Quando Evelyn Coates trouxe a baila o escandalo Watergate e disse que ele ainda traria graves problemas para o presidente, o colunista retrucou:

– Bobagem. Ele e demasiado esperto para isso. Tudo vai ser abafado. Guardem minhas palavras. Daqui a alguns meses, todo mundo vai dizer: 'Watergate? Que vem a ser isso?' Podem ter certeza – acrescentou o colunista, num tom de voz e numa maneira de falar de quem esta acostumado a que lhe deem sempre atencao – de que estamos assistindo aos primeiros passos na direcao do fascismo.

Enquanto falava, ia mastigando um sanduiche de carne assada, acompanhado de uma dose de uisque.

– Os milicos estao preparando o terreno. Nao ficarei surpreso se eles forem chamados a dirigir o pais. Qualquer manha, quando a gente acordar, os tanques estarao avancando pela Pennsylvania Avenue e as metralhadoras dominarao todos os telhados. – Isso eu nao lera em sua coluna. Era preciso estar em Washington para se saber das coisas em primeira mao e sem rebucos.

O advogado nao parecia absolutamente preocupado. Tinha a imperturbabilidade bem-humorada tipica do representante de grandes empresas.

– Talvez nao fosse ma ideia – declarou. – A imprensa e irresponsavel. Perdeu a guerra na Asia para nos. Poe o povo contra o presidente, contra o vice-presidente, faz com que se desprezem as autoridades, torna cada vez mais impossivel governar o pais. Talvez colocar os milicos, como voce os chama, no poder durante alguns anos seja a melhor coisa para o pais desde Alf Landon.

– Oh, Jack – interveio a Sra. Coates. – Voce parece a voz do Pentagono!

– Se voce visse o que passa pela minha mesa dia apos dia – retrucou o advogado -, nao diria isso.

– Sr. Grimes… – Ela voltou-se para mim, um sorrisinho frio nos labios. – O senhor nao esta metido na sujeira aqui de Washington. Representa, esta noite, o puro e imaculado povo americano. Oucamos o ponto de vista simples das massas…

– Evelyn – admoestou Hale. Esperava ouvi-lo dizer: 'Lembre-se de que ele e nosso hospede'. Mas nao, ele apenas disse: 'Evelyn'.

Olhei para a mulher, aborrecido por ela me provocar, sentindo que me estava testando por algum motivo secreto e nao tao inocente.

– O puro e imaculado representante do povo americano -: respondi – acha que tudo isso e bobagem. – Lembrei-me do que ela me dissera, nua, um copo de uisque na mao, sentada na beira da grande cama, no quarto as escuras, sobre o fato de todo mundo em Washington ser ator. – Voces nao falam a serio – continuei. – Para voces, e tudo uma brincadeira. Mas para mim, o puro, imaculado etc, nao e; significa vida, morte, impostos e outras coisinhas mais, ao passo que para voces e apenas um jogo. Voces dependem uns dos outros para terem opinioes diferentes, da mesma maneira que os times de beisebol dependem dos outros para terem uniformes de cores diferentes. De outra forma, ninguem saberia quem estava ganhando. No fim, porem, voces sao todos parceiros do mesmo jogo. – Eu estava espantado comigo mesmo. Nem sequer sabia que pensava assim. – Se forem vendidos para outro clube, e so mudar de uniforme.

– Deixe-me perguntar-lhe uma coisa, Grimes – falou o advogado, afavelmente. – Voce votou, nas ultimas eleicoes?

– Votei – respondi. – E fui enganado. Os jornais publicaram as noticias esportivas nas paginas dos editoriais. Nao pretendo votar de novo. Acho que e uma ocupacao indigna de um homem adulto. – Nao lhes disse onde esperava estar quando das proximas eleicoes, que nao teria chance de poder votar.

– Desculpem-me, amigos – disse Evelyn Coates. – Nao sabia que tinha introduzido no nosso meio um filosofo politico.

– Nao sou absolutamente contra o que ele disse – afirmou o advogado. – Nao sei o que ha de errado em ser leal ao nosso time. Desde que o time esteja ganhando, naturalmente. – Riu, comedidamente, da propria piada.

O deputado levantou a cabeca das contas. Se tinha ouvido uma so palavra da discussao, ou qualquer discussao nos ultimos dez anos, nao o demonstrava.

– Ok – disse ele. – Evelyn, voce ganhou trezentos e cinquenta e cinco dolares e cinquenta centavos. Sr. Grimes, ganhou mil duzentos e sete dolares. Os demais, queiram apanhar os seus taloes de cheques.

