correr perigo. Um barco que nao tem impulso proprio, motor ou vento, nao obedece ao leme. Isso e muito perigoso, quando as ondas sao altas. Servindo-me das maos como amplificador, grito:
– O senhor fala frances, capitao?
Um outro oficial pega o alto-falante do primeiro:
– Sim, capitao, eu entendo frances.
– Que e que voces querem?
– Subir o barco de voces a bordo.
– Nao, e muito perigoso. Nao quero que rebentem meu barco.
– Somos um barco de guerra que vigia o mar, voces tem que obedecer.
– Pouco me importa, nos nao estamos fazendo guerra.
– Voces nao sao naufragos de um navio torpedeado?
– Nao. Nos somos evadidos do
– Que
– Prisao, penitenciaria;
– Ah! Sim, sim, compreendo. Caiena?
– Sim, Caiena.
– Para onde vao?
– Honduras britanica.
– Nao e possivel. Tem que rumar para sul-quarto-oeste e ir para Georgetown. Obedecam, e uma ordem.
– O.K.
Digo a Cuic para subir as velas e partimos na direcao dada pelo torpedeiro.
Ouve-se um motor atras de nos, e uma chalupa que saiu do torpedeiro e nos alcanca depressa. Um marinheiro, com o fuzil em bandoleira, esta de pe na proa. A chalupa vem pelo lado direito, encosta-se a nos completamente, sem parar nem pedir que a gente pare. Com um salto, o marinheiro passa para o nosso barco. A chalupa continua e volta para o cacador.
–
Avanca para mim, senta-se a meu lado, depois pega o leme e dirige o barco mais para o sul do que eu estava fazendo. Abandono-lhe a responsabilidade de dirigir, observando seu modo de trabalhar. Ele sabe manobrar muito bem, nao ha duvida nesse ponto. Apesar de tudo, fico em meu lugar. Nunca se sabe.
– Cigarros?
Ele pega tres macos de cigarros ingleses e da um a cada um de nos.
– Com certeza – diz Cuic – deram-lhe os macos de cigarros quando ele desembarcou, pois ele nao deve andar por ai com tres macos.
Rio da reflexao de Cuic, depois observo o marinheiro ingles, que sabe manejar o barco melhor do que eu. Tenho toda a liberdade para pensar. Desta vez, a fuga deu certo para sempre. Sou um homem livre, livre. Um calor sobe-me a garganta; acredito mesmo que lagrimas saem dos meus olhos. E verdade. Estou definitivamente livre, uma vez que, com a guerra, nenhum pais devolve evadidos.
Antes que a guerra termine, terei tempo de me fazer estimar e conhecer, nao importa em que pais eu me estabeleca. O unico inconveniente e que com a guerra eu talvez nao possa escolher o pais em que quiser ficar. Isso nao tem importancia, nao interessa onde eu viva, terei tempo de ganhar a estima e a confianca da populacao e das autoridades por meu modo de viver, que devera ser irrepreensivel. Ate melhor: exemplar.
A seguranca de ter, enfim, vencido o caminho da podridao e tal, que nao penso em outra coisa. Enfim, voce ganhou, Papillon! Ao fim de nove anos, voce e de novo vencedor. Obrigado, meu Deus, talvez voce nao tenha podido faze-lo antes, mas seus caminhos sao misteriosos, nao me queixo de voce, pois gracas a sua ajuda ainda sou jovem, sadio e livre.
E pensando no caminho percorrido nesses nove anos de trabalho forcado, mais os dois anos de cadeia cumpridos na Franca, antes (num total de onze), que sigo o braco estendido do marinheiro, que me indica: “a terra”.
As 17 horas, depois de contornar um farol apagado, entramos num enorme rio, o Demerara. A chalupa reaparece, o marinheiro me devolve o leme e vai se colocar a frente. Recebe pelo ar uma grossa corda, que amarra no banco da frente. Ele mesmo desce as velas e, suavemente puxados pela chalupa, subimos uma vintena de quilometros nesse rio amarelo, seguidos pelo torpedeiro a uns 200 metros. Depois de um cotovelo, uma grande cidade surge:
– Georgetown – grita o marinheiro ingles.
