outro. Julot era o especialista do bastao de madeira e por isso foi apelidado de “homem do martelo”. Ele chegava num carro diante de uma joalheria, em pleno dia, no momento em que as mais belas joias estavam em exposicao nos seus estojos. O carro, guiado por um outro, parava, deixando o motor ligado. Julot descia rapidamente, munido de um grosso bastao de madeira, punha abaixo a vitrina com um so golpe, apanhava a maior quantidade possivel de estojos e voltava ao carro, que disparava a toda velocidade. Depois de ter sido bem sucedido em Lyon, Angers, Tours, Le Havre, deu o golpe numa grande joalheria de Paris, as 3 da tarde, levando quase 1 milhao em joias. Nunca me contou por que e como foi identificado. Foi condenado a vinte anos e se evadiu ao fim de quatro. E foi ao regressar a Paris, conforme nos contou, que de novo o prenderam: estava atras de seu receptador, para assassina-lo, porque este nao entregou a sua irma uma grande soma de dinheiro que lhe devia. O receptor o viu vagando na rua onde morava, e avisou a policia. Julot acabou em cana e regressou ao degredo conosco.

Ja ha uma semana que estamos no hospital. Ontem entreguei 200 francos a Chatal, e o preco por semana para nos manter, nos dois, no hospital. Para conquistar amizades, damos fumo a todos que nao tem. Um forcado de sessenta anos, um marselhes chamado Carora, se fez muito amigo de Dega. Ele e seu conselheiro. Diz varias vezes por dia que, se tiver muito dinheiro e isso for sabido no povoado (pelos jornais chegados da Franca, sabe-se dos casos grandes), e melhor que ele nao se evada, porque os libertos irao mata-lo para roubar seu canudo. Dega me conta estas conversas com o velho Carora. Sou obrigado a lhe dizer que o velho e certamente um galinha-morta, pois ja esta aqui ha vinte anos, mas ele nao me da atencao. Dega esta muito impressionado com a conversa fiada do velho e eu tenho de me esforcar para sustentar seu animo e o meu.

Mandei passar um bilhete a Sierra, para que traga Galgani. A coisa nao demora. No dia seguinte, Galgani esta no hospital, mas fora das grades. Como fazer para lhe entregar seu canudo? Digo a Chatal que tenho necessidade imperiosa de falar com Galgani, dou a entender que e uma preparacao de fuga. Ele me diz que pode trazer Galgani precisamente cinco minutos antes do meio-dia. Na hora da mudanca da guarda, ele o fara subir para a varanda e falar comigo na janela, e isso sem cobrar nada. Galgani e trazido a janela ao meio-dia, eu boto o canudo diretamente em suas maos. Ele introduz o canudo no rabo, em pe, na minha frente, e chora. Dois dias depois, eu recebi uma revista enviada por ele, com cinco notas de 1 000 francos e uma unica palavra: “Obrigado”.

Chatal, que me entregou a revista, viu o dinheiro. Ele nao me fala nisso, mas eu insisto em lhe oferecer alguma coisa. Ele recusa. Eu lhe digo:

– Nos queremos cair fora. Quer ir conosco?

– Nao, Papillon, tenho outro compromisso, so vou tentar a evasao dentro de cinco meses, quando meu parceiro estiver libertado. A fuga vai ser mais bem preparada e sera mais segura. Voce, como esta internado, compreendo que esteja com pressa, mas sair daqui, com estas grades, vai ser duro. Nao conte comigo para lhe dar uma mao, nao quero arriscar meu lugar. Aqui, espero que meu amigo saia.

– Muito bem, Chatal. E preciso ser franco na vida, nunca vou-lhe dizer nada que possa compromete-lo.

– Assim mesmo, levarei seus bilhetes e tratarei de suas encomendas.

– Obrigado, Chatal.

Nesta noite, ouvimos rajadas de metralhadora. Soubemos, no dia seguinte, que foi o “homem do martelo” que se evadiu. Que Deus o ajude, era um bom amigo. Deve ter surgido uma oportunidade e aproveitou. Tanto melhor para ele.