Enquanto os perdedores faziam as contas de quanto deviam, houve as habituais piadas, dirigidas a Hale, pelo fato de ter trazido um bamba, eu, para jogar. Evelyn Coates nao soltou nenhuma piada. Pelo modo de os outros falarem, ninguem desconfiaria de que uma discussao acabava de ter lugar.

Procurei fingir desinteresse, enquanto guardava os cheques na carteira. Felizmente, eram todos contra o banco em que Hale tinha conta, em Washington. Ele os endossou para mim, para que eu nao tivesse dificuldade em saca-los.

Saimos todos juntos e todos se despediram ruidosamente. O deputado e o colunista entraram juntos num taxi. O advogado pegou no braco de Evelyn, dizendo:

– Voce fica no meu caminho, Evelyn.Vou deixa-la em casa.

Hale estava tirando um maco de cigarros de uma maquina e eu fiquei um momento sozinho, vendo o advogado caminhar com Evelyn Coates na direcao do estacionamento. Ouvi-a rir baixo de algo que ele dissera, enquanto desapareciam na escuridao.

Hale dirigiu por algum tempo em silencio.

– Quanto tempo voce esta pensando em ficar na cidade? – perguntou, quando paramos num sinal.

– So ate conseguir o passaporte. Segunda, terca-feira…

– E depois?

– Depois, vou olhar o mapa e viajar para algum lugar da Europa.

Assim que o sinal mudou, ele arrancou..

– Puxa, como eu gostaria de ir com voce! Para qualquer lugar. – A intensidade do seu tom de voz era impressionante.

Parecia um prisioneiro falando com um homem que ia ser libertado na manha seguinte. – Esta cidade – disse ele – e uma perfeita cloaca. – Dobrou abruptamente uma esquina, pneus guinchando. – Esse canalha do Benson, com sua fala mansa… Ainda bem que voce nao trabalha para o governo…

– De que e que voce esta falando? – perguntei, sinceramente intrigado.

– Se trabalhasse, segunda-feira a noite, alguem no seu departamento… acima de voce, claro… ouviria umas coisinhas a seu respeito.

– Por causa daquilo que eu disse sobre votar e mudar de uniforme? – Procurei nao me mostrar incredulo, como se realmente eu o estivesse levando a serio. – Na verdade, eu estava brincando… ou quase.

– Nesta cidade, a gente nao brinca, amigo – disse Hale, sombriamente. – Pelo menos diante de caras como ele. Ha seis meses que estamos tentando livrar-nos dele, mas ninguem tem coragem para isso. Nem eu. Voce talvez estivesse brincando, mas ele nao estava.

– A certa altura – disse eu – estive tentado a dizer que ficaria aqui ate o proximo sabado.

– Ainda bem que nao disse. Va-se embora o mais depressa possivel. Oxala eu tambem pudesse ir.

– Nao sei como as coisas funcionam no seu departamento – falei -, mas voce nao pode pedir para ser transferido para outro lugar?

– Posso pedir – respondeu Hale. – Mas so isso. – Acendeu um cigarro. – Sou tido como um funcionario que nao merece confianca, e querem ficar de olho em mim vinte e quatro horas por dia…

– Voce? Nao merece confianca? – Era a ultima coisa que qualquer pessoa pensaria a respeito dele.

– Estive dois anos na Tailandia. Escrevi-lhe uma carta, lembra-se?

– Nao a recebi. Tambem nao tenho estado parado…

– Escrevi dois relatorios que nao foram despachados pelos canais competentes. – Riu com amargura. – Canais! Esgotos, isso sim! Bem, eles me chamaram… e me deram um gabinete com uma linda secretaria e um aumento e alguns memorandos para assinar que podiam ser usados para empapelar as paredes. A unica razao por que estao sendo tao amaveis comigo e por causa do diabo do meu sogro. Mas o recado foi muito claro: 'Fique bonzinho ou…' – Riu de novo, um, riso rouco, nervoso. – Quando penso que comemorei, ao saber que tinha passado nos exames para o corpo diplomatico! E foi tudo tao sem sentido… esses relatorios que eu escrevi… Achei que merecia parabens… o intrepido descobridor das verdades, o bravo proclamador das verdades! Meu Deus, nao havia nada naquelas folhas que desde entao nao tenha sido divulgado por todos os jornais do pais. – Sacudiu a cinza do cigarro no cinzeiro do painel. – Vivemos na era dos Benson, dos furtivos instiladores de veneno, que desde o berco sabem que a subida e pelos esgotos. Vou dizer-lhe algo muito estranho… um fenomeno fisiologico, que deveria ser relatado num jornal medico… ha dias em que sinto gosto de merda na boca. Escovo os dentes, gargarejo, peco a minha secretaria para por um jarro com narcisos na minha mesa, mas nao adianta…

– Meu Deus! – exclamei. – Pensei que voce estava indo muito bem.