De fato, e na capital da Guiana Inglesa que entramos, suavemente puxados pela chalupa. Muitos cargueiros e navios de guerra. Canhoes sobre pequenas torres estao alinhados a beira do rio. Ha todo um arsenal, tanto nas unidades navais como em terra.
E a guerra. No entanto, ha mais de dois anos que estamos em guerra, mas eu nao havia sentido. Georgetown, a capital da Guiana Inglesa, porto importante no Rio Demerara, esta cem por cento em pe de guerra. Uma cidade em armas me causa uma impressao esquisita. Assim que encostamos num embarcadouro militar, o torpedeiro que nos seguia aproxima-se lentamente e tambem encosta. Cuic com seu porco, Hue com uma trouxinha na mao e eu sem nada, subimos os tres para o cais. Nenhum civil nesse embarcadouro, reservado para a Marinha. Somente marinheiros e militares. Um oficial chega, reconheco-o. E aquele que me falou em frances do torpedeiro. Gentilmente, ele me estende a mao e diz:
– Voce esta com boa saude?
– Sim, capitao.
– Perfeito. No entanto, tem que passar pela enfermaria, onde vai tomar varias injecoes. Seus amigos tambem.
12 GEORGETOWN
A tarde, depois de termos tomado diferentes vacinas, fomos transferidos para a Central de Policia da cidade, uma especie de comissariado gigantesco, onde centenas de policiais entram e saem sem parar. O superintendente da policia de Georgetown, primeira autoridade da policia, responsavel pela tranquilidade desse porto importante, recebe-nos imediatamente em seu escritorio. Ao redor dele, oficiais ingleses vestidos com uniforme caqui, impecaveis em seus
– De onde vinham quando os encontraram no mar?
– Da penitenciaria da Guiana Francesa.
– Queira me dizer o ponto exato de onde se evadiram.
– Eu, da Ilha do Diabo. Os outros, de um campo semipolitico de Inini, perto de Kourou, Guiana Francesa.
– Qual a sua condenacao?
– Prisao perpetua.
– E o motivo?
– Assassinato.
– E os chineses?
– Assassinato, tambem.
– Condenacao?
– Prisao perpetua.
– Sua profissao?
– Eletricista.
– E eles?
– Cozinheiros.
– Voce e por De Gaulle ou Petain?
– Nao sabemos nada disso. Somos homens prisioneiros e procuramos voltar a viver honestamente em liberdade.
– Vamos dar-lhes uma cela que ficara aberta o dia inteiro e a noite. Ficarao em liberdade depois que examinarmos suas declaracoes. Se nos disseram a verdade, nada tem a temer. Compreendam, estamos em guerra e temos que tomar mais precaucoes do que em tempo normal.
Logo, oito dias depois, somos postos em liberdade. Aproveitamos esses oito dias passados na Central de Policia para adquirir roupas decentes. Foi corretamente vestidos que meus dois amigos chineses e eu nos encontramos, as 9 horas da manha, na rua, munidos de um cartao de identidade com nossas fotografias.
A cidade, de 250 000 habitantes, e quase toda de madeira, construida a inglesa: ao nivel do solo, cimento; o resto em madeira. As ruas e avenidas estao cheias de gente de todas as racas: brancos, gente cor de chocolate, negros, hindus, marinheiros ingleses e americanos, nordicos,
– Para onde vamos? – diz Cuic.
– Tenho uma indicacao. Um policial negro me deu o endereco de dois franceses, em Penitence River.
Segundo as informacoes, e um bairro onde vivem exclusivamente hindus. Vou a um policial vestido de branco, impecavel. Mostro-lhe o endereco. Antes de responder, ele nos pede as carteiras de identidade. Orgulhosamente, eu a entrego. “Muito bem, obrigado.” Entao, ele nos poe num bonde, depois de ter falado com o condutor. Saimos do centro da cidade e, vinte minutos depois, o condutor nos faz descer. Deve ser ali. Na rua, perguntamos. “Frenchmen?” Um rapaz nos faz sinal para segui-lo. Nos leva diretamente a uma casa baixa. Assim que me aproximo, tres homens saem da casa, com gestos acolhedores: