– Como, voce aqui, Papi?
– Nao e possivel! – diz o mais velho, de cabelos todos brancos.
– Entre. Esta e minha casa. Os chineses estao com voce?
– Estao.
– Entrem, sejam bem-vindos.
O velho forcado chama-se Guittou Auguste, vulgo Le Guittou, e um tipo bem caracteristico de Marselha, estava no mesmo grupo que eu no
A casa tem cinco comodos: dois quartos, uma cozinha, uma sala de jantar e um escritorio. Eles fazem calcados em balata, uma especie de borracha natural recolhida no mato, que, trabalhada com agua quente, torna-se maleavel e modela-se bem. O unico defeito e que, se fica muito exposto ao sol, o negocio se derrete, porque nao e borracha vulcanizada. Procuram evitar isso intercalando folhas de tecido entre as camadas de balata.
Maravilhosamente recebidos, com o coracao que o sofrimento enobreceu, Guittou nos arranja um quarto para os tres e nos instala nele sem hesitar. So ha um problema, o porco de Cuic, mas Cuic afirma que ele nao vai sujar a casa, que ira fazer suas necessidades la fora.
Guittou diz;
– Bem, vamos ver; por enquanto, pode ficar com ele.
Provisoriamente, preparamos tres camas no chao com velhas cobertas de soldado.
Sentados diante da porta, todos os seis fumando alguns cigarros, conto a Guittou todas as minhas aventuras de nove anos. Seus dois amigos e ele escutam com atencao e vivem intensamente minhas aventuras, pois as sentem em suas proprias experiencias. Dois conheceram Sylvain e lamentam sinceramente sua horrivel morte. Diante de nos passam e repassam pessoas de todas as racas. De vez em quando, entra alguem que compra sapatos ou uma vassoura, pois Guittou e seus amigos tambem fazem vassouras para ganhar a vida. Fico sabendo por eles que entre forcados e exilados ha uns trinta evadidos em Georgetown. Encontram-se a noite num bar do centro, onde bebem juntos rum ou cerveja. Todos trabalham para suprir suas necessidades, conta Julot, e a maioria se comporta bem.
Enquanto tomamos a fresca na sombra, diante da porta da casinha, passa um chines e Cuic o interpela. Sem me dizer nada, Cuic vai com ele e o maneta tambem. Nao devem ir longe, pois o porco sai atras. Duas horas depois, Cuic volta com um asno puxando uma pequena carroca. Orgulhoso como Artaban, para o burrico, com quem fala em chines. O asno tem jeito de compreender essa lingua. Na carroca estao tres camas de ferro desmontaveis, tres colchoes, travesseiros, tres malas. A que ele me da esta cheia de camisas, cuecas, malhas, mais dois pares de sapatos, gravatas, etc.
– Onde encontrou isso, Cuic?
– Meus compatriotas me deram. Amanha iremos visita-los, voce quer?
– Esta combinado.
Esperamos que Cuic volte para devolver o asno e a carroca, mas nada disso. Ele desatrela o asno e amarra-o no patio.
– Eles me deram tambem o asno e a carroca de presente. Com isto, disseram, eu posso ganhar a vida facilmente. Amanha de manha, um conterraneo meu vai vir para me ensinar.
– Esses chineses andam depressa.
Guittou concorda em que o asno e a carroca fiquem provisoriamente no quintal. Tudo muito bem para nosso primeiro dia livre. A noite, todos os seis ao redor da mesa de trabalho, comemos uma boa sopa de legumes feita por Julot, e um bom prato de macarrao.
– Um de cada vez vai lavar a louca e fazer a limpeza da casa – diz Guittou.
Essa refeicao em comum e o simbolo de uma primeira pequena comunidade cheia de calor. Esta sensacao de se saber ajudado nos primeiros passos dados na vida livre e bastante reconfortante. Cuic, o maneta e eu somos real e plenamente felizes. Temos um teto, uma cama, amigos generosos que, em sua pobreza, encontraram nobreza bastante para nos ajudar. Que pedir de melhor?
– Que quer fazer esta noite, Papillon? – diz-me Guittou. – Quer ir a cidade, a esse bar onde vao todos os foragidos?
– Eu preferia ficar por aqui esta noite. Va, se voce quiser, nao se preocupe por mim.
– Sim, eu vou, pois preciso encontrar uma pessoa.
– Eu ficarei com Cuic e o maneta.
Petit-Louis e Guittou se vestiram, engravataram-se e foram para o centro. So Julot ficou, para terminar alguns pares de sapatos. Meus camaradas e eu damos uma volta pelas ruas proximas para conhecer o bairro. Tudo aqui e hindu. Muito poucos negros, quase nenhum branco, alguns raros restaurantes chineses.
