Estou muito bem na minha cama. Nao quero aborrecimentos. E nao me agrada voltar ao calabouco. Hoje, menos do que nunca.
2 A CAMINHO DO DEGREDO
De tarde, Batton me passa tres cigarros Gauloise e um pedaco de papel onde leio: “Papillon, sei que voce vai embora levando boa recordacao de mim. Colaboro na vigilancia, mas procuro fazer o menor mal possivel aos presos. Peguei este cargo porque tenho nove filhos e tenho pressa de ser indultado. Vou tentar, sem fazer muito mal, ganhar o meu indulto. Adeus. Boa sorte. O comboio sai amanha de manha”.
Com efeito, no dia seguinte estamos reunidos em grupos de trinta no corredor do quartel disciplinar. Enfermeiros vindos de Caen nos vacinam contra as doencas tropicais. Para cada um, tres vacinas e 2 litros de leite. Dega esta junto comigo, pensativo. Nao respeitamos mais nenhuma ordem de silencio, porque sabemos que nao nos podem botar no calabouco logo depois de vacinados. Batemos papo em voz baixa, juntinho dos guardas, que nao ousam dizer nada, por causa dos enfermeiros da cidade. Dega me diz:
– Sera que eles vao ter bastantes carros de presos para levar a gente de uma so vez?
– Acho que nao.
– Saint-Martin-de-Re e longe e, se levarem sessenta por dia, isso vai durar dez dias, porque, so aqui, ha quase seiscentos.
– O essencial e estar vacinado. Isso quer dizer que estamos na lista e que daqui a pouco estaremos no degredo de forcados. Coragem, Dega, uma outra etapa vai comecar. Conte comigo, como eu conto com voce.
Ele me fita com seus olhos brilhantes de satisfacao, poe sua mao em meu braco e diz:
– Para a vida ou para a morte, Papi.
Quanto ao comboio, foram poucos os incidentes dignos de narracao, exceto que a gente morria asfixiado, cada um no seu pequeno espaco do furgao de presos. Os guardas se recusaram a entreabrir as portas, para que tivessemos um pouco mais de ar. Na chegada em La Rochelle, dois dos nossos companheiros de furgao haviam morrido por asfixia.
Os bobalhoes reunidos no cais, porque Saint-Martin-de-Re e uma ilha e teriamos de tomar um barco para atravessar o braco de mar, assistiram a retirada dos dois pobres-diabos. Sem, por sinal, manifestarem qualquer sentimento em relacao a nos. E, como os policiais deviam entregar-nos a Cidadela, mortos ou vivos, carregaram os cadaveres conosco para o barco.
A travessia nao e longa, mas podemos respirar um bom bocado de ar maritimo. Falo a Dega: “Isto cheira a fuga”. Ele sorri. E Julot, que esta ao lado, nos diz:
– Sim. Isto cheira a fuga. Estou de volta pra la, de onde fugi ha cinco anos. Fui em cana como uma besta, no momento em que ia apagar meu receptador, que me delatou no meu processo, ha dez anos. Procuremos ficar uns ao lado dos outros, porque em Saint-Martin eles nos botam ao acaso, em grupos de dez, em cada cela.
Julot estava enganado. Quando chegamos ali, ele e dois outros sao chamados e colocados a parte. Eram tres evadidos do degredo, recapturados na Franca e mandados para la pela segunda vez.
Nas celas, em grupos de dez, comeca para nos uma vida de expectativa. A gente tem o direito de falar, de fumar, a alimentacao e muito boa. Esse periodo nao e perigoso, a nao ser para o plano. Sem que saibamos por que, somos chamados de repente, desnudados e minuciosamente revistados. Em primeiro lugar, os esconderijos do corpo, ate a planta dos pes, depois as roupas. “Vistam-se!” E voltamos para o lugar de onde viemos.
