carregado, mas eles nao arredam pe. Estao pensando que um outro tem meu canudo, nao sabem quem e e ficam na minha pista para ver em que momento o canudo voltara as minhas maos.

Olho para Galgani e vejo que esta aterrorizado, verdadeiramente aflito. Eu lhe digo:

– Qual e o lugar do patio que eles frequentam?

Ele me responde:

– Perto da cozinha e da lavanderia.

– Bem, fique ai, eu vou. Nao, venha comigo tambem.

Vou com ele para o lado dos cabras. Tiro o bisturi de meu bone e o seguro com a lamina por dentro de minha manga direita e o cabo em minha mao. Efetivamente, chegando ao lugar, eu os vejo. Sao quatro: tres arabes e um corso, um chamado Girando. Compreendo tudo de um so golpe: foi o corso quem, deixado de lado pelos homens do submundo, soprou a historia para os cabras. Ele deve saber que Galgani e o cunhado de Pascal Matra e que nao e possivel que nao tenha o canudo.

– Entao, Mokrane, vai levando?

– Sim, Papillon. E voce, vai levando?

– Nao, o negocio vai mal. Vim ver voces para dizer que Galgani e meu amigo. O que acontecer a ele, o primeiro a pagar e voce, Girando; depois, os outros. Entendam como quiserem.

Mokrane se levanta. E do mesmo tamanho que eu, 1 metro e 74 mais ou menos, e tambem e forte. A provocacao desagrada-o e ele ja vai fazer um gesto para comecar a luta quando, rapidamente, tiro o bisturi reluzente e novinho em folha e, com ele na mao, digo:

– De um passo e morre que nem cachorro.

Desorientado por me ver armado num lugar onde a gente esta sendo constantemente revistado, impressionado pela minha atitude e pelo comprimento da arma, ele diz:

– Eu me levantei para discutir, nao para brigar.

Sei que nao e verdade, mas e de meu interesse que ele nao saia humilhado na frente de seus amigos. Ofereco uma saida elegante.

– Bem, ja que voce se levantou para discutir…

– Nao sabia que Galgani era seu amigo. Pensava que era um otario e voce deve compreender, Papillon, que, se a gente esta depenado, o jeito e achar uma gaita para fugir daqui.

– Va la, isso e normal. Voce tem o direito, Mokrane, de se defender. So que ja sabe que deste lado nao da pe. Va se virar em outra banda.

Ele me estende a mao e eu aceito. Ufa! Livrei-me de uma boa, porque, se matasse o cara, nao viajava amanha. Um pouco mais tarde, percebi que tinha cometido um erro. Galgani volta comigo. Eu lhe digo:

– Nao fale a ninguem sobre este incidente. Nao quero ouvir bronca do tio Dega.

Procuro convencer Galgani a aceitar o canudo e ele me diz: “Amanha, antes da partida”. Mas, no dia seguinte, ele deu sumico tal, que embarquei para o degredo com dois canudos no rabo

Nesta noite, nesta cela onde somos uns onze homens, ninguem fala. E que todos pensam que e o ultimo dia passado sobre a terra francesa. Cada um de nos fica um tanto dominado pela saudade de deixar a Franca para sempre, tendo por destino uma terra desconhecida, onde vamos viver num regime desconhecido.

Dega nao fala. Esta sentado ao meu lado, junto da porta gradeada que da para o corredor e por onde chega um pouco mais de ar do que em outros lugares. Eu me sinto completamente desorientado. Temos informacoes tao desencontradas sobre o que nos aguarda, que nao sei se devo estar contente, triste ou desesperado.

Os tipos que me cercam nesta cela sao todos do submundo. So nao e do submundo o pequeno corso, que nasceu no degredo. Todos estes homens se encontram num estado amorfo. A gravidade e a importancia do momento tornaram-nos quase mudos. A fumaca dos cigarros percorre a cela como uma nuvem, levada pela corrente de ar do corredor, e, se a gente nao quiser irritar os olhos, o jeito e se sentar mais baixo do que as nuvens de fumaca. Ninguem dorme, com excecao de Andre Baillard, o que se justifica, pois ja havia perdido a vida. Para ele, o que vier nao deixara de ser um paraiso inesperado.

O filme de minha vida se desenrola rapidamente a minha frente: minha infancia numa familia cheia de amor, de educacao, de boas maneiras e de nobreza; as flores do campo, o murmurio dos riachos, o gosto das nozes, dos pessegos e das ameixas, que o nosso pomar nos oferecia copiosamente; o perfume de mimosa que, a toda primavera, florescia diante de nossa porta; o exterior de nossa casa e o interior, com as atitudes da minha gente. Tudo isto desfila rapidamente diante dos meus olhos. Este filme sonoro em que ouco a voz da minha pobre mae, que tanto me amou, e, depois, a do meu pai, sempre cheia de ternura e caricia, e os latidos de Clara, a cadela de caca de papai, que me chama do jardim para brincar, as meninas e os meninos de minha infancia, companheiros de folguedo dos melhores momentos de minha vida; este filme, ao qual assisto sem querer, esta projecao de uma lanterna magica iluminada contra minha vontade pelo meu subconsciente, enche de doce emocao esta noite de expectativa para o salto em direcao ao grande desconhecido do futuro.

