faze-la passar, a pele do peito, parte da do pescoco e toda a das faces se despregam e vem coladas a malha. Tambem ficou queimado o seu unico olho; esta cego. Por fim, levanta-se, hediondo, sanguinolento, em carne viva, e Julot aproveita para lhe dar um tremendo pontape nos testiculos. O gigante desmorona, poe-se a vomitar e a babar. Ganhou o que merecia. Quanto a nos, nao perdemos nada por esperar.

Os dois outros vigilantes que assistiram a cena nao tem peito bastante para nos atacar. Tocam o alarma para chamar reforcos. Chegam guardas por todos os lados e as porretadas caem sobre nos como chuva de pedras. Tenho a sorte de perder logo a consciencia, o que nao me deixa sentir os golpes.

Quando acordo, estou no segundo subsolo, completamente pelado, numa cafua inundada de agua. Recobro lentamente os sentidos. Minha mao percorre meu corpo dolorido. Tenho pelo menos doze ou quinze galos na cabeca. Que horas sao? Nao sei. Aqui nao ha nem dia nem noite, nao ha luz nenhuma. Ouco batidas contra o muro, vindas de longe.

Pa, pa, pa… Esses golpes sao a campainha do “telefone”. Tenho de bater duas pancadas na parede, se quiser receber a comunicacao. Mas bater com que? Na escuridao, nao vejo nada que me possa servir. Com os punhos e impossivel, os golpes nao repercutiriam bastante. Aproximo-me do lado onde presumo que se encontre a porta, porque la esta um pouco menos escuro. Dou de cara numas grades que eu nao havia visto. As apalpadelas, percebo que a cafua esta fechada por uma porta distante de mim mais de 1 metro, porta essa que a grade em que estou encostado me impede de atingir. Assim, quando alguem entra na cela de um preso perigoso, esta livre de ser tocado por ele, que se encontra como numa gaiola. Pode-se entao falar com o prisioneiro, molha-lo, atirar-lhe comida ou insulta-lo sem risco. Mas a vantagem e que nao se pode bater nele sem correr perigo, pois para isso seria preciso abrir a grade.

As batidas na parede se repetem de vez em quando. Quem sera que me quer falar? Esse camarada merece uma resposta, pois ele corre risco se for descoberto. Andando pela cela, quase que quebro a cabeca tropecando numa coisa dura e redonda. E uma colher de pau. Lanco mao dela e me preparo para responder. Espero, com a orelha encostada a parede. Pa, pa, pa, pa, pa-stop, pa, pa. Eu respondo: pa, pa. Estes dois golpes querem dizer aquele que esta chamando: pode ir, peguei a comunicacao. Os golpes comecam: pa, pa, pa… as letras do alfabeto desfilam rapidamente… a b c d e f g h i j k l m n o p, stop. Ele para na letra p. Dou um golpe com forca: pa. Assim, ele sabe que anotei a letra p. Depois vem um a, um p, um i, etc. Ele me diz: “Papi, como vai? Voce esta muito machucado? Eu estou com um braco quebrado”. E Julot.

Telefonamos durante mais de duas horas, sem nos preocuparmos que nos descubram. Ficamos alucinados pela vontade de trocar frases. Digo a ele que nada tenho quebrado, que minha cabeca esta cheia de galos, mas que nao tenho ferimentos.

Ele me viu sendo arrastado, puxado por um pe, e me diz que em cada degrau minha cabeca batia, caindo do precedente. Ele nao chegou a perder os sentidos. Acredita que Tribouillard ficou gravemente queimado, que, em virtude da la, os ferimentos sao profundos e ele vai sofrer algum tempo.

Tres golpes muito rapidos e repetidos me avisam que ha perigo. Paro de bater. De fato, dentro de alguns instantes, a porta se abre e alguem grita:

– No fundo da cela, seu bastardo. Em posicao de sentido! – e o novo vigilante quem fala. – Eu me chamo Batton (Porrete); e o meu proprio nome. Voce ve que e o nome certo.

Com uma grande lanterna da marinha, ele ilumina o calabouco e o meu corpo nu.