– Eu represento bem – disse Hale, desanimado. – Tenho de representar. Sou um bom mentiroso. E um governo de mentirosos, de modo que adquirimos muita pratica. Sou um feliz funcionario publico, um marido, um genro e um par feliz… Puxa, mas por que estou lhe contando tudo isto? Imagino que voce tambem tenha problemas de sobra.

– Nao no momento – falei. – Se a coisa e assim tao ma, por que voce nao pede demissao? Faca outra coisa!

– Fazer o que? – retrucou ele. – Vender gravatas?

– Algo apareceria. – Nao lhe disse que talvez houvesse um lugar como recepcionista noturno em Nova York. – Peca uns meses de licenca, procure e…

– Com que dinheiro? – Riu ele. – Nao tenho um tostao. Voce viu como eu vivo. Meu ordenado cobre apenas a metade. Meu venerando sogro entra com o resto. Quase teve um ataque quando me mandaram voltar da Asia. Poria fogo a casa, comigo dentro, se eu lhe dissesse que ia pedir demissao. Dois meses depois, minha mulher e as criancas estariam morando com ele… Ora, esqueca, esqueca, nao sei por que, de repente, fui falar em tudo isso. Foi aquele canalha do Benson. Vejo-o multiplicado por mil cada vez que vou trabalhar, de manha. Que diabo… nao preciso continuar a jogar poquer aos sabados. Pelo menos, com um Benson nao precisarei mais falar. – Riu baixinho. – Se eu tivesse ganho esta noite, talvez agora estivesse lhe dizendo que boa vida a gente leva aqui em Washington.

Ele guiava cada vez mais devagar, como se nao quisesse ficar sozinho ou ter de ir para casa e enfrentar os fatos concretos de que tinha mulher, filhos, carreira e sogro. Eu tambem nao estava com pressa de voltar ao meu quarto de hotel. Nao queria olhar para o telefone na mesa-de-cabeceira e lutar contra a tentacao de pedir para a telefonista ligar para o numero de Evelyn Coates.

– Sera que voce me faz um favor, Doug? – disse ele, quando ja estavamos proximos do hotel.

– Claro – respondi, mas logo me arrependi. Depois da conversa no carro, nao tinha a menor vontade de me imiscuir, mais do que fosse absolutamente necessario, na vida e nos problemas do meu ex-colega Jeremy Hale.

– Venha jantar conosco amanha a noite – disse ele – e de um jeito de dizer que esta pensando em esquiar em Vermont nas duas primeiras semanas do mes que vem e gostaria que eu fosse com voce.

– Acho que ja nao vou estar no pais – retruquei.

– Nao faz diferenca – disse ele, calmamente. – So lhe peco para dizer isso, de modo a que minha mulher possa ouvir. Vou ter duas semanas livres e quero aproveitar para sair.

– Vai me dizer que precisa arranjar pretextos para sair…?

– Nao e bem isso – disse ele, suspirando. – E bem mais complicado. Ha uma moca no meio…

– Oh!

– Pois e – disse ele, rindo forcadamente. – Tambem nao parece coisa minha, nao? – perguntou em tom desafiante, como se me estivesse acusando de algo.

– Para dizer a verdade, nao – concordei.

– E nao, mesmo. E a primeira vez, desde que me casei… Nunca pensei que isto aconteceria. Mas aconteceu e esta me pondo maluco. So nos encontramos algumas vezes… alguns minutos, uma hora, aqui e ali, sempre nos escondendo. Esta dando cabo dos dois. Numa cidade como esta, com gente sempre espionando os outros. Precisamos de algum tempo para estar juntos. Deus sabe o que minha mulher faria se alguem lhe contasse! Eu nao queria que isso acontecesse, juro por Deus, mas aconteceu. Sinto como se minha cabeca fosse explodir. Nao posso falar com ninguem nesta cidade. E como se eu estivesse vivendo com uma pedra em cima do peito, dia apos dia. Nunca pensei que seria capaz de me sentir assim por causa de uma mulher… Acho que nao ha mal em lhe dizer quem e…

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