– Um momento, Hank! – falei. – Preciso pedir-lhe um favor.

– Peca logo, garoto! – disse ele.

– Vou precisar de um passaporte e necessito da minha certidao de nascimento. Se a mandar pedir em Harrisburg, vai levar no minimo tres semanas e estou com muita pressa…

– Voce vai viajar para onde?

– Para o estrangeiro.

– Sim, mas para onde?

– Isso nao importa. Sera que, entre as coisas que voce apanhou na casa de mamae, poderia estar minha certidao de nascimento?

– Va jantar la em casa e procuraremos juntos.

– Preferia que Madge nao soubesse que eu estou aqui – falei.

– Oh! – exclamou ele, imediatamente preocupado.

– Sera que voce pode ver se encontra a certidao e depois vir ate o Hilton, jantar comigo… sozinho?

– Mas por que e que…?

– Depois eu explico. Pode fazer isso?

– Estarei no Hilton as seis e um quarto.

– Espero por voce no bar.

– Otimo lugar! – riu Henry; uma risada de bebado.

– Ate logo, entao! – falei e desliguei. Fiquei um momento sentado na beira da cama daquele incaracteristico quarto de hotel, a mao no telefone, pensando se nao teria sido melhor escrever para Harrisburg e esperar duas semanas do que ter vindo a Scranton e falado com meu irmao. Meneei a cabeca. Para se imaginar o que o futuro seria, era preciso contar com o passado. E meu irmao Henry desempenhava um importante papel no meu passado.

Como o nosso pai morreu quando Henry tinha vinte anos e os outros irmaos eram muito mais mocos, ele tomara a si a responsabilidade de chefe da familia, e eu aprendera a respeita-lo e a depender dele. Era facil depender de Henry, rapaz sociavel, sem complicacoes, inteligente, bom aluno (era sempre o primeiro da classe, sempre eleito representante da turma, e ganhara uma bolsa para a Universidade da Pennsylvania). Tinha tambem tino comercial e era generoso com os irmaos, principalmente comigo, dividindo conosco o dinheiro que ganhava trabalhando depois das aulas e no verao. Conforme nossa mae sempre dizia, ele era o unico de seus filhos que nascera para ser rico e bem-sucedido. Foi Henry quem venceu as objecoes de mamae quando eu decidi aprender a pilotar. A essa altura, ele ja era contador publico, ganhando bastante bem para a idade, e ja estava casado.

Com o correr dos anos, paguei a Henry o dinheiro que me tinha emprestado, embora ele nunca me tivesse pedido um tostao. Mas passavamos tempos sem nos vermos. Viviamos longe um do outro e Henry tinha as filhas e a esposa, Madge. Devido ao escandalo do nosso irmao cacula, Bert, nas poucas vezes em que tinhamos estado juntos Madge insistira impertinentemente em saber por que razao eu ainda nao me havia casado.

Por tudo isso, meu irmao Henry era das poucas pessoas em minha vida que, de certa maneira, me faziam sentir culpado, sem sentimentos. Eu sabia que tinha recebido muito mais do que lhe dera e o saldo negativo me incomodava. Estava satisfeito por ter a burocracia de Harrisburg me forcado a voltar a nossa cidade natal e a pedir, mais uma vez, que meu irmao me ajudasse.

Fiquei chocado quando o vi entrar no bar. Ha cinco anos que nao o via, e Henry era entao um homem ereto, bem constituido, denotando autoconfianca. Agora, parecia que os cinco anos tinham dado cabo dele. Parecia diminuido, curvado. Perdera muito cabelo, e o que lhe restava era cinza-amarelado. Usava grossos oculos com armacao de ouro, que lhe marcavam o alto do nariz. Sempre tivera belos olhos, de coloracao bem definida como o resto da familia, e boa visao, de modo que os oculos nao lhe ficavam bem. Mesmo na penumbra do bar, Henry lembrava um animalzinho assustado, pronto a se meter num buraco ao primeiro sinal de perigo.

– Estou aqui, Hank – disse eu, levantando-me.

Apertamo-nos as maos sem dizer palavra. Tinha certeza de que Henry sabia que mudara muito e que eu estava procurando esconder minha reacao a esse fato.

