– Voce e misterioso, nao acha?

– Algum dia, talvez lhe conte – disse eu, certo de que esse dia nunca chegaria, mas satisfeito de que a sorte me tivesse posto na cama de uma mulher que estava por dentro dos segredos do governo e cujo trabalho, pelo menos em parte, deveria incluir descobrir o paradeiro de pessoas que geralmente nao queriam ser descobertas. – E um assunto particular e delicado. Mas suponha que eu precisasse encontrar esse amigo hipotetico, que e que eu faria?

– Bem, voce poderia procurar em varios lugares – respondeu ela. – Na Secretaria da Receita Federal… o endereco dele constaria da ultima declaracao de imposto de renda. Na Previdencia Social. Devem ter o endereco da firma para a qual ele trabalha. No fbi. No Departamento de Estado. Tudo depende de voce conhecer as pessoas certas.

– Parta do principio de que eu conheco as pessoas certas – retruquei. Por cem mil dolares, eu podia ter a certeza de que alguem teria acesso as pessoas certas.

– Voce provavelmente acabaria por descobrir a pista do seu amigo. Ei, por acaso e detetive particular ou coisa parecida?

– Coisa parecida – respondi, ambiguamente.

– Bem, mais cedo ou mais tarde, todo mundo vem a Washington – disse ela. – Por que nao voce? E o verdadeiro teatro vivo da America. Todas as sessoes com lotacao esgotada. So que a plateia e muito especial. Os bons lugares estao sempre ocupados por atores.

– Voce e uma das atrizes?

– Claro que sou! Desempenho um papel importantissimo. A indomita Portia desfechando golpes mortais nos malfeitores de grande fortuna. O Women's Lib na justica e na injustica. Mereci criticas entusiasticas nas melhores camas da cidade. Chocado?

– Um pouco.

– Por falar nisso – disse ela -, voce merece quatro estrelas.

– Que e isso?

– Oh, inocente! – exclamou ela, beliscando-me a face. – Quatro estrelas equivalem a um elogio. O seu desempenho foi um dos melhores entre as pessoas com quem ja dormi nesta cidade. Voce foi tao bom quanto um certo senador de um Estado do oeste, cujo nome nao direi, mas que costumava encabecar a lista. Ate que o pobre foi derrotado, nas ultimas eleicoes.

– Nao sabia que estava desempenhando um papel – falei. Nao tinha o menor desejo de saber o nome do senador derrotado.

– Logico que estava! De outra maneira nao estaria em Washington. E nesta cidade qualquer desempenho exige um enorme talento. Todos temos que fingir que adoramos nossos papeis.

– Voce tambem?

– Sera que esta brincando? Claro! Sou uma mulher adulta. Voce acha que, se eu continuasse indo ao escritorio diariamente, durante os proximos cem anos, isso faria alguma diferenca para voce, para a General Motors ou para as Nacoes Unidas? Eu simplesmente faco o meu papel e me divirto como todo mundo, porque esta cidade e o melhor lugar para pessoas como nos se divertirem. Na verdade, a minha opiniao e que se todo mundo aqui, desde o presidente ate o mais humilde dos serventes, so pudesse trabalhar quinze dias por ano, os Estados Unidos seriam o maior pais do mundo.

Eu tinha terminado o uisque e sentia uma vontade enorme de dormir. A custo, reprimi um bocejo.

– Oh! – disse ela. – Estou enchendo sua paciencia.

– Nada disso – retruquei, sinceramente. – Mas voce nao esta cansada?

– Nao muito. – Pousou o copo, tirou o robe e deitou-se a meu lado. – O sexo me revigora. Mas tenho que acordar cedo e nao me convem ir trabalhar com ar de quem passou a noite em claro. – Aninhou-se contra mim e beijou-me a orelha. – Boa noite, Grimes. Ligue para mim quando voltar.

