Em Trinidad, no meio de todas as maravilhosas sensacoes nascidas de me misturar a multidao, eu tinha uma interrogacao constante: um dia, antes de duas semanas, no maximo tres, eu teria que tornar a partir pelo mar. Qual seria o pais que iria me querer? Haveria uma nacao para me dar asilo? Qual seria o futuro? Aqui e diferente. Sou definitivamente livre, posso mesmo, se quiser, ir para a Inglaterra e me engajar nas forcas francesas livres. Que devo fazer? Se me decidir a ir com De Gaulle, nao irao dizer que fui porque nao tinha onde me enfiar? No meio de pessoas sadias, nao vao me tratar como um forcado que nao encontrou outro refugio e que, por isso, esta com eles? Dizem que a Franca esta dividida em duas partes, Petain e De Gaulle. Como e que um marechal da Franca nao sabe onde esta a honra e o interesse da Franca? Se um dia eu entrar para as forcas livres, nao vou ser obrigado, mais tarde, a atirar contra franceses?
Aqui vai ser duro, muito duro, conseguir alcancar uma situacao aceitavel. Guittou, Julot e Petit-Louis estao longe de ser imbecis e trabalham por 5 dolares por dia. Primeiro, preciso aprender a viver em liberdade. Desde 1931 – e estamos em 1942 – sou prisioneiro. Nao posso, no primeiro dia da minha liberdade, resolver todas essas incognitas. Nao conheco sequer os primeiros problemas que se apresentam a um homem para abrir caminho na vida. Sou um pouquinho eletricista, mas qualquer operario eletricista sabe mais do que eu. Devo prometer apenas uma coisa a mim mesmo: viver limpamente, pelo menos o mais possivel de acordo com uma moral minha.
Sao 6 horas quando volto para casa.
– Entao, Papi, e bom saborear os primeiros bocados de ar da liberdade? Voce passeou bastante?
– Sim, Guittou, fui e vim por todas essas ruas deste grande suburbio.
– Viu os chineses?
– Nao.
– Estao no quintal. Seus amigos sao vivissimos. Ja ganharam 40 dolares e queriam, a todo custo, que eu ficasse com vinte. Recusei, bem entendido. Va ve- los.
Cuic esta cortando uma couve para seu porco. O maneta lava o asno, que se deixa lavar, alegre.
– Tudo bem, Papillon?
– Sim, e voces?
– Nos estamos bem contentes, ganhamos 40 dolares.
– Que foi que fizeram?
– Saimos as 3 horas da manha pelo campo, junto com um conterraneo nosso, para nos mostrar. Ele havia trazido 200 dolares. Com isso, compramos tomates, alface, berinjelas, enfim, toda especie de legumes verdes e frescos. Algumas galinhas, ovos e leite de cabra. Fomos ao mercado perto do porto da cidade e vendemos um pouco a pessoas do lugar, primeiro, e depois vendemos tudo aos marinheiros americanos. Ficaram tao contentes com o preco, que amanha nem vou precisar entrar no mercado: eles me disseram para esperar diante da entrada do porto. Eles vao comprar tudo. Tome, olhe o dinheiro. E sempre o chefe que deve guardar o dinheiro.
– Voce sabe, Cuic, que tenho dinheiro e nao preciso desse.
– Guarde o dinheiro ou nao trabalhamos mais.
– Escute, os franceses vivem com mais ou menos 5 dolares. Nos vamos ficar cada um com 5 dolares e dar 5 a casa, para comida. O resto, a gente poe de lado para devolver aos seus conterraneos os 200 dolares que eles emprestaram.
– Entendido.
– Amanha, eu vou com voces.
– Nao, voce vai dormir. Se quiser, encontra com a gente as 7 horas, na frente da porta grande do porto.
– Esta bem.
Todo mundo esta feliz. Primeiro nos, por sabermos que podemos ganhar a vida e nao ser uma carga para nossos amigos. Depois Guittou e os outros dois, que, apesar de todo o seu bom coracao, deveriam estar se perguntando em quanto tempo nos estariamos em condicoes de ganhar nossa vida.
– Para festejar essa verdadeira facanha dos seus amigos, Papillon, vamos fazer 2 litros de
Julot vai e vem com alcool branco de cana-de-acucar e ingredientes. Uma hora depois, bebemos
– Nao cometa gafes. Sao verdadeiras mocas de familia. Nao va dizer alguma palavra ousada demais so porque elas estao com os seios descobertos sob o veu transparente. Para elas, isso e natural. Eu nao me meti a sebo, porque sou muito velho. Mas Julot e Petit-Louis tentaram, logo no comeco, quando viemos para ca, e fracassaram. Elas ficaram muito tempo sem voltar aqui.
Essas duas hindus sao de uma beleza maravilhosa. Um ponto tatuado no meio da testa lhes da um ar estranho. Falam-nos gentilmente e o pouco de ingles que sei me permite compreender que nos desejam boas-vindas a Georgetown.
Esta noite, Guittou e eu fomos ao centro da cidade. Dir-se-ia uma outra civilizacao, completamente diferente desta em que vivemos. A cidade ferve de gente: brancos, negros, hindus, chineses, soldados e marinheiros em fardas militares e varios marinheiros civis. Um grande numero de bares, restaurantes, cabares e boates iluminam as ruas com suas luzes cruas, como em pleno dia.
Depois da tarde em que assisti pela primeira vez em minha vida a apresentacao de um filme colorido e falado, ainda todo aturdido por essa nova experiencia, sigo Guittou que me arrasta para um enorme bar. Mais de vinte franceses ocupam um canto da sala. A bebida: cuba-libre (rum e coca-cola).
Todos esses homens sao evadidos, forcados. Uns partiram depois de terem sido libertados, haviam terminado suas penas e deveriam fazer a duplicata em regime de livramento condicional. Morrendo de fome, sem trabalho, mal vistos pela populacao oficial e tambem pelos civis da Guiana Francesa, preferiram partir para um pais onde acreditavam poder viver melhor. Mas e duro, comentam.
– Eu corto lenha no mato por 2 dolares e 50 por dia, para John Fernandes. Desco todos os meses a Georgetown, para passar oito dias. Estou desesperado.
– E voce?
– Eu faco colecoes de borboletas. Vou cacar no mato e, quando tenho uma boa quantidade de borboletas diversas, arranjo-as numa caixa com vidro e vendo a colecao.
Outros sao descarregadores no porto. Todos trabalham, mas mal ganham o suficiente para viver. “E duro, mas a gente e livre”, dizem eles. “A liberdade e tao boa!”
Esta noite, um exilado vem nos ver: Faussard. Paga bebida para todo mundo. Estava a bordo de um navio canadense que, carregado de bauxita, foi torpedeado a saida do rio Demerara. Ele e
Cada um conta sua historia. Estou sentado com Guittou ao lado de um velho parisiense de Halles: se apresentou como Petit-Louis da Rua dos Lombards.
– Meu velho Papillon, eu havia arranjado um jeito de viver sem fazer nada. Quando aparecia no jornal o nome de um frances na rubrica “morto lutando pelo rei”, ou a rainha, nao lembro mais, procurava um marmorista e mandava fazer a foto de uma lapide tumular em que estava escrito o nome do navio, a data em que fora torpedeado e o nome do frances. Depois, apresentava-me nas ricas mansoes dos ingleses e lhes dizia que era preciso que contribuissem para a compra de uma lapide para o frances morto lutando pela Inglaterra, a fim de que houvesse no cemiterio uma lembranca dele. Isso foi assim ate a semana passada, quando um filho da puta de Breton, que havia sido dado como morto num torpedeamento, apareceu bem vivo e bem disposto por ai. Visitou algumas bondosas senhoras, justamente algumas daquelas as quais eu havia pedido 5 dolares, cada uma, para o tumulo desse morto que berrava por todo lado que estava bem vivo e que eu jamais em minha vida comprara uma lapide do marmorista. Vou ter que arranjar outra coisa para viver, pois na minha idade nao posso mais trabalhar.
Com a ajuda do cuba-libre cada um se exterioriza em altas vozes. Convencidos de que so nos compreendemos o frances, surgem as historias mais inesperadas.
– Eu, eu faco bonecas de balata – diz um outro – e punhos para bicicletas. Infelizmente, quando as meninas esquecem as bonecas ao sol, no jardim, elas se derretem ou deformam. Imagine o estouro quando me esqueco de que ja vendi em tal rua. Dentro de um mes, nao posso mais passar de dia pela metade de Georgetown. As bicicletas, a mesma coisa. Quem a deixa no sol, quando torna a pega-la, fica com as maos coladas nos punhos de balata que vendi.
– Eu – diz outro – faco chicotinhos com cabeca-de-negra, tambem de balata. Aos marinheiros, digo que sou um sobrevivente de Mers el-Kebir e que sao obrigados a comprar, pois e por culpa deles que estou como estou. Oito em dez compram.
Esse patio dos milagres moderno me diverte e, ao mesmo tempo, me faz ver que efetivamente nao e facil ganhar o pao.
Um tipo liga o radio do bar: ouvimos um apelo de De Gaulle. Todo mundo escuta essa voz francesa que, de Londres, encoraja os franceses das colonias e de alem-mar. O apelo de De Gaulle e patetico, absolutamente ninguem abre a boca. De repente, um dos forcados que bebeu cuba-libre demais se levanta e diz:
– Ah, merda, os caras! Isso ate que e bom! De repente aprendi ingles, estou entendendo tudo que ele diz, o Churchill!
Todo mundo rebenta de rir, ninguem se da ao trabalho de explicar ao cara que ele estava fazendo uma dupla confusao, de lingua e de pessoa.
Sim, preciso fazer as primeiras tentativas para ganhar minha vida e, pelo que vejo com os outros, nao vai ser facil. Nao estou preocupado. De 1930 a 1942, perdi completamente a responsabilidade e a habilidade para me conduzir sem ninguem. Um ser que foi prisioneiro por tanto tempo, sem ter que cuidar da comida, de um apartamento, de se vestir; um homem que se manietou, virou, revirou, que habituaram a nao fazer nada por si mesmo e a executar automaticamente as ordens mais diversas sem analisa-las; esse homem que em algumas semanas se encontra, de repente, numa grande cidade, que tem de reaprender a andar pelas calcadas sem esbarrar em ninguem, a atravessar uma rua sem se deixar esmagar, a achar natural que a seu comando lhe sirvam de beber ou de comer, este homem tem que reaprender a viver. Por exemplo, tem reacoes inesperadas. No meio de todos esses forcados que fugiram e exilados clandestinos, misturando em seu frances palavras de ingles ou espanhol, escuto com interesse os casos, e eis que de repente, nesse canto de bar ingles, tenho vontade de ir a privada. Pois bem, e inconcebivel, mas durante um quarto de segundo procurei o vigilante ao qual deveria pedir autorizacao. Foi muito rapido, mas tambem muito esquisito quando percebi isso: Papillon, agora voce nao tem que pedir autorizacao a ninguem se quiser mijar ou fazer outra coisa. No cinema, tambem, no momento em que a lanterninha procurava lugares para nos sentarmos, tive, num relampago, vontade de lhe dizer: “Por favor, nao se incomode por mim, nao passo de um pobre condenado que nao merece nenhuma