A cela, o refeitorio, o patio onde passamos longas horas marchando em fila. Um, dois! Um, dois! Um, dois!… Marchamos em grupos de 150 detidos. A cauda do salsichao e comprida, os tamancos ressoam. Silencio absoluto obrigatorio. Depois vem o “Desfazer as fileiras!” Cada um se senta no chao, grupos se formam, por categorias sociais. Em primeiro lugar, os homens do autentico submundo, entre os quais a origem tem pouca importancia: corsos, marselheses, toulousanos, bretoes, parisienses, etc. Tem ate um de Ardeche, sou eu. E devo dizer, em favor de Ardeche, que so ha dois de seus filhos neste comboio de 1 900 homens: um guarda campestre que matou sua mulher e eu. Conclusao: os naturais de Ardeche sao boa gente. Os outros grupos se formam de qualquer maneira, uma vez que ha mais otarios do que malandros a caminho do degredo. Esses dias de expectativa se chamam dias de observacao. E e verdade que somos observados sob todos os angulos.
Numa tarde, eu estou sentado ao sol, quando um homem se aproxima de mim. Usa oculos, e miudo, magro. Tento adivinhar que tipo de gente e; porem, com o nosso uniforme, e dificil.
– Voce que e o Papillon? – pergunta, com um sotaque corso muito forte.
– Sim, sou eu. Quer alguma coisa de mim?
– Venha as privadas – diz ele e se afasta.
– E um prisioneiro corso – fala Dega. – Com certeza, um bandido das montanhas. Que e que ele vai querer com voce?
– Vou saber.
Caminho para as privadas, instaladas no meio do patio, e finjo estar mijando. O homem esta ao meu lado, na mesma posicao. Ele me diz, sem me olhar:
– Sou cunhado de Pascal Matra. Ele me disse, no parlatorio, que, se precisasse de ajuda, procurasse voce, da parte dele.
– Sim, Pascal e meu amigo. Que e que voce quer?
– Nao posso guardar o canudo: estou com diarreia. Nao sei em quem confiar e tenho medo de que seja roubado ou que os guardas o encontrem. Eu lhe imploro, Papillon, fique com o meu canudo alguns dias.
E ele me mostra um canudo muito mais grosso do que o meu. Fico com receio de que esteja armando uma cilada e pedindo isso para saber se carrego um canudo: se disser que nao tenho certeza de poder guardar dois, ele ficara sabendo. Entao, friamente, pergunto:
– Quanto tem ai dentro?
– Vinte e cinco mil francos.
Sem mais nada, pego o canudo, alias muito limpo, e, na frente dele, o introduzo no anus, perguntando a mim mesmo se um homem e capaz de carregar dois tubos ali. Nao sei se pode. Levanto, visto minhas calcas… tudo vai bem, nao me sinto incomodado.
– Meu nome e Ignace Galgani – diz ele, antes de ir embora. – Obrigado, Papillon.
Volto para junto de Dega e lhe conto o caso, a parte.
– Nao e pesado demais?
– Nao.
– Entao, deixa pra la.
Procuramos entrar em contato com os que fugiram, se possivel Julot ou Guittou. Temos sede de informacoes: como e a coisa por la; como a gente e tratado; como fazer para ficar junto com um boa gente, etc. O acaso faz com que encontremos um tipo curioso, um caso a parte. E um corso que nasceu na prisao de forcados. Seu pai era vigilante e vivia com sua mae nas Ilhas da Salvacao. Ele nasceu na Ilha Royale, uma das tres ilhas, sendo as outras a Saint-Joseph e a do Diabo. Que destino! Agora voltava para la, nao como filho de guarda, porem como forcado.
