remo, se tivessemos encontrado uma rocha, em vez de galhos e folhas de arvores, teriamos quebrado a canoa; entao estaria tudo perdido, mantimentos, material, etc. Maturette pula dentro da agua e puxa a canoa. Estamos debaixo de um enorme tufo de plantas. Ele puxa mais um pouco e amarramos nele a canoa. Tomamos um gole de rum e eu desco sozinho para a margem, deixando meus dois amigos no barco.
Com a bussola na mao, vou andando, depois de partir varios galhos e prender em diferentes lugares tiras de sacos de farinha que preparei antes de partir. Vejo um clarao e escuto de repente vozes, vindas de tres palhocas. Aproximo-me e, como nao sei de que forma me apresentar, decido deixar que me descubram. Acendo um cigarro. No instante em que a luz brilha, um cachorrinho precipita-se em minha direcao latindo e da pulos para morder minhas pernas. “Sera que o cachorro e leproso?”, penso. “Idiota, os cachorros nao tem lepra.”
– Quem esta ai? Quem e? E voce, Marcel?
– E um foragido.
– O que e que voce vem fazer aqui? Roubar a gente? Acha que temos alguma coisa pra ser roubada?
– Nao, preciso de ajuda.
– Gratis ou paga?
– Cale a boca, Chouette!
Quatro sombras saem das palhocas.
– Venha devagar, amigo, aposto que e voce o sujeito do fuzil. Se esta com ele, ponha-o no chao; aqui, voce nao tem nada a temer.
– Sou eu, mas o fuzil nao esta comigo.
Vou para a frente, estou perto deles, e noite e nao posso distinguir os tracos. Bestamente estendo a mao, ninguem toca nela. Compreendo tarde demais que e um gesto que aqui nao se faz: eles nao me querem contaminar.
– Vamos para a cabana – diz Chouette.
A palhoca e iluminada por um lampiao a oleo colocado em cima da mesa.
– Sente-se.
Sento-me numa cadeira de palha, sem encosto, Chouette acende tres outros lampioes a oleo e coloca um sobre a mesa, bem a minha frente. A fumaca que solta o pavio deste lampiao de oleo de coco tem um cheiro enjoativo. Estou sentado, eles cinco de pe, nao enxergo seus rostos. A luz ilumina o meu porque estou bem na altura do lampiao, como eles queriam. A voz que mandou Chouette calar a boca diz:
– Anguille, va perguntar a casa comum se querem que a gente o leve para la. Traga logo a resposta e pergunte se Toussaint esta de acordo. Aqui nao lhe podemos oferecer nada para beber, meu amigo, a nao ser que voce queira chupar uns ovos.
Coloca na minha frente um cesto trancado cheio de ovos.
– Nao, obrigado.
A minha direita, bem perto de mim, um deles se senta e e entao que vejo o primeiro rosto de um leproso. E horrivel e faco um esforco enorme para nao virar a cara nem exteriorizar minha impressao. O nariz esta completamente corroido, osso e carne, um buraco bem rente no meio do rosto. Tenho certeza: nao sao dois buracos, mas um so, grande como uma moeda de 2 francos. O labio inferior, a direita, esta comido e deixa aparecerem, descarnados, tres dentes muito compridos e amarelos que se encravam no osso do maxilar superior a nu. So tem uma orelha. Coloca a mao em cima da mesa, enrolada num curativo. E a direita. Com os dois dedos que restam na mao esquerda, segura um charuto grosso e comprido, feito na certa Por ele mesmo, com folha de fumo meio maduro, porque o charuto esta esverdeado. So tem palpebras no olho esquerdo; no direito, nao. Uma ferida profunda sai do olho para o alto da testa, perdendo-se nos cabelos grisalhos abundantes.
Com uma voz muito rouca, ele me diz:
– Vamos ajudar voce, amigo; voce levaria muito tempo para ficar como eu, e nao quero isso.
– Obrigado.
– Meu nome e Jean Sans Peur, sou dos suburbios de Paris. Eu era mais bonito, mais sadio e mais forte do que voce, quando cheguei a colonia. Em dez anos, olhe aqui o que eu fiquei.
– Nao cuidam de voce?
– Cuidam. Melhoro depois que tomo umas injecoes de oleo de choumogra. Olhe.
Vira a cabeca e me apresenta o lado esquerdo:
– Secou desse lado.
Uma imensa piedade me invade e faco um gesto para tocar sua face esquerda, como demonstracao de amizade. Ele se joga para tras e me diz:
– Obrigado por querer me tocar, mas nunca toque um doente, nem coma, nem beba na sua tigela.
So pude ver o rosto de um dos leprosos: aquele que teve a coragem de suportar que eu o olhasse.