Quinze anos depois, em 1948, estava eu no Haiti, onde acompanhado por um milionario venezuelano, tinha vindo fazer com o proprietario de um cassino um contrato para explorar o jogo. Uma noite, quando sai de um cabare, onde bebemos champanha, uma das mulheres que nos acompanha, preta como carvao, mas educada como uma provinciana de boa familia francesa, me diz:

– Minha avo, que e mae-de-santo, vive com um velho frances. E um evadido de Caiena, ha vinte anos que esta com ela, bebe o tempo todo, chama-se Jules Marteau.

Fico imediatamente bom da bebida;

– Garota, me leve logo, logo para a casa de sua avo.

Em dialeto haitiano, ela fala ao chofer, que toca a toda velocidade. Passamos por um bar noturno brilhante de luzes: “Pare”. Entro no bar e compro uma garrafa de Pernod, duas garrafas de champanha, duas garrafas de rum nacional. “Toca.” Chegamos a beira do mar, diante de uma encantadora casinha branca com telhas vermelhas. A agua do mar chega quase a escada. A mulher bate, bate, e sai primeiro uma preta corpulenta, os cabelos branquinhos. Esta vestida com uma camisola, que vem ate os tornozelos. As duas mulheres falam em dialeto, ela me diz:

– Entre, senhor, esta casa e sua.

Uma lampada de carbureto ilumina uma sala muito limpa, cheia de passaros e peixes.

– O senhor quer ver o Julot? Espere, ele vem ai. Jules, Jules! Tem alguem que quer ver voce.

Vestindo um pijama listrado de azul, que me faz lembrar a roupa do degredo, chega um velho descalco.

– E entao, Bola de Neve, quem e que vem me ver numa hora dessas? Papillon! Nao e possivel!

Pega-me os bracos e continua falando.

– Chega para ca a lampada, Bola de Neve, para que eu veja a cara de meu chapa. Mas e voce mesmo, homem! E voce, sem duvida! Entao, seja bem-vindo. O barraco, o pouco dinheiro que tenho, a neta de minha mulher, tudo e seu. E so falar.

Bebemos o Pernod, o champanha, o rum e, de vez em quando, Julot canta.

– A gente conseguiu, apesar de tudo, hein, meu chapa? Esta vendo, nada como a aventura. Passei pela Colombia, Panama, Costa Rica, Jamaica e depois, faz quase vinte anos, vim parar aqui e sou feliz com Bola de Neve, que e a melhor mulher que um homem pode encontrar. Quando vai embora? Demora aqui muito tempo?

– Nao, uma semana.

– Que veio fazer?

– Explorar o jogo do cassino, assinei um contrato diretamente com o proprietario.

– Meu chapa, gostaria que voce ficasse toda a vida junto comigo, nesta terra miseravel de carvoeiros, mas se voce fez contrato com o proprietario nao deve ficar vivendo perto dele, o cara mandara assassinar voce, quando souber que o seu business vai bem.

– Obrigado pelo conselho.

– Voce, Bola de Neve, prepare a festa de candomble nao para turista. Um candomble de verdade para o meu amigo!

Em outra ocasiao, contarei para voces o que foi este famoso candomble “nao para turista”.

Portanto, Julot se evadiu e eu, Dega e Fernandez continuamos na expectativa. De tempos em tempos, olho, como quem nao quer nada, as grades das janelas. Sao verdadeiros trilhos de estrada de ferro, nao da pe. Resta, agora, a porta. Dia e noite, tres vigilantes armados estao ali de guarda. Depois da evasao de Julot, a vigilancia se acentuou. As rondas se sucedem mais proximas umas das outras, o medico e menos amavel. Chata! so vem duas vezes por dia a sala, para as injecoes e para tirar a temperatura. Passa uma segunda semana, pago, mais uma vez, 200 francos. Dega fala de tudo, menos de evasao. Ontem viu meu bisturi e me disse:

– Continua com isso? Por que?

