Estamos os tres dentro da palhoca, deitados em cima de cobertas novas que Toussaint mandou. Chegaram embrulhadas num papel forte de embalagem. Esticado em cima dessas cobertas, conto a Clousiot e a Maturette os detalhes daquilo que se passou depois da minha chegada na ilha e do negocio concluido com Toussaint. Clousiot fala uma coisa besta, sem refletir:
– A fuga custa entao 6 500 francos. Vou dar a metade, Papillon, isto e, os 3 000 francos que tenho.
– Nao estamos aqui para fazer contas de mascate. Enquanto tiver dinheiro, eu pago. Depois, a gente ve.
Nenhum leproso entra na palhoca. Amanhece, Toussaint chega:
– Bom dia. Podem sair sossegados. Aqui, ninguem vem incomodar. Em cima de um coqueiro, no alto da ilha, tem um sujeito para ver se ha embarcacoes de guardas no rio. Nao se ve nada. Enquanto o trapo branco ficar agitando e porque nao tem nada a vista. Se ele ve alguma coisa, desce para dizer. Podem pegar uns mamoes e comer, se quiserem.
– Toussaint, e a quilha? – digo eu.
– Vamos fazer a quilha com uma tabua da porta da enfermaria. E madeira pesada. Com duas tabuas, podemos fazer a quilha. Ja carregamos o barco ate o alto, aproveitando a noite. Venha ver.
Vamos. E um barco magnifico de 5 metros de comprimento, novo em folha, dois assentos, um deles furado para deixar passar o mastro. E pesado e eu e Maturette custamos para vira-lo. A vela e as cordas sao novas. Do lado, estao pregados umas argolas, para amarrar a carga e o tonel da agua. Comecamos a trabalhar. Ao meio-dia, uma quilha, que se vai alinhando da parte traseira ate a frente, e solidamente fixada com porcas largas e os quatro parafusos que eu tinha.
Em circulo, a volta da gente, os leprosos nos olham trabalhar sem dizer uma palavra. Toussaint diz como se deve fazer e nos obedecemos. Nenhuma chaga existe no rosto de Toussaint, que parece normal; mas, quando ele fala, percebe-se que so um lado do rosto se mexe, o esquerdo. Ele me falou que tambem sofre de lepra seca. Seu peito e seu braco direito estao igualmente paralisados e ele sabe que daqui a pouco a perna direita vai ficar paralisada. O olho direito e fixo como um olho de vidro, enxerga mas nao se mexe. Nao dou aqui o nome de nenhum dos leprosos. Talvez nunca aqueles que os amaram ou conheceram cheguem a saber de que maneira horrivel eles ficaram se decompondo ainda vivos.
Sempre trabalhando, converso com Toussaint. Ninguem mais fala. So uma vez, quando ia buscar algumas dobradicas que eles tinham arrancado de um movel da enfermaria para reforcar o assentamento da quilha, um deles disse:
– Nao pegue nelas ainda, deixe onde estao. Eu me cortei arrancando uma e tem sangue; o sangue ficou, por mais que eu tenha enxugado.
Um leproso derramou um pouco de rum em cima e botou fogo duas vezes.
– Agora – disse o homem -, voce pode usa-las.
Enquanto trabalhamos, Toussaint diz a um leproso:
– Voce, que fugiu muitas vezes, explique bem a Papillon como e que precisa fazer, porque nenhum dos tres tem experiencia.