– Voce esta com sorte – disse Henry. – Encontrei logo. – Meteu a mao no bolso, puxou um envelope amarelado e entregou-me. Tirei de seu interior a certidao. La estava, a minha identidade confirmada. Douglas Traynor Grimes, cidadao nascido nos Estados Unidos, sexo masculino, filho de Margaret Traynor Grimes.

Enquanto eu examinava o pedaco de papel envelhecido, Henry tirou o sobretudo e o dobrou sobre uma cadeira. O paleto tinha os punhos e os cotovelos gastos.

– O que voce vai tomar, Hank? – perguntei, num tom de voz falsamente animado.

– Um old-fashioned. – Sua voz permanecera a mesma, quente e profunda, uma bem conservada reliquia de melhores dias.

– O mesmo para mim – disse eu ao garcom, de pe junto a mesa.

– Muito bem! – disse Henry. – A volta do filho prodigo. – Se eu fechasse os olhos, a voz continuaria sendo o meu irmao.

– Nao e bem isso. Eu diria que estou fazendo uma escala para reabastecer.

– Nao esta mais voando?

– Ja lhe escrevi dizendo isso.

– Foi a unica vez em que me escreveu – retrucou Henry. – Nao pense que estou me queixando. – E estendeu as maos num gesto de paz. Reparei que suas maos tremiam. 'Meu Deus', pensei, 'ele so tem quarenta anos!' – O mundo esta cada vez mais dificil – continuou Henry. – O tempo passa, os irmaos seguem caminhos diferentes.

Quando nos trouxeram os drinques, brindamos a nossa saude. Henry bebeu avidamente metade do copo de um so gole.

– Depois de um dia no escritorio… – disse, reparando no meu olhar. – Os dias parecem interminaveis, naquele escritorio.

– Posso imaginar – falei.

– Agora, conte-me as novidades – pediu Henry.

– Conte voce – retruquei. – Madge, as criancas, etc, etc.

Henry mandou vir mais dois drinques, enquanto me falava de Madge e das criancas. Madge estava bem, um pouco cansada de tomar conta da casa sem empregada, alem de fazer parte do comite de pais de alunos e de dar aulas a noite num curso de estenografia, as tres filhas estavam lindas, embora a mais velha, de catorze anos, fosse algo problematica, como quase todas as meninas dessa idade, hoje em dia, e precisasse de uma ajuda psiquiatrica. Tirou fotografias da carteira, a familia junto de um lago, as mulheres bronzeadas, robustas e bem-dispostas, Henry metido num calcao demasiado grande, palido e com ar preocupado, como se estivesse pressentindo um desastre. As noticias sobre nosso irmao Bert nao eram surpreendentes.

– E um conhecido homossexual, locutor de radio em San Diego – disse Henry. – Nos deviamos ter previsto isso. Voce nunca se deu conta?

– Nao.

– Bem, hoje em dia isso nao e tao mau assim, acho eu – disse Henry com um suspiro. – Mas na nossa propria familia… Papai teria morrido de desgosto. Bert tem bom coracao; no Natal sempre manda presentes para as meninas, la da California, mas eu nao saberia o que fazer se ele aparecesse por aqui.

Nossa irma Clara, a cacula, estava casada, em Chicago, e tinha dois filhos, eu sabia?

– Sabia que ela tinha se casado, mas nao que tinha filhos.

– Poucas vezes a vemos – disse Henry. – As familias parecem desintegrar-se. Daqui a alguns anos, minhas filhas seguirao o seu caminho e eu e Madge ficaremos em casa, vendo televisao. – Riu amargamente. – Belos pensamentos! Mas ha uma vantagem. Os desgracados nao vao poder pegar num filho meu e mata-lo numa dessas guerras. Que pais, onde a gente da gracas a Deus por nao ter um filho homem! – Abanou a cabeca, como se a conversa tivesse tomado rumos indesejaveis. – Nao acha que e hora de pedir outro drinque?

Eu ainda tinha o primeiro copo quase cheio, mas ele mandou vir mais dois drinques. Dali a pouco, Henry estaria bebado. Talvez isso explicasse tudo, embora eu soubesse que nunca explicava tudo.