Ele tinha sido presenteado com doze anos de trabalhos forcados por crime de roubo com arrombamento. Rapaz de dezenove anos, um tipo camarada, olhos claros e honestos. Tal como Dega, ve-se logo que ele nao esta por dentro. Tem pouca nocao dos macetes do submundo, mas vai ser util nos fornecendo todas as informacoes possiveis sobre o que esta a nossa frente. Ele nos conta a vida nas ilhas, onde viveu catorze anos. E nos informa, por exemplo, que, nas ilhas, fora criado por um forcado, um famoso durao capturado num caso de duelo a faca em Butte, pelos belos olhos de uma certa Casque d’Or.
Ele nos da conselhos preciosos: e preciso comecar a fuga na Terra Grande, porque das ilhas e impossivel; em seguida, nao ser catalogado como perigoso, porque, com essa anotacao, assim que se desembarca em Saint-Laurent-du-Maroni, porto de chegada, somos internados por um certo prazo ou para toda a vida, conforme o grau da anotacao. As ilhas sao sadias, mas a Terra Grande, conforme tinha contado Dega, e uma imundicie que pouco a pouco vai destruindo o preso por meio de toda especie de doencas, de mortes diversas, assassinatos, etc.
Como Dega, espero nao ser internado nas ilhas. Mas um no se forma em minha garganta: e se fui anotado como perigoso? Com minha prisao perpetua, o caso de Tribouillard e o do diretor, estou frito!
Um dia, corre depressa um boato: nao devemos ir a enfermaria, sob pretexto nenhum, porque os que estao muito fracos ou muito doentes para suportar a viagem sao ali envenenados. So pode ser boato. De fato, um parisiense, Francis la Passe, nos confirma que e conversa fiada. Houve, na verdade, um envenenado, mas o irmao dele, empregado na enfermaria, explicou-nos o que aconteceu.
O cara que morreu, grande especialista em cofres-fortes, tinha, segundo se dizia, arrombado a embaixada da Alemanha, em Genebra ou em Lausanne, durante a guerra, por conta dos servicos secretos franceses. Apanhou ali documentos muito importantes, que passou aos agentes franceses. Em troca dessa operacao, os tiras o libertaram da prisao, onde cumpria uma pena de cinco anos. E, a partir de 1920, com uma ou duas operacoes por ano, vivia tranquilo. Toda vez que ia em cana, fazia uma chantagem com a Segunda Secao, que se apressava em intervir. Mas, desta vez, nao deu certo. Pegou vinte anos e devia partir conosco. Para nao ir no comboio, fingiu estar doente e foi introduzido na enfermaria. Uma pastilha de cianureto – sempre segundo o irmao de Francis la Passe – liquidou o assunto. Os cofres-fortes e a Segunda Secao ja podiam dormir sossegados.
Este patio e cheio de casos, uns verdadeiros, outros falsos. De todo jeito, a gente vai ouvindo, com isso o tempo passa.
Quando vou a privada, no patio ou na cela, e preciso que Dega me acompanhe, por causa dos canudos. Ele fica na minha frente, enquanto faco o servico, e me da cobertura contra olhares muito abelhudos. Um canudo ja e toda uma historia, mas eu estou com dois, porque Galgani esta cada dia mais doente. E ai ha um misterio: o canudo que introduzo por ultimo e sempre o ultimo que sai, enquanto o que foi introduzido antes sai sempre primeiro. Como eles viravam na minha barriga, nao sei, mas era assim.
Ontem, no barbeiro, tentaram assassinar Clousiot, enquanto fazia a barba. Duas facadas perto do coracao. Nao morreu por milagre. Soube do caso por um dos seus amigos. E uma historia curiosa, que contarei um dia. Esse assassinato era um ajuste de contas. O autor da tentativa fracassada morreu seis anos mais tarde, em Caiena, engolindo bicromato de potassio num prato de lentilhas. Morreu com dores pavorosas. O enfermeiro, que ajudou o medico na autopsia, trouxe um pedaco de tripa de uns 10 centimetros. Tinha dezessete buracos. Dois meses mais tarde, seu assassino era encontrado estrangulado na sua cama de doente. Nunca se soube por