Quando acordei, eram quase dez horas e estava so. As cortinas deixavam passar sol suficiente para se ver que estava um lindo dia. Havia um bilhete sobre a comoda, onde ela pusera a minha carteira na noite anterior: 'Caro hospede: sai para trabalhar. Voce estava dormindo tao bem, que nao tive coragem de acorda-lo. Gostei de ver tal prova de consciencia tranquila neste mundo perdido. Ha uma gilete e creme de barbear no armario do banheiro, um copo de suco de laranja na geladeira e um bule de cafe sobre o fogao. Espero que voce encontre seu amigo. E. C.'

Sorri ao ler a ultima frase, dirigi-me ao banheiro, fiz a barba e tomei um banho. A agua fria acabou de me despertar e me fez sentir fresco e bem-humorado… alem de satisfeito comigo mesmo, modestia a parte. Olhei-me cuidadosamente no espelho. Minha cor melhorara.

Ao entrar no living, senti cheiro de bacon frito. Abri a porta que dava para a cozinha e vi uma jovem sentada a mesa, de calca comprida e sueter, com um lenco na cabeca, lendo o jornal e mastigando um pedaco de torrada.

– Oi! – saudou a jovem, olhando para cima. – Pensei que voce ia passar o dia todo dormindo.

– S… sinto muito… – gaguejei. – Nao queria perturba-la.

– Nao esta me perturbando. – Levantou-se, abriu a geladeira e tirou um copo de suco de laranja. – Evelyn deixou isto para voce. Deve estar com sede. – Nao explicou por que achava que eu devia estar com sede. – Quer ovos com bacon?

– Nao lhe quero dar trabalho.

– Nao da trabalho. O cafe da manha esta incluido. – Tirou tres fatias de bacon de um pacote aberto e colocou-as na frigideira com as outras. Era alta e esbelta. – Bem passado?

– Como voce quiser.

– Bem passado – decidiu ela. Colocou um pedaco de manteiga em outra frigideira e estrelou quatro ovos, com movimentos rapidos e autoritarios. – Meu nome e Brenda Morrissey – anunciou. – Divido o apartamento com Evelyn. Ela nao lhe falou de mim?

– Que eu me lembre, nao – respondi, bebendo o suco de laranja.

– Acho que Evelyn estava muito ocupada – declarou ela. Encheu duas xicaras de cafe, apontou para o leite e o acucar em cima da mesa. – Sente-se. Esta com pressa?

– Nao muito – disse eu, sentando-me.

– Eu tambem nao. Dirijo uma galeria de arte. Ninguem compra quadros antes das onze da manha. E o trabalho ideal para uma pessoa como eu. Evelyn esqueceu de me dizer o seu nome.

Disse-lhe.

– Ha quanto tempo voce conhece Evelyn? – perguntou ela, de pe junto ao fogao, com uma mao mexendo os ovos e com a outra enfiando fatias de pao na torradeira.

– Bem – disse eu, encabulado -, a verdade e que nos conhecemos ontem a noite.

Ela deu uma risadinha curta.

– Assim e Washington. A gente arranja votos onde quer que os encontre. Todo tipo de votos. Talvez esse seja o melhor tipo. Cara Evelyn! – disse ela, mas sem malicia. – Ouvi voces ontem a noite.

Senti-me corar.

– Nao sabia que havia mais alguem em casa.

– Nao faz mal. A verdade e que sempre me esqueco de comprar tampoes para os ouvidos. – Passou os ovos para os pratos e colocou o bacon por cima deles. Sentou-se do outro lado da mesa, os olhos esverdeados fitos em mim. Nao usava batom e seus labios eram rosapalido, suas faces estavam afogueadas do calor do fogao. Tinha um rosto comprido, ossudo, e o lenco em volta da cabeca fazia-a parecer severa. – Evelyn nao gosta de guardar os prazeres para si – disse ela, partindo um pedaco de bacon e comendo-o com a mao. – Tive de me conter para nao entrar tambem na brincadeira.

