atencao”. Andando na rua, voltei-me varias vezes no trajeto do cinema ao bar. Guittou, que conhece essa tendencia, me disse:

– Por que voce se vira tanto para olhar para tras? Esta olhando para ver se o guarda o segue? Aqui nao ha guardas, meu velho Papi. Voce os deixou nas ilhas.

Na lingua figurada dos presos, a gente diz que e preciso se despojar da casaca dos forcados. E mais do que isso, pois a roupa de um sentenciado nao e mais do que um simbolo. E preciso nao apenas se despojar da casaca, e preciso tambem arrancar da alma e do cerebro a marca a fogo de uma matricula de infamia.

Uma patrulha de policiais negros ingleses, impecaveis, acaba de entrar no bar. Mesa por mesa, eles vao exigindo os documentos de identidade. Quando chegam ao nosso canto, o chefe olha atentamente todos os rostos. Encontra um que nao conhece, o meu.

– Sua carteira de identidade, por favor, senhor.

Eu a dou, ele da uma olhada, devolve-a e acrescenta:

– Desculpe-me, eu nao o conhecia. Seja bem-vindo a Georgetown – e se retira.

Paul, o saboiano, acrescenta, depois que ele vai embora:

– Esses rosbifes sao maravilhosos. Os unicos estrangeiros nos quais eles confiam cem por cento sao os forcados que fogem. Poder provar as autoridades inglesas que voce e um evadido da prisao de forcados e obter a liberdade imediatamente.

Se bem que tenhamos voltado muito tarde para casa, as 7 horas da manha estou na porta principal do porto. Menos de meia hora depois, Cuic e o maneia chegam com a carroca cheia de legumes frescos, cortados de madrugada, ovos e alguns frangos. Estao sozinhos. Pergunto onde esta o conterraneo que lhes ensinou o trabalho. Cuic responde:

– Ele nos mostrou ontem, e o suficiente. Agora nao precisamos de mais ninguem.

– Voce foi muito longe buscar isso?

– Sim, a mais de duas horas e meia daqui. Saimos as 3 horas da madrugada e chegamos agora.

Como se fizesse assim ha vinte anos, Cuic toma cha quente e bolachas. Sentados no passeio, perto da carroca, comemos, esperando os fregueses.

– Acha que eles vao vir, os americanos de ontem?

– Espero que sim, mas, se nao vierem, outros virao.

– E os precos? Como voce faz?

– Eu nao digo: “Isto custa tanto”. Eu digo: “Quanto me oferece?”

– Mas voce nao sabe falar ingles.

– E verdade, mas sei mexer os dedos e as maos. Assim e facil.

– Primeiro vai voce, que fala o suficiente para vender e comprar – me diz Cuic.

– Sim, mas primeiro eu quero ver como voce faz.

Nao demora muito, chega um automovel grande, chamado carro de comando. O motorista, um suboficial e dois marinheiros descem. O suboficial sobe na carroca, examina tudo: alfaces, berinjelas, etc. Depois de inspecionar cada coisa, apalpa os frangos.

– Quanto, tudo? – e comeca a discussao.

O marinheiro americano fala pelo nariz. Nao compreendo nada do que ele diz; Cuic fala uma mistura de chines e frances. Vendo que nao conseguem se entender, chamo Cuic de lado.

– Quanto voce gastou?

Ele remexe os bolsos e encontra 17 dolares.

– Cento e oitenta e tres dolares.

– Quanto ele esta oferecendo?

– Acho que duzentos e dez, nao e o bastante.

Eu me aproximo do oficial. Ele me pergunta se falo ingles. Um pouquinho.

– Fale lentamente – digo-lhe.

– O.K.

– Quanto o senhor paga? Nao, nao e possivel, nao podemos vender por 210 dolares; 240.

Ele nao quer.

Ele faz que vai embora, depois volta, torna a ir, sobe no carro, mas eu sinto que e uma comedia. No momento em que torna a descer, chegam minhas duas belas vizinhas, as hindus, semiveladas. Certamente observaram a cena, pois fingem nao nos conhecer. Uma delas sobe na carroca, examina a mercadoria e dirige-se a nos:

– Quanto, tudo?

– Duzentos e quarenta dolares – respondo. Ela diz: “Esta bem”.

Mas o americano tira os 240 dolares e da-os a Cuic, dizendo as hindus que ja havia comprado. Minhas vizinhas nao se retiram e olham os americanos descarregarem a carroca e carregarem o carro de comando. No ultimo instante, um marinheiro pega o porco, pensando que ele faz parte do negocio. Cuic nao quer que levem o porco, e claro. Comeca uma discussao, nao conseguimos explicar que o porco nao estava incluido na venda.

Tento fazer as hindus entenderem isso, mas e muito dificil. Elas nao compreendem. Os marinheiros americanos nao querem deixar o porco, Cuic nao quer devolver o dinheiro, a coisa vai virar bagunca. O maneta ja pegou uma tabua da carroca, quando passa um jipe da policia militar americana. O suboficial apita. A policia militar se aproxima. Eu digo a Cuic para devolver o dinheiro, ele nao quer ouvir nada. Os marinheiros estao com o porco e nao querem devolve-lo. Cuic esta plantado diante do carro deles, impedindo-os de ir embora. Um grupo de curiosos, bastante numeroso, formou-se em torno da cena barulhenta. A policia americana da razao aos americanos e, alias, nao entendem nada do que falamos. Pensam, sinceramente, que quisemos enganar os marinheiros.