Penitence River (e o nome do bairro) e um canto das Indias ou de Java. As mocas sao admiravelmente belas e os velhos usam longos mantos brancos. Muitos andam com os pes nus. E um bairro pobre, mas todo mundo esta vestido limpamente. As ruas sao mal iluminadas, os bares onde se come e bebe estao cheios de gente, por todo lado ha musica hindu.
Um negro lustroso, vestido de branco e engravatado, me detem:
– O senhor e frances?
– Sim.
– E um prazer encontrar um compatriota. Quer aceitar um gole?
– Se o
– Nao tem importancia. Eles falam frances?
– Falam.
Eis-nos os quatro instalados numa mesa de bar, junto da calcada. Esse martiniquenho fala um frances mais elegante do que o nosso. Diz para tomarmos cuidado com os negros ingleses porque, diz ele, sao todos mentirosos. “Nao sao como nos, os franceses: nos temos palavra, eles nao.”
Sorrio comigo mesmo ao ver esse negro do Sudao dizer “nos os franceses” e, depois, sinto-me realmente perturbado. Perfeitamente, esse senhor e um frances, um frances mais puro do que eu, penso, pois reivindica sua nacionalidade com calor e fe. Ele e capaz de se deixar matar pela Franca, eu nao. Portanto, e mais frances do que eu. Eu sou o comum.
– E um prazer encontrar um compatriota e falar minha lingua, pois falo muito mal o ingles.
– Eu me exprimo correntemente em ingles. Se lhe puder ser util, estou a sua disposicao. Esta ha muito tempo em Georgetown?
– Oito dias, nao mais.
– De onde veio?
– Da Guiana Francesa.
– Impossivel! E um fugitivo ou um guarda da penitenciaria que quer se passar para De Gaulle?
– Nao. Sou um fugitivo.
– E seus amigos?
– Tambem.
– Senhor Henri, nao quero saber o seu passado, e o momento de ajudar a Franca e de se redimir. Eu estou com De Gaulle e espero embarcar para a Inglaterra. Va me ver amanha no Martiner Club, aqui esta o endereco. Ficarei feliz se o senhor se juntar a nos.
– Como e seu nome?
– Homere.
– Sr. Homere, nao posso me decidir assim de repente, tenho primeiro que me informar sobre minha familia e, tambem, antes de tomar uma decisao tao seria, preciso analisar a situacao friamente. Na verdade,
O martiniquenho, com uma flama e um calor admiraveis, procura me convencer com todo o seu coracao. E realmente emocionante escutar os argumentos desse homem em favor da Franca.
Muito tarde, voltamos para casa e, deitado, penso em tudo que me disse esse grande frances. Preciso refletir seriamente sobre sua proposta. Afinal de contas, os tiras, os dedos-duros, os imbecis, a administracao penitenciaria, isso nao e a Franca. Sinto, bem dentro de mim, que nao deixei de ama-la. E dizer que ha boches por toda a Franca! Meu Deus, como devem estar sofrendo os meus e que vergonha para todos os franceses!
Quando acordo, o asno, a carroca, o porco, Cuic e o maneta desapareceram.
– Entao, meu chapa, dormiu bem? – perguntam Guittou e seus amigos.
– Sim, obrigado.
– Olhe, quer cafe com leite ou cha? Cafe e fatias de pao com manteiga?
– Obrigado – enquanto como, fico olhando eles trabalharem.
Julot prepara a massa de balata no tamanho e medida necessarios, poe os pedacos duros na agua quente e amassa ate ficar mole.
Petit-Louis prepara pedacos de tecido e Guittou faz as solas.
– Voces produzem muito?
– Nao. Trabalhamos para ganhar 20 dolares por dia. Com 5 pagamos o aluguel e a comida. Restam 5 para cada um, para gastos variados, para se vestir, etc.
– Vendem tudo?
– Nao. As vezes e preciso que um de nos saia vendendo sapatos e vassouras nas ruas de Georgetown. E duro, a pe, em pleno sol, sair vendendo mercadoria.
– Se for preciso, eu vou de boa vontade. Nao quero ser um parasita aqui. Preciso contribuir para ganhar comida.
– Esta bem, Papi.
Passeei o dia inteiro pelo bairro hindu de Georgetown. Vejo um grande cartaz de cinema e sinto um desejo louco de ouvir e ver, pela primeira vez em minha vida, um filme falado, em cores. Vou pedir a Guittou que me traga ao cinema esta noite. Andei pelas ruas de Penitence River a manha toda. A polidez das pessoas me agradou enormemente. Eles tem duas qualidades: sao limpos e muito educados. Este dia passado sozinho nas ruas desse bairro de Georgetown e para mim ainda mais grandioso do que minha chegada a Trinidad, ha nove anos.