Meu rosto ficou rigido e baixei os olhos. Ela riu.

– Nao se preocupe! – disse ela. – Isso foi coisa que nunca aconteceu. Nos podemos fazer muita coisa, mas nao gostamos de orgias. Contudo, se voce vai ficar em Washington esta noite e me disser em que hotel esta hospedado, talvez possa convidar-me a tomar um drinque.

Nao vou dizer que nao fiquei tentado. A noite despertara em mim a sensualidade havia tanto adormecida. E a impessoalidade da sugestao era provocante, nem que fosse pela novidade. Coisas desse tipo tinham acontecido com amigos meus, ou pelo menos assim diziam, mas nunca comigo. E, depois do que eu tinha feito no quarto 602 do St. Augustine, mal podia recusar-me, com base em principios morais, a dormir com a amiga de uma mulher que conhecera na noite anterior. Deixaria que as coisas acontecessem. Mas havia a certidao de nascimento.

– Sinto muito – falei. – Mas vou viajar esta manha.

– Que pena! – fez a moca, numa voz desanimada.

– Devo estar de volta ao hotel… – hesitei, lembrando-me do jogo de poquer com Jeremy Hale, sabado a noite. Cada coisa a seu tempo. – Devo estar de volta no domingo.

– Em que hotel voce esta hospedado?

Disse-lhe.

– Talvez eu ligue no domingo – falou ela. – Nao tenho nada contra os domingos.

Dinheiro no banco, pensei, ao sair do edificio, mesmo que o banco estivesse a quinhentos quilometros de distancia, devia exalar uma irresistivel aura sexual.

Procurei examinar como me sentia naquela manha. Bem-disposto e de animo leve. Perverso. O termo era demode, mas fora o que me viera a cabeca. Seria possivel que, durante trinta e tres anos, eu me tivesse enganado redondamente a respeito do homem que era? Olhei para as caras dos homens e das mulheres com quem cruzava na rua. Estariam todos a beira do crime?

Chegando ao hotel, aluguei um carro e tirei o dinheiro do cofre. Estava comecando a me sentir mal se nao andasse com varias notas de cem dolares no bolso.

As estradas que cortavam a Pennsylvania estavam cobertas de gelo, de modo que procurei guiar cuidadosamente. Tinha de evitar a todo custo uma batida. Nao podia ficar imobilizado e indefeso semanas, ou mesmo meses, num hospital.

CAPITULO VI

– Por favor, posso falar com o Sr. Grimes? – perguntei a moca que atendeu o telefone. – Com o Sr. Henry Grimes?

– Quem quer falar com ele?

Hesitei. Cada vez mais relutava em dar o meu nome.

– Diga que e o irmao dele – respondi. Como eramos tres irmaos, isso podia deixar ao menos uma margem de duvida.

– Oi, Hank! – exclamei, mal ouvi a voz de meu irmao.

– Quem esta falando? Nao, nao acredito! Doug! Onde diabos voce esta? – Senti de novo a mesma gratidao que me inundara no escritorio de Jeremy Hale por ver que havia quem ficasse feliz de ouvir minha voz. Meu irmao Hank era sete anos mais velho do que eu e, quando crianca, ele me considerava uma peste. Desde que eu saira de Scranton, tinhamo-nos visto poucas vezes, mas nao havia duvida do calor de sua acolhida.

– Estou aqui, na cidade. No Hotel Hilton.

– Pegue a mala e venha ja para nossa casa. Temos um quarto de hospedes e as criancas nao o acordarao ate as seis e meia da manha. – Henry achou graca no seu proprio convite. Por tras de sua voz grave e familiar, ouvia-se o matraquear de maquinas de escritorio. Henry trabalhava numa firma de contabilidade e o ruido mecanico do dinheiro entrando e saindo era o fundo musical dos seus dias. – Vou ligar para Madge – disse ele – para avisar que voce vai jantar.

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