eles num lugar certo. Jesus os ajudaria a fugir e nos os levariamos. Enfim, eles conhecem voce e sabem que, se voce nao mandou busca-los, e porque era impossivel.
– A proposito, Maturette, como e que voce estava naquela enfermaria especial, no hospital?
– Eu nao sabia que estava internado. Fui ao exame medico porque estava com dor de garganta e tambem para passear; e o medico, quando me viu, disse: “Vejo, pela sua ficha, que voce esta internado nas ilhas. Por que?” – “Eu nao sei, doutor. O que e ‘internado’?” – “Bom, nada. Va para o hospital.” E eu me encontrei hospitalizado, so isso.
– Queria agradar voce – diz Clousiot.
– Nao sei por que motivo o doutor fez isso. Deve estar dizendo: “Meu protegido, com sua garganta de menino de coro, nao era tao besta assim, pois conseguiu fugir”.
Falamos de bobagens. Digo: “Quem sabe, a gente vai-se encontrar de novo com Julot, o ‘homem do martelo’? Deve estar longe, a nao ser que continue escondido na floresta”. Clousiot diz: “Eu, antes de sair, deixei um bilhete debaixo do meu travesseiro:
Navegamos cinco dias sem problemas. De dia, o sol, com sua trajetoria leste-oeste, me serve de bussola. De noite, uso a bussola. No sexto dia, de manha, um sol brilhante nos sauda, o mar acalmou-se de repente, peixes-voadores passam nao muito longe de nos. Estou arrebentado de cansaco. Durante a noite, para me impedir de dormir, Maturette passava no meu rosto um pano molhado de agua do mar mas, mesmo assim, eu pegava no sono. Entao Clousiot me queimava com seu cigarro. Como esta tudo calmo, resolvo dormir. Baixamos a vela e o cutelo, conservamos somente o traquete e eu durmo como uma pedra no fundo do barco, bem protegido contra o sol pela vela que fica estendida por cima de mim. Acordo sacudido por Maturette, que diz:
– E meio-dia ou 1 hora, mas estou acordando voce porque o vento esta esfriando e no horizonte, do lado de onde vem o vento, ficou tudo preto.
Levanto-me e tomo meu lugar. O cutelo, o unico que colocamos, nos faz deslizar sobre o mar sem rugas. Atras de mim, a leste, esta tudo preto, o vento vai esfriando cada vez mais. O traquete e o cutelo sao suficientes para puxar o barco rapidamente. Fiz bem em deixar a vela enrolada no mastro.
– Segurem-se firmes, porque o que vem chegando ai e uma tempestade.
Gotas grandes comecam a cair na gente. A escuridao se aproxima com uma rapidez vertiginosa, em menos de um quarto de hora veio do horizonte ate bem perto de nos, Agora, um vento de violencia nunca vista nos ataca. As ondas, como por encanto, se formam com rapidez incrivel, todas cobertas de espuma; o sol esta completamente aniquilado, chove torrencialmente, nao se enxerga nada e as ondas, batendo contra o barco, lancam fortes jatos de agua em nosso rosto. E tempestade, minha primeira tempestade, com toda a fanfarra da natureza desencadeada, o trovao, os relampagos, a chuva, as ondas, os uivos do vento que ruge em cima de nos, em volta de nos.
O barco, carregado como uma palha, sobe e desce a alturas incriveis e a abismos tao profundos, que a gente tem a impressao de nao poder mais sair deles. No entanto, apesar desses mergulhos fantasticos, o barco torna a subir, vence mais uma crista de onda e passa e torna a passar. Seguro a barra do leme com as duas maos, pensando como enfrentar um vagalhao um pouco mais alto que vem vindo mas, na hora em que aponto o barco para corta-lo, faco-o rapido demais e deixo entrar grande quantidade de agua. O barco todo fica inundado. Deve haver mais de 75 centimetros de agua. Nervosamente, sem querer, fico enviesado diante de uma onda, o que e extremamente perigoso, e o barco fica tao inclinado, prestes a virar, que devolve uma enorme quantidade da agua que tinha entrado.
– Grande! – grita Clousiot. – Voce entende um bocado, Papillon! Voce foi rapido para esvaziar o barco.
– Pois e, voce viu? – digo-lhe.
Se ele soubesse que, pela minha falta de experiencia, quase a gente afundava, virando em alto-mar… Desisto de lutar contra o curso das ondas, nao me preocupo mais com a direcao a seguir, simplesmente mantenho o barco em equilibrio, na medida do possivel. Pego as ondas a tres quartos, desco voluntariamente ao fundo com elas e subo novamente, junto com o proprio mar. Logo me dou conta de que minha descoberta e importante e que assim eu eliminei noventa por cento do perigo. A chuva para, o vento sopra sempre com furia, mas agora posso enxergar bem a frente e atras de mim. Atras esta claro; na frente, preto, e nos estamos no meio desses dois extremos.
La pelas 5 horas, tudo ja passou. O sol brilha de novo em cima de nos, o vento e normal, as ondas menos altas; ico a vela e partimos novamente, satisfeitos. Com umas panelas, meus companheiros tiraram a agua que restava dentro do barco. Tiramos as cobertas: amarradas ao mastro, com o vento vao secar-se logo. Arroz, farinha, oleo e cafe duplo, um bom gole de rum. O sol desce, iluminando com todos os seus fogos este mar azul, num quadro inesquecivel: o ceu esta todo vermelho- pardacento; o sol, em parte afundado no mar, projeta longas linguas amarelas, tanto em direcao ao ceu e a algumas nuvens brancas, quanto em direcao ao mar; as ondas, subindo, sao azuis no fundo, depois verdes, e a crista vermelha, rosa ou amarelai de acordo com a cor tio raio que a toca.
