quem.
Agora, ja sao onze dias que estamos em Saint-Martin-de-Re. A fortaleza esta superlotada. Dia e noite, as sentinelas dao guarda no caminho de ronda.
Uma briga explodiu no banheiro, entre dois irmaos. Brigaram como caes e um deles e colocado dentro de nossa cela. Chama-se Andre Baillard. Ele me diz que nao pode ser punido, porque a culpa e da administracao: os guardas tem ordem de nao deixar que os dois irmaos se encontrem, sob pretexto algum. Quando a gente fica sabendo do caso deles, a coisa se esclarece.
Andre tinha assassinado uma mulher que vivia de rendas e o irmao dele, Emile, escondia o dinheiro roubado. Emile caiu por causa de um roubo e pegou tres anos. Um dia, no calabouco com outros punidos, furioso contra seu irmao, que nao lhe mandava dinheiro para comprar cigarros, soltou a lingua e disse que Andre ia ver: porque foi Andre, explicou ele, quem matou a velha, ao passo que ele, Emile, escondeu o dinheiro. Tambem, quando saisse, nao lhe daria nada. Um preso se apressou em ir contar o que ouvira ao diretor da prisao. A coisa nao ficou nisso. Andre e detido e os dois irmaos sao condenados a morte. No quarteirao dos condenados a morte, na Sante, os dois tem celas vizinhas. Cada um deles apresenta um recurso de graca. O de Emile e aceito no 43.° dia, mas o de Andre e recusado. Entretanto, por medida de humanidade para com Andre, Emile e mantido no quarteirao dos condenados a morte e os dois irmaos fazem, todos os dias, seu passeio, um em seguida ao outro, com as correntes nos pes.
No 46.° dia, a porta de Andre vai ser aberta as 4 horas e meia. Ja estao todos ali: o diretor, o escrivao, o promotor que pediu a cabeca dele. E a execucao. Mas, no momento em que o diretor se adianta para falar, seu advogado chega correndo, seguido de uma outra pessoa, que entrega um papel ao procurador. Todo mundo se retira para o corredor. A garganta de Andre fica tao apertada, que ele nao consegue engolir a saliva. Nao e possivel, nunca, interromper uma execucao encaminhada. Mas e o que acontece. Foi so no dia seguinte, depois de horas de angustia e de interrogacao, que ele soube por seu advogado que, na vespera de sua execucao, o Presidente Doumer foi assassinado por Gorguloff. Mas Doumer nao morreu na hora. Toda a noite, o advogado ficou de guarda diante da clinica, apos ter informado a Guarda dos Selos que, se o presidente morresse antes da hora da execucao (das 4 horas e meia as 5), ele solicitaria o adiamento da execucao, por vacancia do cargo de chefe do Executivo. Doumer morreu as 4 horas e 2 minutos. Foi o tempo de prevenir a Chancelaria, tomar um taxi seguido pelo portador da ordem de suspensao e chegar em tres minutos, para impedir que se abrisse a porta da cela de Andre. A pena dos dois irmaos foi comutada para prisao perpetua com trabalhos forcados. De fato, no dia da eleicao do novo presidente, o advogado foi a Versalhes e, assim que Albert Lebrun foi eleito, o advogado lhe apresentou seu pedido de graca. Jamais um presidente recusou o primeiro pedido de graca que lhe solicitam: “Lebrun assinou”, conclui Andre, “e ca estou, meu chapa, vivinho e bem arranjado, a caminho da Guiana”. Olho para este salvado da guilhotina e digo para mim mesmo que tudo o que sofri nao pode ser comparado ao calvario que ele sofreu.