Imediatamente ele explica:
– Daqui a pouquinho vai anoitecer e vira o refluxo. A mare vazante comeca as 3 horas. Assim que escurecer, la pelas 6 horas, voce tem pela frente uma correnteza muito forte que vai levar voce em menos de tres horas a uns 100 quilometros da embocadura. Quando voce tiver que parar, serao 9 horas. Vai ter que esperar, bem amarrado a uma arvore da floresta, as seis horas da montante, ate as 3 da manha. Nao saia a essa hora, porque a correnteza nao cessa logo. Siga pelo meio do rio, as 4 e meia da manha. Voce tem uma hora e meia antes do amanhecer para fazer 50 quilometros. Essa hora e meia e toda a chance que voce tem. As 6 horas, ao amanhecer, voce precisa entrar no mar. Mesmo que os guardas vejam voce, nao podem persegui-lo, porque chegariam na barra da embocadura justo quando comeca a montante. Eles nao vao poder passar e voce ja tera passado a barra. Desse quilometro de vantagem que voce precisara ter quando eles o enxergarem e que vai depender sua vida. Aqui so ha uma vela, o que e que voce tinha na canoa?
– Uma vela e um cutelo.
– Este barco e pesado, pode aguentar dois cutelos: um a traquete, da ponta do barco a parte de baixo do mastro; o outro enfunado, saindo para fora da ponta da embarcacao, para poder levantar bem a proa. Solte todas as velas, direto em cima das ondas do mar, que esta sempre agitado no estuario. Mande seus amigos se deitarem no fundo do barco, para dar maior estabilidade, e segure firme o leme na mao. Nao amarre a corda que segura a vela na sua perna, enfie-a na argola que existe para isso dentro do barco e prenda-a no seu pulso com uma volta so. Quando notar que a torca do vento esta formando um vagalhao e voce podera cair na agua, com risco de virar, solte tudo e imediatamente vera que seu barco vai readquirir equilibrio. Se acontecer isso, nao pare, deixe a vela esvoacar e va sempre para a frente a todo pano, com o traquete e o cutelo. So em alto-mar voce vai ter tempo de descer a vela pelo pequeno, traze-la a bordo e partir de novo, depois de tornar a coloca-la. Voce conhece a rota?
– Nao. Sei somente que a Venezuela e a Colombia ficam a noroeste.
– E isso, mas cuidado para nao se deixar atirar na costa. A Guiana Holandesa, em frente, devolve os fugitivos; a Guiana Inglesa tambem. Trinidad nao devolve, mas obriga-os a ir embora depois de quinze dias. A Venezuela devolve, depois de obrigar a gente a trabalhar nas estradas por um ano ou dois.
Escuto com os ouvidos bem atentos. Ele diz que foge de tempos em tempos, mas, como e leproso, e mandado de volta imediatamente. Confessa que nunca foi mais longe do que a Guiana Inglesa, Georgetown. So tem lepra visivel nos pes, onde todos os dedos desapareceram. Esta descalco. Toussaint pede para eu repetir todos os conselhos que acabaram de me dar e eu repito sem me enganar. Nessa hora, Jean Sans Peur diz:
– Quanto tempo ele vai levar em alto-mar?
Respondo logo, antes de qualquer outra pessoa:
– Vou fazer tres dias nor-nordeste. Com a deriva, norte-norte e no quarto dia vou tocar para noroeste, que vai dar oeste pleno.
– Otimo – diz o leproso. – Eu, a ultima vez, so fiz dois dias para nordeste; assim, fui cair na Guiana Inglesa. Com tres dias para norte, voce vai passar ao norte de Trinidad ou de Barbados, e de uma vez so voce passara a Venezuela sem perceber; vai dar em cima de Curacau ou na Colombia.
Jean Sans Peur diz:
– Toussaint, por quanto voce vendeu o barco?
– Tres mil – diz Toussaint. – E caro?
– Nao, nao estou falando por causa disso. Para saber, so. Voce pode pagar, Papillon?
– Posso.
– Vai sobrar algum dinheiro para voces?
– Nao, e tudo o que temos, exatamente 3 000, que sao do meu amigo Clousiot.
– Toussaint, dou meu revolver para voce – diz Jean Sans Peur.
– Vou ajudar esses caras. Por quanto voce fica com o revolver?
– Mil francos – diz Toussaint. – Eu tambem quero ajuda-los.
– Obrigado por tudo – diz Maturette a- Jean Sans Peur.
– Obrigado – diz Clousiot.