Uma paz me invade com uma docura pouco comum e, com a paz, a sensacao de que posso ter. confianca em mim. Havia perdido bastante dessa confianca e a pequena tempestade foi muito util para mim. Sozinho, aprendi como manobrar nesses maus momentos. Vou enfrentar a noite com uma serenidade completa.
– Entao, Clousiot, voce viu aquela manobra para esvaziar o barco?
– Amigo, se voce nao fizesse isso e se uma outra onda nos apanhasse naquela situacao, a gente afundava. Voce e um campeao.
– Voce aprendeu tudo isso na marinha? – pergunta Maturette.
– Aprendi, voce ve como servem para alguma coisa as licoes da marinha de guerra?
Fomos bastante a deriva. Com um vento e umas ondas como aquelas, quanto a gente nao deve ter ido a deriva em quatro horas? Vou dirigir para noroeste e corrigir isso. A noite cai de repente, depois que o sol desaparece no mar, enviando as ultimas faiscas, agora de cor violeta, como fogo de artificio.
Durante seis dias. ainda, navegamos sem incidentes, a nao ser algumas chuvas fortes que nunca ultrapassam tres horas de duracao, nem tem a eternidade da primeira tempestade. Sao 10 horas da manha. Nenhum sinal de vento, uma calmaria total. Durmo umas quatro horas. Quando acordo, meus labios ardem. Nao tem mais pele, e nem meu nariz. Minha mao direita tambem esta sem pele, em carne viva. Com Maturette se passa a mesma coisa, e tambem Clousiot. Passamos oleo duas vezes por dia no rosto e nas maos, mas nao basta: o sol dos tropicos o seca logo.
Devem ser 2 horas da tarde, de acordo com o sol. Comemos e depois, como esta tudo calmo, tratamos de fazer um pouco de sombra com a vela. Alguns peixes acompanham o barco a direita, onde Maturette lavou a louca. Pego o facao e digo a Maturette para jogar uns graos de arroz que, depois de molhados, ja comecam a fermentar. Os peixes se juntam onde cai o arroz, a tona da agua, e, como um deles tem quase toda a cabeca fora, dou-lhe uma bela facada; na mesma hora, ele fica de barriga para cima. E um peixe de uns 10 quilos. Limpamos o bruto e cozinhamos em agua e sal. Comemo-lo de noite, com a farinha de mandioca.
Ha onze dias que estamos no mar. Vimos so um navio, nesse tempo todo, muito longe no horizonte. Comeco a me perguntar: onde estamos, que diabo? Em alto-mar, certo, mas em que posicao em relacao a Trinidad ou a qualquer uma das ilhas inglesas? Quando se fala no diabo… De fato, a frente e em nossa direcao surge um ponto preto que vai aumentando pouco a pouco. Sera um navio ou uma chalupa de alto-mar? Mas ha um engano: nao vem em nossa direcao. Agora, de lado, distingue-se bem: e um navio. Aproxima-se, e verdade, mas em diagonal, sua rota nao vai leva-lo ate nos. Como ha vento, nossas velas pendem lamentavelmente, o navio certamente nao nos viu. De repente, o apito de uma sereia, depois tres tiros, em seguida ele muda de rota e vem direto sobre a gente.
– Espero que nao se aproxime demais – diz Clousiot.
– Nao ha perigo, o mar esta uma pintura.
E um petroleiro. Quanto mais ele se aproxima, melhor distinguimos as pessoas na ponte. E claro que eles se devem perguntar o que essas pessoas fazem nessa casquinha de noz aqui, em alto-mar. Suavemente, ele se aproxima de nos, distinguem-se bem agora os oficiais de bordo e outros homens da tripulacao, inclusive o cozinheiro; depois vemos chegarem na ponte mulheres com vestidos de cores vivas e homens com camisas coloridas. Percebe-se que sao passageiros. Passageiros num petroleiro parece coisa pouco comum. Mansamente, o petroleiro se aproxima e o capitao fala em ingles com a gente:
–
–
– Falam frances? – diz uma mulher.
– Sim, senhora.
– O que fazem em alto-mar?
– Vamos aonde Deus nos levar.
A dama fala com o capitao e diz:
– O capitao pede para subirem a bordo, vai icar a barca.
– Diga-lhe que agradecemos mas estamos muito bem na nossa barca.
– Por que nao querem ajuda?
– Porque somos foragidos e nao vamos na sua direcao.
– Aonde e que voces vao?
– Para a Martinica. Para alem da Martinica, alias. Onde estamos?
– Em alto-mar.
– Qual e a rota para chegar as Antilhas?
– Sabe ler um mapa maritimo com legendas em ingles?
– Sei.
Pouco depois, descem por uma corda um mapa ingles, pacotes de cigarros, pao, um pernil assado.
– Olhe o mapa!
Olho e digo:
– Preciso fazer oeste, um quarto sul, para encontrar as Antilhas inglesas, e isso?
– Sim.
– Quantas milhas aproximadamente?
– Em dois dias, voces estarao la – diz o capitao.
– Ate logo, obrigado a todos!
– O comandante do navio cumprimenta-os por sua coragem de marinheiros!
– Obrigado, adeus!
E o petroleiro vai embora suavemente, quase raspando na gente. Eu me afasto depressa, com medo dos redemoinhos das helices; nesse momento, um marinheiro joga para mim um bone de marinheiro. Cai no meio do barco e com esse bone (com um galao dourado e uma ancora) na cabeca, dois dias depois, sem incidentes,