– Clara esta muito bem – continuou Henry. – Pelo menos, e o que ela nos diz. Quando escreve. O marido e um dos diretores de uma firma de corretores da Bolsa, la em Chicago. Tem ate um iate no lago. Imagine so… uma Grimes com um iate. Bem, chega de falar de nos. E voce?

– Ao jantar – repliquei. Era evidente que Henry precisava comer qualquer coisa… e depressa.

No restaurante do hotel, Henry mandou vir um grande jantar.

– Que tal uma garrafa de vinho? – perguntou, sorrindo muito, como se acabasse de ter uma ideia brilhante e original.

– Se voce quiser – falei. Sabia que Henry ficaria muito pior com o vinho, mas desde crianca me habituara a obedecer as suas ordens, e notei que o habito persistia.

Henry quase nao comeu, mas em compensacao bebeu muito. De vez em quando ficava sobrio, olhava fixo para mim e me falava quase com severidade, como se de repente se lembrasse da sua posicao de chefe da familia.

– Agora, diga-me, rapaz – falou, durante uma dessas ocasioes. – Por onde voce tem andado, o que tem feito, o que o traz aqui? Imagino que precise de ajuda. Nao nado em dinheiro mas acho que posso lhe…

– Nao e nada disso, Hank – falei depressa. – O problema nao e dinheiro.

– Isso e o que voce pensa, irmao – riu Henry, amargamente. – Isso e o que voce pensa.

– Escute o que lhe vou falar, Hank – disse eu, inclinando-me para a frente, falando em voz baixa, procurando atrair-lhe a atencao. – Vou-me embora.

– Embora? Para onde? – perguntou Henry. – Voce tem passado toda a vida indo embora.

– Desta vez e diferente. Talvez va embora por muito tempo. Talvez va primeiro a Europa.

– Arrumou emprego na Europa?

– Nao e bem isso.

– Nao tem emprego?

– Por favor, Hank, nao faca perguntas – disse eu. – Vou-me embora, mais nada. Nao sei quando poderei voltar a ve-lo. Talvez nunca. Quis voltar as raizes antes de ir embora. E quero agradecer-lhe por tudo o que fez por mim. Quero que voce saiba que lhe estou muito grato. Antes, eu era um garoto e achava que a gratidao era coisa de mulheres ou degradante, pouco britanica, sei la que outra idiotice do genero.

– Ora, Doug! – disse Henry. – Esqueca isso, esta bem?

– Nao, nunca vou esquecer. Outra coisa. Papai morreu quando eu tinha treze anos e…

– Ele deixou um bom seguro – completou Henry. – Sim, senhor, um bom seguro. A gente nunca poderia esperar… um homem que trabalhava como capataz numa loja de maquinas. Um homem que trabalhava com as maos. Sempre pensou na familia. Que seria de nos, hoje, se ele nao tivesse deixado aquele seguro…?

– Nao estou falando nisso.

– Pois deve falar. E bom falar com um contador, quando o assunto e morte e seguro de vida.

– Voce tem alguma lembranca dele? Era disso que eu queria falar. Eu era um garotinho, pouco me lembro dele; papai era uma pessoa que vinha almocar e jantar, pouco mais do que isso. Ainda sonho com ele, mas nao consigo lembrar-me do seu rosto. Voce, porem, ja tinha vinte anos…

– O rosto dele… – repetiu Henry. – O rosto dele era o de um homem rude e honesto, que nunca duvidou de si mesmo. O rosto de um outro seculo. O dever e a honra estavam inscritos nele. – Henry estava cacoando de si mesmo, cacoando da memoria do nosso pai. – E ele me deu um mau conselho – disse Henry, de repente quase sobrio. – Tambem de um outro seculo. Disse-me: 'Case cedo, meu filho'. Voce sabe como ele estava sempre lendo a Biblia e nos fazendo ir a igreja. 'E preferivel casar a arder', dizia ele. Casei-me cedo, mas nao concordo com papai: seguro ou nao, arder

Вы читаете Plantao Da Noite
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату
×