Eu nessa hora fico com muita vergonha por ter mentido a eles e digo:
– Nao, nao posso aceitar isso de voce, nao ha razao nenhuma.
Ele olha para mim e diz:
– Ha, ha uma razao. Tres mil francos e muito dinheiro e, no entanto, por esse preco, Toussaint perde pelo menos 2 000 porque e um barco excelente que ele da para voces. Nao ha razao para que eu nao faca alguma coisa tambem para voces.
Acontece entao uma coisa emocionante: Chouette coloca no chao um chapeu e os leprosos vao jogando dentro dele notas ou moedas. Aparecem leprosos de todas as partes e todos poem alguma coisa. Fico cheio de vergonha. E, no entanto, nao posso dizer que ainda tenho dinheiro. Que fazer, meu Deus, e uma infamia que estou cometendo contra tanta nobreza: “Por favor, nao facam esse sacrificio!” Um negro do Sudao, completamente mutilado – tem dois cotos no lugar das maos, e nem um dedo -, diz:
– O dinheiro nao serve para a gente viver. Pode aceitar sem se envergonhar. O dinheiro so serve para a gente jogar ou trepar com as leprosas que vem de vez em quando de Albina.
Estas palavras me consolam e me impedem de confessar que tenho mais dinheiro.
Os leprosos cozinharam duzentos ovos. Eles os trazem dentro de uma caixa marcada com uma cruz vermelha. E o caixote que receberam pela manha, com os remedios do dia. Trazem tambem duas tartarugas vivas de pelo menos 30 quilos cada uma, fumo em folhas, duas garrafas cheias de fosforos e de lixas, um saco de pelo menos 50 quilos de arroz, dois sacos de carvao de lenha, um fogareiro, o da enfermaria, e um botijao de querosene. Toda essa miseravel comunidade comove-se com nosso caso e querem todos contribuir para o nosso bom exito. Parece que sao eles que vao fugir. Puxamos a barca para perto do lugar onde chegamos. Contaram o dinheiro do chapeu: 810 francos. Tenho que dar so 1 200 francos a Toussaint. Clousiot me da o seu canudo, eu o abro na frente de todo mundo. Contem uma nota de 1 000 e quatro notas de 500 francos. Dou a Toussaint 1 500 francos, ele me devolve 300 e depois diz:
– Tome, pegue o revolver, dou de presente. Voce jogou tudo por tudo, nao quero que na ultima hora falte uma arma, esta serve. Espero que voce nao va precisar dela.
Nao sei como agradecer, antes de tudo a ele e depois a todos os outros. O enfermeiro preparou uma caixinha com algodao, alcool, aspirina, ataduras, iodo, uma tesoura e esparadrapo. Um leproso traz umas ripas bem aplainadas e finas e duas ataduras Velpeau dentro de uma embalagem nova em folha. Ele as oferece, para que eu troque as ripas de Clousiot.
La pelas 5 horas comeca a chover. Jean Sans Peur diz:
– Voces tem todas as chances. Nao ha perigo de voces serem vistos, podem partir imediatamente e ganhar uma boa meia hora. Assim, voces vao estar mais perto da embocadura para sair as 4 e meia da manha.
– Como e que vou saber a hora? – digo-lhe.
– A mare vai-lhe dizer quando sobe e quando desce.
Colocamos o barco na agua. Nao e como a canoa. Fica para cima da agua mais de 40 centimetros, carregado com todo o material e nos tres. O mastro, com a vela enrolada, esta deitado porque so vamos coloca-lo na saida. Colocamos o leme com seu varao de seguranca e a cana, mais uma almofada de cipos para eu sentar. Com as cobertas, arranjamos um canto no fundo do barco para Clousiot, que nao quis trocar o curativo. Ele esta junto aos meus pes, entre mim e o tonel de agua. Maturette fica no fundo, mais para a frente. Tenho imediatamente uma impressao de seguranca que nunca tive com a canoa.