– Tome la roupa para vestir. Nao se mexa dai. Aqui tem pao e agua. Nao coma tudo de uma vez, porque voce nao vai receber mais nada antes de 24 horas. (*)

(*) Quatrocentos e cinquenta gramas de pao e 1 litro de agua.

Ele berra como um selvagem, depois levanta a lanterna a altura da minha cara. Vejo que sorri sem maldade. Coloca um dedo sobre a boca e indica as roupas que deixou. No corredor deve estar outro guarda e ele me quis fazer compreender que nao e um inimigo.

De fato, na bola de pao encontro um pedaco de carne cozida e no bolso da calca – que sorte! – um maco de cigarros e um isqueiro rustico. Aqui, tais presentes valem um milhao. Duas camisas em vez de uma e uma ceroula de la que me desce ate os tornozelos. Sempre hei de me lembrar desse Batton. Tudo isso significa que me esta recompensando por haver eliminado Tribouillard. Antes do incidente, ele era apenas ajudante de vigilante. Agora, gracas a mim, ele passou a chefe titular. Em suma, ele deve a mim a sua promocao e esta demonstrando a sua gratidao.

Como e necessaria uma paciencia de pele-vermelha para localizar a proveniencia dos golpes telefonicos e so o vigilante-chefe pode fazer isso, pois os outros guardas sao muito preguicosos, eu e Julot temos o campo livre, nada temendo do lado de Batton. O dia todo trocamos telefonemas. Por intermedio dele fico sabendo que esta proxima a partida para a colonia penal: sera dentro de tres ou quatro meses.

Dois dias depois, somos tirados da solitaria e, cada um enquadrado por dois guardas, levados ao escritorio do diretor. Na frente da entrada acham-se tres pessoas sentadas atras da mesa. E uma especie de tribunal. O diretor faz o papel de presidente; o subdiretor e o inspetor-chefe, de assessores.

– Ah, ah, seus malandros! Estao ai? Que tem a dizer?

Julot esta muito palido, os olhos inchados, certamente com febre. Ha tres dias com o braco quebrado, deve sofrer horrivelmente.

Com muita calma, Julot responde:

– Estou com um braco quebrado.

– Mas foi voce quem quis que lhe quebrassem o braco. Isso lhe ensinara a nao atacar as pessoas. Voce sera examinado pelo medico quando ele vier. Espero que demore uma semana. Essa espera sera salutar, pois a dor servira para lhe ensinar alguma coisa. Voce nao pensa que vou mandar vir um medico especialmente para um individuo da sua especie? Aguarde que o medico da Central tenha tempo de vir e ele tratara de voce. Isso nao impede que eu condene voces dois a ficarem na cafua ate nova ordem.

Julot olha para mim, bem nos olhos. “Esse senhor bem vestido dispoe bem facilmente da vida de seres humanos”, e o que parece querer dizer.

Viro a cabeca de novo para o diretor e olho para ele. Ele pensa que lhe quero falar, e me diz:

– E voce, a decisao nao lhe agrada? Que tem a reclamar?

Eu respondo:

– Nada, senhor diretor. Apenas sinto a necessidade de lhe cuspir na cara, mas nao o faco de medo de sujar minha saliva.

Fica tao espantado, que enrubesce e nao compreende imediatamente. Mas o inspetor-chefe logo reage. Grita aos vigilantes:

– Agarrem-no e tratem bem dele! Quero ve-lo dentro de uma hora pedindo perdao de rastos. Vamos ensina-lo! Vou faze-lo limpar meus sapatos com a lingua, por cima e por baixo. Nao o tratem com bons modos, isso fica a cargo de voces.

Dois guardas me torcem o braco direito, dois outros o esquerdo. Estou achatado no chao, as maos levantadas a altura das omoplatas. Eles me poem as algemas, com umas argolas especiais que me ligam o indicador esquerdo com o polegar direito. O inspetor-chefe me levanta do chao como a um animal, puxando-me pelos cabelos.