E hora de fazer o balanco. Vejamos: tenho 26 anos, estou com otima saude, tenho na barriga 5 600 francos, que sao meus, e 25 000 francos de Galgani. Dega, ao meu lado, tem 10 000. Acho que posso contar com 40 000 francos, porque, se Galgani e incapaz de defender esta bolada aqui, ainda menos capaz sera a bordo do navio e na Guiana. Ele sabe disso, alias, e foi por isso que nao veio buscar seu canudo. Logo, posso contar com este dinheiro, levando, esta claro, Galgani comigo: e preciso que ele tire vantagem deste dinheiro, que e dele e nao meu. Vou emprega-lo para o bem dele, mas tambem saio ganhando. Quarenta mil francos e um dinheirao e, portanto, vou poder comprar facilmente cumplices, forcados cumprindo pena, libertos e vigilantes.

O balanco e positivo. Assim que chegar, devo fugir em companhia de Dega e Galgani, e so isso que importa. Apalpo o bisturi, satisfeito por sentir o frio de seu cabo de aco. Ter comigo uma arma tao temivel me da seguranca. Ja vi sua utilidade no incidente com os arabes. Por volta das 3 horas da manha, reclusos alinham a frente da guarda da cela onze sacos de viagem de tecido grosso, cheios de arrebentar, cada um com uma grande etiqueta. Posso ver um que pende para o interior da grade. Leio: C… Pierre, 30 anos, 1,73 m, tamanho 42, sapatos 41, matricula X… Este Pierre C… e Pierrot le Fou, um bordeles condenado em Paris, por crime de homicidio, a vinte anos de trabalhos forcados.

E um homem do nosso meio, bom rapaz, direito e correto, eu o conheco bem. Esta ficha me mostra como e minuciosa e bem organizada a administracao que dirige a prisao de forcados. E melhor que a da caserna, onde fazem uma prova sumaria das roupas. Aqui, tudo e registrado e cada um recebera, portanto, roupas sob medida. Por uma abertura na boca do saco, vejo que a roupa e branca com listras verticais de cor vermelha. Com este traje, ninguem passa despercebido.

Faco forca para que meu cerebro avive as imagens dos jurados, do promotor, etc. Ele se recusa categoricamente a me obedecer e nao consigo obter senao palidas imagens. Compreendo que, para viver intensamente, como vivi, as cenas da Conciergerie ou de Beaulieu, e preciso estar so, completamente so. Sinto um alivio ao constatar isso e compreendo que a vida coletiva, que me aguarda, provocara outras necessidades, outras reacoes, outros projetos.

Pierrot le Fou se aproxima da grade e me diz:

– Como vai, Papi?

– Bem. E voce?

– Ora, bem, sempre sonhei viajar para a America, mas, como sou jogador, nunca pude fazer economia para comprar a passagem. Os tiras acharam de me oferecer esta viagem gratuita. Legal, nao reclamo, e ou nao e, Papi?

Ele fala com naturalidade, nao ha nenhuma fanfarronada nas suas palavras. A gente sente que ele esta muito seguro de si:

– Esta viagem gratuita oferecida pelos tiras para ir a America tem mesmo suas vantagens. Prefiro ir ao degredo do que apanhar quinze anos de reclusao na Franca.

– Falta saber o resultado final, Pierrot. Nao acha? Ficar biruta numa cela ou morrer de miseria fisiologica num calabouco de uma reclusao qualquer na Franca e pior ainda do que se apagar com lepra ou febre amarela. E a minha opiniao.

– Tambem e a minha.

– Olhe, Pierrot, esta ficha e sua.

Ele se inclina, olha muito atentamente para ler e fala devagar:

– Estou com pressa de botar esta roupa, estou com vontade de abrir o saco e me vestir, ninguem vai dizer nada. Afinal de contas, estes trocos sao para mim.

– Tenha calma, espere a hora. Nao e o momento de arranjar trapalhadas, Pierrot. Precisamos de tranquilidade.

Ele compreende e se afasta da grade.

Louis Dega me olha e diz:

– Garotao, e a ultima noite. Amanha, a gente se afastara de nosso belo pais.

– Nosso pais tao belo nao tem uma bela justica, Dega. Talvez venhamos a conhecer outros paises, que nao sejam bonitos como o nosso, porem que tenham uma maneira mais humana de tratar os que erraram.

Nao acreditava muito no que dizia, mas o futuro me confirmaria que tinha razao. De novo, o silencio.

PARTIDA PARA O DEGREDO

As 6 horas, rebulico. Reclusos vem nos dar cafe, depois chegam quatro vigilantes. Hoje estao de branco, o revolver sempre na ilharga. Os botoes de suas tunicas impecavelmente brancas sao dourados. Um deles tem tres galoes dourados em V na manga esquerda, nada nos ombros.

– Deportados, voces vao sair dois a dois para o corredor. Cada um procurara o saco que lhe corresponde, tem o nome de voces na etiqueta. Peguem o saco e se coloquem de costas para a parede do corredor, o saco na frente de voces.

Sao precisos vinte minutos para que todos nos alinhemos com o saco a nossa frente.

– Tirem a roupa, juntem os trocos de voces, facam uma trouxa com a camisa e amarrem com as mangas… muito bem. Voce ai, junte as trouxas e bote tudo na cela… Vistam-se, botem uma cueca, uma camisa de meia, uma calca listrada, um blusao destes, sapatos e meias… Todos ja estao vestidos?

– Sim, senhor vigilante.

– Bem. Guardem a blusa de la fora do saco, para o caso de chuva e para se protegerem do frio. Sacos em cima do ombro esquerdo! Em fila, dois a dois, sigam- me.

O agaloado na frente, dois dos lados, o quarto vigilante atras, nossa pequena coluna se dirige para o patio. Em menos de duas horas, oitocentos forcados sao alinhados. Sao chamados quarenta homens, entre os quais estou eu com Louis Dega e com os tres fugitivos recambiados: Julot, Galgani e Santini. Estes quarenta

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