Nao sei mais o que fazer, quando me lembro de que tenho o numero do telefone do Mariner Club, com o nome do martiniquenho. Dou-o ao oficial de policia, dizendo: “Interprete”. Ele me leva ate um telefone. Ligo e tenho a sorte de encontrar meu amigo gaullista. Peco-lhe que explique ao policial que o porco nao estava a venda, que e domesticado, que e como um cachorro para Cuic e que haviamos esquecido de dizer aos marinheiros que ele nao entrava no negocio. Depois, passo o telefone para o policial. Tres minutos bastam para que ele compreenda tudo. Ele mesmo pega o porco e o devolve a Cuic, que, todo feliz, toma-o nos bracos e coloca-o na carroca. O incidente acaba bem e os meus amigos amarelos riem como criancas. Todo mundo vai embora, tudo terminou bem.

A noite, em casa, agradecemos as hindus, que riem bastante deste caso.

Estamos em Georgetown ha tres meses. Hoje nos instalamos na metade da casa de nossos amigos hindus. Dois quartos claros e espacosos, uma sala de jantar, uma pequena cozinha com fogao a carvao de lenha e um quintal imenso com um canto coberto de zinco para estabulo. A carroca e o asno estao abrigados. Vou dormir sozinho numa grande cama, comprada a preco de ocasiao, com um bom colchao. No quarto ao lado, cada um numa cama, ficam os meus dois amigos chineses. Temos tambem uma mesa, seis cadeiras e dois tamboretes. Na cozinha, todos os utensilios necessarios para cozinhar. Depois de ter agradecido a Guittou e seus amigos pela hospitalidade, tomamos posse da nossa casa, como diz Cuic.

Diante da janela da sala de jantar que da para a rua esta uma poltrona de junco, como um trono, presente das hindus. Na mesa da sala de jantar, num jarro, algumas flores trazidas por Cuic.

Esta impressao de meu primeiro lar, humilde mas limpo, esta casa clara e asseada que me rodeia, primeiro resultado de tres meses de trabalho em equipe, me da confianca em mim e no futuro.

Amanha e domingo, nao ha mercado, portanto a gente esta livre o dia inteiro. Assim, nos tres decidimos oferecer um almoco em nossa casa a Guittou, seus amigos, as hindus e seus irmaos. O convidado de honra sera o chines que ajudou Cuic e o maneta, aquele que lhe deu de presente o asno e a carroca e que nos emprestou os 200 dolares para que pudessemos iniciar nosso comercio. Em seu guardanapo, ele encontrara os 200 dolares e um bilhete de agradecimento, da nossa parte, escrito em chines.

Depois do porco, que ele adora, sou eu que tenho toda a amizade de Cuic. Ele tem constantes atencoes para comigo: sou o mais bem vestido dos tres e frequentemente ele chega em casa com uma camisa, uma gravata ou uma calca para mim. Tudo isso, ele compra com seu dinheiro. Cuic nao fuma, tambem quase nao bebe, seu unico vicio e o jogo. So sonha com uma coisa: ter bastante economia para ir ao clube dos chineses e jogar.

Para vender nossos produtos comprados de madrugada, nao temos nenhuma dificuldade seria. Ja falo bastante bem o ingles para comprar e vender. Cada dia, ganhamos de vinte a 35 dolares os tres. E pouco, mas estamos muito satisfeitos por termos encontrado tao depressa um meio de ganhar nossa vida. Nao vou sempre com eles comprar, se bem que obtenha melhores precos do que eles, mas agora sou sempre eu que vendo. Muitos marinheiros americanos e ingleses que sao destacados para vir a terra fazer compras para seus navios me conhecem. Gentilmente discutimos a venda, sem botar muito calor na discussao. Ha um bom cara, cantineiro italo-americano de um rancho de oficiais americanos, que sempre fala comigo em italiano. Fica feliz da vida por eu lhe responder em sua lingua e so discute para se divertir. No fim, acaba sempre comprando pelo preco que pedi no comeco da conversa.

Entre as 8 e meia e as 9 horas da manha, a gente esta de volta a casa. O maneta e Cuic deitam-se depois de nos tres termos comido uma refeicao ligeira. Eu vou ver Guittou ou minhas vizinhas vem a nossa casa. Nada de muita faxina a fazer: varrer, lavar roupa, arrumar as camas, manter a casa limpa, as duas irmas fazem tudo isso para nos, por quase nada, 2 dolares por dia. Aprecio plenamente isso de ser livre sem angustia pelo futuro.

MINHA FAMILIA HINDU

O meio de locomocao mais empregado nesta cidade e a bicicleta. Portanto, comprei uma bicicleta para ir a qualquer lugar sem problema. Como a cidade e plana, assim como seus arredores, pode-se percorrer longas distancias sem esforco. Na bicicleta ha dois porta-bagagens muito fortes, um na frente e outro atras. Posso, portanto, como muitos nativos, levar facilmente duas pessoas.

Pelo menos duas vezes por semana, dou um passeio de uma hora ou duas com minhas amigas hindus. Elas ficam loucas de alegria e comeco a perceber que uma delas, a mais moca, esta quase apaixonada por mim.

Seu pai, que eu nunca tinha visto, veio ontem. Nao mora muito longe da minha casa, mas nunca tinha vindo nos visitar e eu so conhecia seus irmaos. E um velho grande, com barba muito longa, branca como a neve. Seus cabelos tambem sao platinados e descobrem uma fronte inteligente e nobre. So fala hindu, sua filha traduz. Convida-me para ir visita-lo em sua casa. Nao e longe, de bicicleta, manda que a princesinha, como ele chama a filha, me diga. Prometo-lhe que irei visita-lo logo.

Depois de comer alguns doces, tomando cha, ele vai embora, nao sem que eu tenha notado que examinou os menores detalhes da casa. A princesinha esta toda

Вы читаете Papillon
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату