Chove sempre, eu tenho que descer o rio pelo centro, mas um pouco a esquerda do lado da costa holandesa. Jean Sans Peur diz:

– Adeus, desaparecam logo!

– Boa sorte! – diz Toussaint e da um empurrao no barco com o pe.

– Obrigado, Toussaint, obrigado, Jean, mil vezes obrigado a todos!

E nos desaparecemos logo, levados pelo refluxo que ja comecou ha duas horas e meia, navegando com uma rapidez incrivel.

Continua chovendo, nao enxergamos 2 metros a nossa frente. Como ha duas pequenas ilhas mais para baixo, Maturette se debruca para a frente, os olhos fixos adiante, para nao irmos em cima das pedras. Anoiteceu. Uma arvore enorme que desce o rio conosco, felizmente mais lentamente, nos atrapalha um instante com seus galhos. Livramo-nos rapidamente e continuamos, a 30 por hora pelo menos. Fumamos, tomamos rum. Os leprosos nos deram seis garrafas de chianti com guarnicao de palha, cheias de rum. Coisa gozada, nenhum de nos fala das feridas horrorosas que vimos nos leprosos. O unico assunto da conversa: a bondade, a generosidade, a honestidade deles, nossa sorte de ter encontrado o bretao mascarado que nos conduziu ate a Ilha dos Pombos. Chove cada vez mais forte, estou ensopado ate a alma, mas as malhas de la sao tao boas, que, mesmo ensopadas, esquentam. Nao estamos com frio. So a mao que maneja o leme se endurece debaixo da chuva.

– Agora – diz Maturette – estamos descendo a mais de 40 por hora. Ha quanto tempo voce acha que a gente saiu?

– Vou-lhe dizer – diz Clousiot. – Espere um pouco: tres horas e quinze minutos.

– Esta louco? Como e que voce sabe?

– Depois da saida contei trezentos segundos e a cada vez cortei um pedaco de papelao. Tenho 39 pedacos. A cinco minutos cada um sao a tres horas e um quarto que estamos descendo. Se nao estiver enganado, daqui quinze a vinte minutos nao vamos mais descer, vamos voltar para onde viemos.

Puxo o leme a direita, para pegar o rio em diagonal, e me aproximar da margem, do lado da Guiana Holandesa. Antes de a gente chocar com a vegetacao, a correnteza para. Nao descemos mais, nem subimos. Chove sempre. Nao fumamos mais, nao falamos mais, murmuramos: “Pegue o remo e puxe para cima”. Eu mesmo remo, prendendo o leme embaixo da minha coxa direita. Suavemente encostamos na vegetacao, puxamos os galhos e nos abrigamos debaixo deles. Estamos sob a sombra formada pela vegetacao. O rio esta cinzento, cheio de neblina. Seria impossivel dizer, sem se basear no fluxo e refluxo, onde esta o mar e onde esta o rio.

A GRANDE PARTIDA

A mare montante vai durar seis horas. Alem delas, durante mais uma hora e meia temos que esperar o refluxo. Posso dormir sete horas, portanto, apesar de estar excitadissimo. Preciso dormir, porque, depois de entrarmos no mar, quando vou poder? Estico-me entre o tonel e o mastro, Maturette coloca uma coberta como abrigo entre o banco e o tonel; bem protegido, durmo, durmo. Absolutamente nada vem perturbar meu sono de chumbo, nem sonhos, nem chuva, nem ma posicao. Durmo, durmo, ate o momento em que Maturette me acorda:

– Papi, achamos que esta na hora, ou quase. O refluxo comecou faz tempo.