– Onde esta o cara?
Na porta, uma sombra de um homenzinho do tamanho de um anao:
– Toussaint e os outros querem ve-lo. Leve-o para o centro. Jean Sans Peur levanta e me diz: “Siga-me”. Saimos todos na noite, quatro ou cinco na frente, eu ao lado de Jean Sans Peur, outros atras. Quando chegamos, depois de tres minutos, em cima de uma esplanada, um pouco de lua ilumina o lugar. E o topo plano da ilha. No meio, uma casa. Sai luz de duas janelas. Na frente da porta, uns vinte homens esperam a gente, vamos na direcao deles. Quando chegamos diante da porta, eles se afastam para dar passagem. E uma sala retangular de 10 metros de comprimento por aproximadamente 4 de largura, com uma especie de fogao onde queima lenha, cercado por quatro enormes pedras, todas da mesma altura. A sala esta iluminada por dois grandes lampioes a petroleo. Sentado num banquinho, um homem sem idade, branco de rosto. Atras dele, num banco, cinco ou seis homens. Ele tem olhos negros e me diz:
– Sou Toussaint, o corso, e voce deve ser Papillon.
– Sou.
– As noticias correm rapidamente na colonia, tao rapidamente quanto voce. Onde voce botou o fuzil?
– Jogamos no rio.
– Em que lugar?
– Em frente ao muro do hospital, exatamente onde pulamos.
– Entao, sera que pode ser recuperado?
– Acho que sim, porque a agua nao e funda naquele lugar.
– Como e que voce sabe?
– Tivemos que entrar na agua para carregar meu amigo ferido e coloca-lo dentro da canoa.
– O que ele tem?
– Uma perna quebrada.
– O que voce fez com ele?
– Coloquei em volta da perna uns galhos quebrados pela metade e fiz uma especie de tala.
– Ele esta sentindo dor?
– Esta.
– Onde ficou?
– Na canoa.
– Voce disse que veio procurar ajuda. Que tipo de ajuda?
– Um barco.
– Voce quer que a gente de um barco para voce?
– Quero, tenho dinheiro para pagar.
– Bom. Vou-lhe vender o meu, e formidavel e novo em folha, roubei na semana passada, em Albina. Nao e um barco, e um transatlantico. So falta uma coisa, uma quilha. Nao esta quilhado, mas, em duas horas, a gente vai colocar uma boa quilha. Tem tudo que precisa: um leme com a cana completa, um mastro de 4 metros de madeira de lei e uma vela novinha de tela de linho. Quanto e que voce oferece?
– Diga seu preco, eu nao sei quanto valem essas coisas.
– Tres mil francos, se voce puder pagar; se nao puder, va buscar o fuzil amanha a noite e, em troca, eu dou o barco.
– Nao, eu prefiro pagar.
– Esta certo, negocio feito. La Puce, da cafe.
La Puce, o quase anao que me foi buscar, vai ate uma prateleira presa na parede em cima do fogo, pega uma tigela brilhante de nova e de limpeza, despeja nela o cafe de uma garrafa e a coloca no fogo. Um minuto depois retira a tigela e despeja um pouco de cafe numas canecas, que estao perto das pedras. Toussaint se debruca e passa as canecas para os homens atras dele. La Puce estende a tigela para mim e diz:
– Beba sem medo, porque esta tigela e so para as visitas. Nenhum doente bebe nela.
Pego a tigela e bebo; depois coloco-a em cima do joelho. Nesse momento, percebo que colado na tigela tem um dedo. Enquanto o observo, La Puce diz:
– Olhe, perdi outro dedo! Onde sera que caiu?
– Esta ai – digo, mostrando para ele a tigela. Ele desgruda O dedo e joga-o no fogo; devolve a tigela e diz:
– Pode beber, eu tenho a lepra seca. Vou acabando aos pedacos, mas nao apodreco, nao sou contagioso.
Um cheiro de carne grelhada chega ate mim. Raciocino comigo mesmo: “Isso deve ser aquele dedo”. Toussaint diz:
– Vai ter que passar o dia todo aqui, ate a noite, quando vier a vazante. Voce precisa avisar seus amigos. Traga o ferido para dentro de uma palhoca, tirem tudo o que tiver dentro da canoa e deixe que va. Nenhum de nos pode ajuda-los, voce compreende por que.
Rapidamente vou ate os outros dois, pegamos Clousiot e depois o levamos ate uma palhoca. Uma hora depois, ja tiramos tudo e o material da canoa esta cuidadosamente arrumado. La Puce pede que lhe de de presente a canoa com um remo. Dou e ele vai leva-la ate um lugar que conhece. A noite passou depressa.