No entanto, nunca fiz amizade com o cara. Saber que matou uma pobre velhinha para roubar me da nojo. Ele, alias, tera sempre sorte. Mais tarde, na Ilha de Saint-Joseph, assassinara seu irmao. O fato foi visto por varios forcados. Emile pescava com linha, em pe sobre um rochedo, so pensando em sua pescaria. O ruido das ondas, muito forte, amortecia qualquer outro ruido. Andre se aproximou do irmao por tras, com um grosso bambu de 3 metros de comprimento na mao, e, com um unico empurrao nas costas, fez que ele perdesse o equilibrio. O lugar estava infestado de tubaroes e Emile nao demorou em ser o prato do dia deles. Ausente na chamada da noite, foi dado como desaparecido durante uma tentativa de evasao. Nao se falou mais no assunto. Somente quatro ou cinco forcados, que empilhavam cocos no alto da ilha, assistiram a cena. Esta claro, todo mundo ficou sabendo, com excecao dos guardas. Andre nunca foi incomodado.
Foi desinternado por “boa conduta” e, em Saint-Laurent-du-Maroni, gozava de um regime de favor. Tinha uma pequena cela so para ele. Um dia, tendo um caso com outro forcado, convidou este, perversamente, para entrar em sua cela e o matou com uma facada no coracao. Reconhecido que agiu em legitima defesa, foi absolvido. Por ocasiao do termino do degredo, sempre por motivo da sua “boa conduta”, foi agraciado.
Saint-Martin-de-Re esta repleta de prisioneiros. Duas categorias bem diferentes: oitocentos ou mil forcados e novecentos desterrados. Para ser forcado e preciso ter feito alguma coisa grave ou, no minimo, ter sido acusado de um crime serio. A pena mais fraca e sete anos de trabalhos forcados, o restante indo, por escalas, ate a prisao perpetua. Com os desterrados, o caso e diferente. Tres a sete condenacoes e um homem pode ser desterrado. E verdade que sao todos ladroes incorrigiveis e se compreende que a sociedade tem o dever de se defender. No entanto, e vergonhoso que um povo civilizado tenha a pena acessoria do desterro. Ha pequenos gatunos, desastrados, ja que sao presos com frequencia, que sao desterrados – o que, no meu tempo, dava no mesmo que ser condenado a prisao perpetua -, e, em toda a sua vida, nao roubaram nem 10 000 francos. Nisso esta o maior absurdo da civilizacao francesa. Um povo nao tem o direito de se vingar, nem de eliminar de modo tao sumario as pessoas que dao aborrecimentos a sociedade. Essas pessoas merecem mais ser curadas do que punidas de modo tao desumano.
Ha dezessete dias que estamos em Saint-Martin-de-Re. Ja sabemos o nome do barco que nos levara ao degredo, e o
– Todos voces, oucam atentamente. A partir deste instante, passam para a responsabilidade das autoridades do Ministerio da Justica, representando a Administracao Penitenciaria da Guiana Francesa, cujo centro administrativo e a cidade de Caiena. Senhor Comandante Barrot, eu lhe entrego os 816 condenados aqui presentes, constantes desta lista. Peco-lhe verificar se estao todos presentes.
Imediatamente comeca a chamada: “Fulano, presente; sicrano, etc.” Isso dura duas horas e tudo esta em ordem. A seguir, a gente assiste as trocas de assinaturas entre as duas administracoes, sobre uma mesinha trazida para o ato.
O Comandante Barrot, que possui tantos galoes quanto o coronel, mas de cor dourada e nao prateada, como na policia, pega, por sua vez, o alto-falante:
– Deportados, daqui por diante e a palavra pela qual voces serao sempre designados: deportado fulano ou deportado matricula tal, conforme ela lhes for atribuida. Desde agora, encontram-se sob as leis especiais do degredo de forcados, seus regulamentos, seus tribunais internos, que adotarao, quando preciso, as decisoes necessarias a respeito de voces. Esses tribunais autonomos podem condena-los, pelos diferentes delitos cometidos no degredo, desde a simples prisao ate a pena de morte. Esta claro, as penas disciplinares, prisao e reclusao, sao efetuadas nos diferentes locais que pertencem a administracao. Os policiais, que voces veem a sua frente, se chamam vigilantes. Quando se dirigirem a eles, voces dirao: “Senhor vigilante” ou “Senhor guarda”. Apos a sopa, cada um de voces recebera um saco de viagem com as roupas para o degredo. Tudo esta previsto, nao deverao ter outras roupas alem destas ai. Amanha embarcarao no
A cerimonia esta terminada.