O barco esta seguindo para o mar e a correnteza embaixo dos meus pes corre depressa, depressa. Nao chove mais, um quarto de lua permite enxergar claramente o rio 100 metros adiante, que arrasta capim, arvores, formas negras. Procuro ver a divisao entre o rio e o mar. Onde nos estamos nao tem vento. Sera que tem no meio do rio? E forte? Saimos de baixo dos arbustos, o barco sempre preso a uma raiz grande com um no corredio. E olhando para o ceu que descubro a costa, o fim do rio, o comeco do mar. Descemos muito mais do que pensavamos e tenho a impressao de que nao estamos a 10 quilometros da embocadura. Tomamos um bom gole de rum. Pergunto: “Colocamos o mastro agora?” Colocamos. Endireitamos o mastro e ele fica bem encaixado no seu soquete, no buraco do banco. Ico a vela sem solta-la, ela fica enrolada em volta do mastro. O traquete e o cutelo vao ser imediatamente icados por Maturette quando eu achar necessario. Para fazer funcionar a vela, basta soltar a corda que a mantem colada ao mastro; e eu, do meu lugar farei a manobra. Na frente, Maturette com um remo, eu atras com outro. A gente precisa se afastar com um impulso muito forte e muito rapido da margem para onde a correnteza nos empurra.

– Atencao. Para a frente, com a graca de Deus!

– Com a graca de Deus – repete Clousiot.

– Em tuas maos eu me entrego – diz Maturette.

E arrancamos. Ao mesmo tempo, puxamos a agua com os remos; eu afundo bastante e puxo, Maturette tambem. Afastamo-nos facilmente. Nao estamos nem 20 metros da margem e ja descemos 100 com a correnteza. De repente, o vento se faz sentir e nos carrega para o meio do rio.

– Ice o traquete e o cutelo, bem amarrados os dois!

O vento os enche, o barco empina como um cavalo e voa como uma flecha. Deve ser mais tarde que a hora combinada porque, de uma hora para outra, o rio se ilumina como em pleno dia. Distinguem-se facilmente, a uns 2 quilometros, a costa francesa a nossa direita, e a 1 quilometro, a esquerda, a costa holandesa. Na nossa frente, bem visiveis, os carneiros brancos da crista das ondas.

– Diabo! Erramos a hora – diz Clousiot. – Voce acha que vai dar tempo de a gente sair?

– Nao sei.

– Olhe como as ondas do mar sao altas e as cristas brancas! Sera que o refluxo ja comecou?

– Impossivel, vejo coisas descendo.

Maturette diz:

– Nao vamos conseguir sair, nao vamos chegar a tempo.

– Cale a boca e fique sentado do lado das cordas do cutelo e do traquete. Voce tambem, Clousiot, cala a boca!

Pan-inh… Pan-inh… Tiros de carabina sao disparados contra a gente. O segundo, localizei claramente. Nao sao dos guardas, vem da Guiana Holandesa. Ico a vela, que incha com tanta forca, que por pouco nao me arrasta, puxando-me pelo pulso. O barco esta inclinado a mais de 45 graus. Pego vento o mais possivel, nao e dificil, tem vento demais. Pan-inh, pan-inh, pan-inh, depois mais nada. Somos carregados mais para o lado frances que para o holandes, certamente por isso que os tiros pararam.

Navegamos a uma velocidade vertiginosa, com um vento desenfreado. Vamos tao depressa, que me vejo lancado no meio do estuario, de tal forma que em poucos minutos vou tocar a margem francesa. Enxergam-se claramente uns homens correndo em direcao a margem. Viro suavemente de bordo, o mais suavemente possivel, puxando com todas as minhas forcas a corda da vela. Ela esta reta a minha frente, o cutelo mudou sozinho de bordo e o traquete tambem. O barco vira de tres quartos, solto a vela e saimos do estuario com todo o vento por tras. Ufa! ai esta! Dez minutos depois, a primeira onda do mar tenta barrar-nos a passagem; passamos facilmente por cima dela e o chua-chua que o barco fazia no rio transforma-se em tac-i-tac-i-tac. Atravessamos mesmo ondas altas com a facilidade de um garoto que pula barreira. Tac-i-tac, o barco sobe e desce as ondas sem vibrar nem sacudir. So o tac do casco, que bate no mar, caindo da onda.

– Hurra! Hurra! Saimos – grita Clousiot a plenos pulmoes.