Respondi, de mau humor:

– Para defender minha pele e a sua, se for necessario.

Fernandez nao e espanhol, e argentino. E homem mesmo, um verdadeiro aventureiro, mas tambem ficou impressionado pela conversa mole do velho Carora. Um dia ouco ele dizer a Dega:

– Parece que nas ilhas e muito sadio, nao e como aqui e nao faz calor. Nesta sala, a gente pode apanhar ameba, e so ir a privada para pegar os microbios.

Todos os dias, um ou dois homens, nesta sala de setenta, morrem de disenteria. Coisa curiosa a notar, todos morrem na mare vazante da tarde ou da noite. Nunca ninguem morre de manha. Por que? Misterio da natureza.

Nesta noite, tive uma discussao com Dega. Eu lhe disse que, as vezes, de noite, o guarda-chaves arabe comete a imprudencia de entrar na sala e de levantar os lencois dos doentes mais graves, que tem o rosto coberto. A gente poderia dar uma pancada nele e se vestir com sua roupa (estamos todos so de camisa e sandalia). Uma vez vestido, saio e arranco de surpresa um mosquetao de um dos guardas, aponto para os outros e os faco entrar na cela, cuja porta fecho. A seguir, a gente salta o muro do hospital do lado do Maroni, cai na agua e deixa que a corrente nos carregue, a deriva. Depois, veremos. Como a gente tem dinheiro, compra um barco e comida para partir pelo mar. Ambos recusam categoricamente este projeto e ate o criticam. Sinto, entao, que eles estao de crista caida, fico muito decepcionado e os dias passam.

Ja ha tres semanas menos dois dias que a gente esta aqui. So restam de dez a quinze dias, no maximo, para tentar a fuga. Hoje, dia memoravel, 21 de novembro de 1933, entra na sala Joanes Clousiot, o homem que tentaram assassinar em Saint-Martin, no barbeiro. Tem as vistas fechadas e esta quase cego, os olhos cheios de pus. Depois que Chatal se retira, vou para perto dele. Rapidamente, ele me diz que os outros internados partiram para as ilhas ha mais de quinze dias, porem que se esqueceram dele. Ha tres dias, um administrador o avisou. Ele botou um grao de mamona nos olhos e, com os olhos purulentos, pode vir para o hospital. Esta seco para cair fora. Diz que esta pronto para tudo, mesmo para matar, se for preciso, mas quer fugir. Tem 3 000 francos. Os olhos sao lavados com agua quente e logo ele pode ver melhor. Eu lhe explico meu plano para a evasao, ele acha bom, mas diz que, para surpreender os vigilantes, e preciso sair em dois, se possivel em tres. A gente poderia desmontar as pernas da cama e, cada um com uma perna de ferro na mao, cair em cima dos guardas. Na sua opiniao, mesmo que tenhamos um mosquetao na mao, eles nao acreditarao que vamos atirar e podem chamar os guardas de servico no outro pavilhao, de onde Julot escapou e que fica a menos de 20 metros.

3 PRIMEIRA EVASAO

A EVASAO DO HOSPITAL

Hoje a noite discuti com Dega e Fernandez. Dega diz que nao confia no plano, que paga um bom dinheiro, se for preciso, para sair da cadeia. Pede para eu escrever a Sierra a respeito dessa possibilidade. No mesmo dia, Chatal traz o bilhete e a resposta: “Nao pague nada a ninguem para sair. Sao ordens que vem da Franca, e ninguem, nem o diretor da penitenciaria, pode nos soltar. Se voces estao desesperados no hospital, tentem sair um dia depois que o navio chamado Mana zarpar para as ilhas”.

Vamos ficar oito dias nas celas, antes de ir para as ilhas, e talvez para fugir seja melhor do que da enfermaria onde nos colocaram, no hospital. No mesmo bilhete, Sierra diz ainda que, se eu concordar, vai mandar um condenado liberto falar comigo, para deixar o barco atras do hospital. E um sujeito de Toulon, de nome Jesus;

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