– Entao, Dega, que e que acha disso?
– Papillon, meu velho, vejo que eu tinha razao quando lhe dizia que o maior perigo para a gente sao os outros forcados. Isso que ele disse: “Esperem a chegada ao degredo para acertar suas diferencas” – diz tudo. Como deve haver assassinatos por ai!
– Nao se preocupe com isso, va por mim.
Procuro Francis la Passe e lhe falo:
– Seu irmao ainda e enfermeiro?
– Sim, ele nao e um forcado, e um desterrado.
– Entre em contato com ele o mais depressa possivel, peca para lhe dar um bisturi. Se ele quiser que a gente pague, voce me diz quanto e, eu pago o que ele pedir.
Duas horas depois, eu estava de posse de um bisturi com um cabo de aco muito forte. Seu unico defeito era ser um pouco grande, mas era uma arma de meter medo.
Sentei-me muito perto das privadas do centro do patio e mandei procurar Galgani, para lhe entregar seu canudo, mas deve ser dificil encontrar o homem nessa barafunda movimentada que e o imenso patio, abarrotado com oitocentos homens. Nem Julot, nem Guittou, nem Suzini foram vistos desde a nossa chegada.
A vantagem da vida em comum e que a gente vive, fala, pertence a uma sociedade, se e que isso pode ser chamado de sociedade. Ha tanta coisa para falar, ouvir e fazer, que nao se tem mais tempo para pensar. Ao constatar o quanto o passado vai-se apagando e passa a segundo plano com relacao a vida do dia-a-dia, penso que, chegando ao degredo, a gente deve quase esquecer quem foi, por que foi parar ali e de que maneira, para so se ocupar com uma coisa: como cair fora. Eu me enganava, porque a coisa absorvente e mais importante e sobretudo se conservar vivo. Onde estao os tiras, os jurados, as sessoes do tribunal, os magistrados, minha mulher, meu pai, meus amigos? Estao aqui, bem vivos, cada um com seu lugar no meu coracao, mas a gente diria que – por causa da febre da partida, do grande salto no desconhecido, destas novas amizades e destes diferentes conhecimentos – eles nao tem mais a importancia de antes. Mas isso nao e mais do que uma simples impressao. Quando eu quiser, no momento em que meu cerebro quiser abrir a gaveta que corresponde a cada um, eles estarao todos de novo presentes.
Ai vem Galgani, esta sendo trazido para junto de mim porque, mesmo com seus oculos de grossas lentes, quase nao enxerga. Parece melhor de saude. Ele se aproxima de mim e, sem abrir a boca, me aperta a mao. Eu lhe digo:
– Gostaria de lhe devolver seu canudo. Voce agora esta bem, pode carregar e guardar o canudo. E uma responsabilidade grande demais para mim durante a viagem e nao se sabe se a gente vai conseguir ficar um perto do outro e tambem se, no degredo, vamos nos ver. E melhor, entao, que voce leve o canudo de volta.
Galgani me olha com um ar infeliz.
– Vamos a privada, que lhe dou seu canudo.
– Nao quero isso, guarde para voce, dou de presente, e seu.
– Que e que ha?
– Nao quero ser assassinado por causa de meu canudo. Prefiro viver sem dinheiro a esticar a canela por causa dele. Dou para voce porque, no final de contas, nao ha razao para que voce arrisque a vida para guardar minha gaita. Pelo menos, se voce arrisca, tira alguma vantagem.
– Esta com medo, Galgani. Alguem ameacou voce? Tem gente desconfiando de que voce anda carregado?
– Sim, sou constantemente acompanhado por tres arabes. E por isso que nunca vim ve-lo, para que eles nao desconfiem de que estamos ligados. Toda vez que vou a privada, seja de noite ou de dia, um dos tres cabras vem se meter junto de mim. Como quem nao quer nada, ja mostrei a eles, as claras, que nao estou