E, para iluminar a vitoria da nossa energia sobre os elementos, o bom Deus nos manda um nascer do sol deslumbrante. As ondas se sucedem, todas com o mesmo ritmo. Diminuem de altura a medida que penetramos no mar. A agua e suja, lamacenta. Na frente, ao norte, ela esta negra, mais tarde vai ficar azul. Nao preciso olhar minha bussola: com o sol no meu ombro direito, sigo reto, com todo o vento, mas o barco menos inclinado, porque deixei a corda da vela correr e ela se enfunou pela metade, sem ficar completamente estendida. Comecamos a grande aventura.

Clousiot se levanta. Quer por a cabeca e o corpo para fora, a fim de ver melhor. Maturette vai ajuda-lo a se ajeitar, coloca-o sentado na minha frente, as costas apoiadas no tonel; faz um cigarro para mim, acende-o, passa-o e fumamos os tres.

– Passe para ca a garrafa, para comemorarmos a partida – diz Clousiot.

Maturette poe um bom gole em tres canecas de lata e bebemos. Maturette esta sentado ao meu lado, a minha esquerda. Nos nos olhamos: seus rostos estao iluminados de felicidade, o meu deve estar tambem. Entao, Clousiot diz:

– Capitao, aonde o senhor vai, por favor?

– Para a Colombia, se Deus quiser.

– Deus vai querer, que diabo! – diz Clousiot.

O sol vai subindo rapidamente e nao demora a nos secar. A camisa do hospital se transforma num capuz a maneira arabe. Molhada, ela refresca a cabeca e evita que soframos uma insolacao. O mar esta de um azul cor de opala, as ondas sao de 3 metros e muito longas, o que ajuda a viajar confortavelmente. O vento se mantem forte e nos afasta depressa da costa, que, de vez em quando, vejo, esbocada no horizonte. Essa massa verde, quanto mais nos afastamos, mais nos revela os segredos de seu rendilhado. Viro-me para olhar atras de mim, mas uma onda mal cortada chama-me a obrigacao e tambem a responsabilidade de resguardar a vida dos meus companheiros e a minha.

– Vou cozinhar um pouco de arroz – diz Maturette.

– Eu seguro o fogareiro – diz Clousiot – e voce a panela.

O botijao de querosene esta colocado bem na frente, para evitar a fumaca. O arroz feito na gordura tem um gosto muito bom. Comemos o arroz bem quente, misturado com duas latas de sardinhas. Em cima disso, um bom cafe. “Um gole de rum?” Eu recuso, faz muito calor. Alem disso, nao sou um bebedor. Clousiot, a cada instante, faz cigarros para mim e os acende. A primeira refeicao a bordo foi bem. Pela posicao do sol, imaginamos que sao 10 da manha. Temos apenas cinco horas de alto-mar, mas percebemos que aqui a agua ja e muito profunda. As ondas diminuiram de altura e vamos cortando-as sem o barco bater. O dia e maravilhoso. Percebo que durante o dia nao preciso da bussola constantemente. De vez em quando, comparo a posicao do sol em relacao a da agulha e me guio por ele; e facilimo. A reverberacao do sol cansa os olhos. Sinto nao ter pensado em arranjar uns oculos escuros. De repente, Clousiot diz:

– Que sorte eu tive de encontrar voce no hospital.

– Nao e so voce, eu tambem tive sorte em que voce viesse. Pensa em Dega, em Fernandez… se eles tivessem concordado, estariam aqui conosco.

– Quem sabe? – diz Clousiot. – Voce poderia ter complicacoes para conseguir que o arabe viesse na hora exata a enfermaria.

– E, Maturette foi muito util e eu me felicito por te-lo trazido, porque ele e muito dedicado, corajoso e esperto.

– Obrigado – diz Maturette – e obrigado a voces dois por terem confianca em mim, apesar da minha pouca idade e daquilo que eu sou. Vou fazer de tudo para estar sempre a altura.

Depois eu digo:

– E Francois Sierra, gostaria tanto que ele estivesse aqui, e tambem Galgani…

– Do jeito que as coisas mudaram, Papillon, nao era possivel. Se Jesus fosse um homem correto e tivesse arranjado um bom barco, a gente poderia esperar por

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