Nem e preciso contar tudo o que me fizeram. Basta dizer que fiquei com as maos algemadas atras das costas durante onze dias. Devo a vida ao guarda Batton. Cada dia, ele jogava no meu calabouco a bola de pao regulamentar, mas, privado das minhas maos, eu nao podia comer. Mesmo empurrando o pao com a cabeca contra a grade, eu nao conseguia tirar uma migalha com os dentes. Mas Batton jogava tambem, em quantidade suficiente para me manter vivo, pedacos de pao da grossura de um bocado. Com o pe, eu fazia montinhos, depois deitava-me de brucos e comia como se fosse um cachorro. Mastigava bem cada pedaco, para nao perder nada.

No 12.° dia, quando me tiraram as algemas, o aco havia penetrado na pele e o ferro estava, em alguns lugares, recoberto de carne tumefata. O guarda-chefe ficou com medo, ainda mais porque desmaiei de dor. Depois que me fizeram recuperar os sentidos, levaram-me a enfermaria, onde me limparam com agua oxigenada. O enfermeiro exigiu que me dessem urna injecao antitetanica. Meus bracos estavam anquilosados e nao podiam voltar a posicao normal. Depois de mais de meia hora de friccao com oleo canforado, consegui baixa-los ao longo do meu corpo.

Voltei ao calabouco e o vigilante-chefe, vendo as onze bolas de pao, ainda disse:

– Voce vai tirar a barriga da miseria! E gozado, voce nao esta tao magro, depois de onze dias de jejum…

– Bebi muita agua, chefe.

– Ah! e por isso, compreendo. Agora coma bastante para se refazer.

E foi embora.

Pobre imbecil! Ele me diz isso porque acredita que nada comi durante onze dias e que, se eu me encher demais de uma so vez, vou morrer de indigestao. Desse susto voce nao morre. A noite, Batton me passa tabaco e papel. Fumo, fumo, soprando a fumaca pelo cano de aquecimento, que naturalmente nunca funciona. Desta vez, pelo menos, serviu para alguma coisa.

Mais tarde chamo Julot. Ele pensa que nada comi durante onze dias e me aconselha a ir devagar. Tenho medo de lhe contar a verdade, temendo que algum desgracado possa decifrar o telegrama na transmissao. Mot esta com o braco engessado, o seu moral e bom e ele se congratula pela minha resistencia.

Segundo ele, a partida do comboio esta proxima. O enfermeiro lhe disse que ja chegaram as ampolas de vacina destinadas aos prisioneiros antes do embarque. Geralmente, elas chegam um mes antes da partida. Julot e bastante imprudente, porque me pergunta tambem se eu salvei meu canudo.

Sim, eu salvei, mas o que fiz para guardar essa fortuna nem posso descrever. Estou com feridas crueis no anus.

Tres semanas mais tarde, tiram-nos do calabouco. Que esta acontecendo? Fazem-nos passar por uma ducha sensacional, com sabao e agua quente. Sinto-me reviver. Julot ri como uma crianca e Pierrot le Fou irradia a alegria de viver.

Como estamos saindo da solitaria, nada sabemos do que se passa. O barbeiro nao quis responder a minha rapida pergunta, murmurada em voz baixa:

– Que se passa?

Um desconhecido de mau aspecto me diz:

– Creio que estamos anistiados do calabouco. Eles talvez estejam com medo de um inspetor que vira fazer uma visita. O essencial e que estamos vivos.

Cada um de nos e levado para uma cela normal. Ao meio-dia, na primeira sopa quente depois de 43 dias, encontro um pedaco de madeira, onde esta escrito: “Partida, oito dias. Amanha, vacina”.

Quem e que me enviou isso?

Nunca soube. Certamente um recluso que teve a gentileza de nos avisar, sabendo que, se um de nos recebe a noticia, todos os outros serao avisados. A mensagem nao deve ter chegado as minhas maos por puro acaso.

Logo advirto Julot pelo telefone: “Passe adiante”.

Ouvi telefonemas a noite toda. Mas eu, depois de transmitida a mensagem, nao quis fazer mais nada.

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